Por ocasião do VIII ENAPOL, no dia 15 de setembro de 2017, em Buenos Aires, a CLIPP entrevistou Ruth Gorenberg, membro da EOL e autora do livro « La música de lalengua. Incidencias del objeto voz en la clínica psicoanalítica », a respeito do qual falará em uma atividade na CLIPP em março próximo.
Ruth discorreu sobre seu percurso na psicanálise, o livro e suas ressonâncias, o objeto voz e suas articulações.
Vale a pena conferir e aguardar sua vinda para a CLIPP.
Boa leitura!
CLIPP: Ruth, você poderia falar
do seu percurso na psicanálise antes de conversarmos sobre o livro?Ruth Gorenberg: Estudei medicina. Sou
médica psiquiatra. A psiquiatria estava muito marcada por um mandato paterno:
meu pai era psicólogo, então eu « tinha » que ser médica. Eu gostava de
filosofia, de literatura, música, arte, mas foi necessário me analisar para
fazer meu caminho. Fiz minha formação em um serviço de psiquiatria dinâmica, ou
seja, já havia uma orientação psicanalítica, não lacaniana, mas com um toque
inglês. Fiz uma análise de orientação kleiniana por vários anos e depois,
lentamente, fui me interessando pela orientação lacaniana.CLIPP: Hoje você trabalha com
psiquiatria e psicanálise juntas?Ruth Gorenberg: Exatamente. Com o
tempo, com a análise, fui encontrando uma maneira de articular, porque durante
algum tempo estive brigada com a psiquiatria e com o ser médica. A partir da
análise, pude encontrar uma maneira de utilizar este instrumento, a
psiquiatria, quando é necessário. Aproximei-me da Orientação Lacaniana, da
Escola, há aproximadamente vinte anos. Comecei no Instituto Clínico de Buenos
Aires (ICdeBA), me diplomei, depois entrei para a PAUSA (Psicoanálisis
Aplicado a las Urgencias Subjetivas de la Actualidad). Trabalhei como
psiquiatra e como orientadora vários anos. Logo, ingressei como membro da EOL (Escuela
de la Orientación Lacaniana) e alguns anos depois entrei no Mestrado em
Clínica Psicanalítica. Trata-se de um Mestrado que se desenvolve no âmbito de
uma universidade pública: a UNSAM (Universidad de San Martín). Este Mestrado é
um convênio entre o Instituto Clínico de Buenos Aires (ICdeBA) e o
Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES) e
suas diretoras são Graciela Brodsky e Ines Sotelo. Entrei na primeira turma e
já estamos na sétima.CLIPP:Universidade pública?Ruth Gorenberg: Sim, a Universidade de
San Martín. Isso foi uma conquista política muito importante da EOL e do
Instituto Clínico de Buenos Aires: poder entrar na universidade pública com um
mestrado e que se mantém com muitos mestrandos. Meu livro La música de lalengua
é minha tese de mestrado.CLIPP: Assim já nos
introduzimos no livro…Ruth Gorenberg: Exatamente. Esse foi
meu tema de mestrado e, na realidade, é a tese tal como a apresentei. Apenas o
prólogo de Miquel Bassols foi feito posteriormente. É toda uma questão a
escolha do tema de tese, né? Como chegar a um tema, qual tema trabalhar, como
reduzir a um tema. Escolhi um tema, mas não deu certo, achei que não podia
seguir adiante. Miquel Bassols teve muita influência no meu tema de tese porque
fui escutando o que ele falava em distintas apresentações, lendo seu blog, e
entendi que ele tinha um interesse especial pelo objeto voz. Casualmente nas
jornadas da EOL, ano retrasado, chamada Solos y Solas, houve uma proposta de
fazermos uma banda musical e me convocaram, a mim e a outros colegas que fazem
música. Fizemos uma banda para o encerramento das Jornadas e pedimos ao Miquel
que tocasse violão. E ele tocou, está no YouTube!CLIPP: Não há muitas coisas
sobre o tema do objeto voz, não é?Ruth Gorenberg: Não muitas, mas muitas
referências valiosas. Um texto de Jacques Alain Miller, « Lacan y la
voz », tem me orientado muito. Miquel Bassols publicou em seu blog os
trabalhos « In a silent way » e « A voz do objeto a » que têm
relação com o tema do objeto voz e também me serviram de guia.Então escolhi o tema
que, obviamente, é um tema muito meu, o tema da voz, o tema da minha própria
análise, a relação ao objeto voz. Minha investigação foi um percurso em torno
de algumas premissas freudianas acerca da pulsão e em torno das referências de
Lacan sobre a voz.CLIPP: Fale um pouco da
estrutura do livro.Ruth Gorenberg: O primeiro capítulo,
em que trabalho Freud, se chama « De la palabra: resto mnémico de la
palabra oída al fonema ». Nele, abordo o conceito de fonema. Está muito
ligado à ideia do shofar. Shofar é o instrumento que está na capa
do livro; é um instrumento ritual, judeu, um instrumento de vento, é um chifre.
E como chegar do conceito de pulsão em Freud ao conceito de objeto a e de
fonema em Lacan? O segundo capítulo se chama « Del Che vuoi al shofar« .
O Che vuoi é uma referência ao Diabo Apaixonado de Jacques
Cazotte, um autor de 1700: trabalho o Che vuoi, que inicialmente Lacan
coloca no traço do desejo e que até certo momento do ensino tem um estatuto um
tanto imaginário. Mas já a partir do final do Seminário 6 estão os indícios de
algo de uma vertente real do objeto, e o shofar coroa isso alguns anos
mais tarde, porque é a voz do Deus pai, ou seja, já não tem estatuto
significante, tem alguma coisa do gozo do pai.CLIPP: Por que do pai?Ruth Gorenberg: Isso está na
referência que Lacan usa em seu Seminário Inexistente, o Seminário
dos Nomes do Pai. Ali ele trabalha uma cena do Êxodo, da Bíblia, que
se chama « Akeidat Isaac« . É uma cena onde Deus coloca Abraão à
prova, pedindo que sacrifique seu filho. Por que a voz de Deus pede isso? Há um
sintagma, que Lacan pega da Bíblia, o « sou o que sou ». É Moisés que,
em certa ocasião, disse a Deus: mas quem é você, qual seu nome? Não tem nome,
sou o que sou. Sou quem sou, digamos assim. O gozo é uma alusão à
dimensão mais gozante, não tem um nome, não é o nome do pai, que segue a lei, é
outro estatuto do pai que aparece ali. Finalmente, Deus diz: será sacrificado
um carneiro. E o produto do carneiro é este chifre, o shofar, que vem no
lugar. Para Lacan, esse carneiro é um substituto totêmico do pai e o chifre e
seu som é um resto.No capítulo 3,
« Lacan y el shofar« , estão todas as referências. O quarto
capítulo é « La fonetización del Otro ». O Outro fonetiza e aí existe
uma distinção entre fonetização e fonemização, porque o fonema está mais do
lado de lalangue, do lado disso que não é decifrável. Por isso digo a
« música de lalangue« . Dou várias referências, no livro, do que
é o fonema: às vezes não tem carne nem ossos, está nos espaços, nas escansões,
nos silêncios mesmo. Todo o livro gira em torno disso, da diferença da
fonetização que tem a ver com a linguagem, com a introdução de uma linguagem.CLIPP: Isso remete a Saussure, não?Ruth Gorenberg: Com certeza. Há várias referências
sobre a linguagem em Lacan e, seguindo Bassols, tomo um autor, Heller Roazen (Ecolalias,
sobre el olvido de las lenguas), que afirma que existiria uma espécie de
interrupção a partir do momento em que aparece o Outro que fonetiza o sujeito.O
sujeito quando chega ao mundo, a criança, o bebê, tem uma possibilidade
amplíssima de emitir todo tipo de sons, que é infinita e, no entanto, há um
momento, quando se incorpora à linguagem, em que sofre um tipo de amnésia, há
uma perda dessa memória para que seja introduzida a linguagem do Outro; isso é
a fonetização.CLIPP: É o que instaura o
próprio inconsciente.Ruth Gorenberg: Todas essas coisas
podem ser vistas na criança, como o Outro fala, a família fala, somos falados
pelo Outro e, de alguma maneira, a análise implica um desmantelamento dessa
linguagem do Outro. Tem de ser feito um trabalho com essa linguagem que, em
síntese, tem muito de fantasmático, porque é a maneira como o Outro disse. De
que maneira a análise, mediante a transferência, pode desmantelar essas
significações? Algo que trabalho muito com relação à voz é a relação
som-sentido, onde há um trabalho a ser feito. Em um testemunho de LuisTudanca,
reconheço muito isso. É como se houvesse alguma coisa de sentido no som. Os sons
também vão adquirindo sentidos. Quando, por exemplo, você fala comigo e eu
interpreto que você está brava, o que é isso? É outorgar um sentido
fantasmático a um som. O que faz a análise é conseguir, a partir do tratamento
do fantasma, um esvaziamento do sentido-som. Há vários testemunhos de passe:
por exemplo, o de Anna Aromí. Adoro o testemunho dela e o utilizei muito. Ela
diz, a respeito do final da análise que, depois de dar muitas voltas, ela pôde
isolar algo no ninar da mãe que, ao invés de acalmá-la e de fazê-la dormir,
transmitia-lhe algo do sentimento trágico da vida. Temos aí, então, o
som-sentido. O mesmo som que para outro bebê é algo que o faz dormir e o
acalma, a angustiava. Mas estamos totalmente imersos nesses sonsNo quinto capítulo,
« La voz del objeto a: um objeto diferente », abordo o tema da psicose.
Como pensar o objeto voz com relação à alucinação. O objeto que não foi
extraído e retorna no real. No sexto capítulo, « El analista ‘soporte’ del
discurso analítico », estão os testemunhos de Laure Naveau, Anna Aromí,
Luis Tudanca, Marcus André Vieira, Marc Strauss. Utilizo esses testemunhos para
articular com a questão relativa ao objeto voz e como foi tratado na análise.CLIPP: Estes exemplos de passes
são de pessoas que tinham o objeto voz como principal?Ruth Gorenberg: São testemunhos de
passe em que se destaca o objeto voz, mas obviamente nunca é um único objeto
que está em jogo.CLIPP: Você também aborda a
questão da modernidade, da ciência e da tecnologia.Ruth Gorenberg: O que coloco em
discussão é a pergunta quanto à possibilidade de analisar por Skype ou
WhatsApp. Na prática, a verdade é que muitos de nós recorremos a esses recursos
nos dias de hoje. Mas, levado a um extremo, parece-me que isso vai além do que
é a oferta da modernidade, dos tratamentos pela imagem. Pensamos que não é
possível realizar uma análise in absentia ou in effigie. Na
verdade, é um questionamento das terapias comportamentais, os coachings
que dão indicações, os tutoriais pela internet, tudo o que circula através da
imagem. E o que eu digo é que me parece que a relação com o objeto voz é
fundamental para o progresso da análise e é necessário que seja na
transferência e en-corps. Fundamental é a presença do analista, que
permite que a análise se desenvolva.CLIPP: Quer dizer, não basta
somente a voz. É necessário que o corpo do analista esteja presente.Ruth Gorenberg: Sim, falo aqui da
presença do analista, mas principalmente digo que uma psicanálise atravessa a
experiência do sonoro, na abordagem do fantasma. Porque, mesmo que seja por
Skype, o que importa é o trabalho do analista com relação ao seu próprio objeto
voz, resguardado dos fenômenos de sugestão.CLIPP: Para terminar, quais
foram as ressonâncias do livro? Como você tem trabalhado agora a questão da
voz, depois dele?Ruth Gorenberg: No ano passado,
apresentei o livro em outubro, em Barcelona. Também foi apresentado por Miquel
Bassols e Anna Aromí; isso está na Rádio Lacan. Além disso, Lidia Ramírez,
responsável pela Biblioteca de Barcelona, fez uma resenha, publicada na última Freudiana.
O livro também foi apresentado na EOL por Luis Tudanca, meu orientador de tese,
Fabian Naparstek, Guillermo Belaga e Ines Sotelo. O livro foi apresentado
também na sede da NYFLAG de Nova Iorque e causou interesse, realmente tem me
aberto muitas portas. Enfim, continua a investigação.Nesse momento, estou
escrevendo minha tese de doutorado, na UBA (Universidade de Buenos Aires) sob a
orientação de Inés Sotelo. Continuo trabalhando o mesmo assunto. Agora estou
especialmente interessada em articular a questão do objeto voz ao último ensino
de Lacan. Alguma coisa nesse sentido está no livro « O imaginário em
Lacan » compilado por Luis Tudanca, Graciela Milano, Paula Gil e por mim,
publicado este ano pela Grama. Também consta de outro livro que acabou de sair,
produto de um cartel integrado por vários colegas da EOL, « Conversaciones
sobre Lacan em Bloque », cujo responsável é Leonardo Gorostiza. Este último
é produto de três noites na EOL. A primeira noite se chamou « Adeus ao
objeto a? » e meu texto intitulava-se « Existe a canção do
psicanalista? » Como vocês vêem, continuo no mesmo tema.Entrevistadoras:Marizilda Paulino – Diretora Geral da
CLIPPKátia Ribeiro Nadeau – Diretora de Ensino
da CLIPPDaniela de Camargo Barros Affonso –
Diretora de Biblioteca e Publicações da CLIPPEstabelecimento: Daniela de Camargo
Barros Affonso
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