Agradeço à organização dessas Jornadas e sua presidente Flory Kruger por esta ocasião para, em nome do X Congresso, convidar vocês para esse encontro.
Vocês poderiam se perguntar: Por quê, em meio a um momento tão rico e como o dessas Jornadas, se deva parar para mudar a conversa em direção a um encontro ainda porvir? Por quê não simplesmente aproveitar este momento aqui e agora? Quero, em alguns minutos, indicar em que o Congresso para mim tem uma especificidade que o justifica.
Cada Jornada de cada Escola, em seus múltiplos temas, é um avanço que só cada comunidade pode fazer. Mas sua grande heterogeneidade se ordena em um momento em que todos vão se dedicar ao mesmo tema. Toda nossa comunidade em tantos países se movimenta com relação a um encontro que é também a convergência do trabalho.
Não tenho dúvida de que somente o trabalho impressionante dessa comunidade, somente o esforço coletivo de uma comunidade heterogênea, mas orientada, como a nossa, pode estar à altura do que se exige da psicanálise hoje: sustentar o presente (e o futuro) da psicanálise em seus efeitos de real e não de sentido. E isso sem concessões com o obscurantismo e à cientificismo que nos assola de toda parte.
Por isso o Congresso se dá ao luxo de tomar para si um tema que exige de nós um giro mental a mais. Afinal trata-se de tomar o inconsciente em outro plano que não o de uma verdade recalcada. No entanto, foi exatamente assim que Lacan definiu, para começar, a experiência do inconsciente, como uma experiência de verdade.
Ele definiu o inconsciente como o encontro com Outra fala na própria fala e ao mesmo tempo a experiência desse encontro. Texto e hiância, uma verdade recalcada e ao mesmo tempo acontecimento para alguém da verdade. Assim Lacan resolve a dicotomia, a psicanálise tanto é uma terapia como um método de investigação e autoconhecimento porque é uma experiência de verdade. Mais que conhecer a verdadeira verdade sobre si mesmo ela é a certeza de que há uma verdade e que ela pode ao menos ser meio-dita. E isso muda e melhora a vida.
Ora, a verdade não tem mais o mesmo cartaz. Há tantas situações, na política, por exemplo, em que todos estão tão fora verdade que a busca da verdade não faz sentido. Basta percorrer a lista que Foucault estabelece para definir a concepção clássica da verdade para ver como ela não está mais em cartaz. O que é verdadeiro se apresentaria como algo que se dá em sua forma completa, não compõe, é direto, sem rodeios e se mantém igual a ela mesma. Se olharmos bem são características que só vigoram no plano do que hoje é tido apenas como bonito, mas sem valor operatório. Puro, sem negociações, sempre igual a si mesmo, desde sempre ali, são as mesmas características do true love, do verdadeiro amor, dos filmes americanos. Tendem hoje a servir mais para sair do mundo do que para estar e agir nele.
Uma análise, porém, nos leva não apenas ao acontecimento da verdade, mas ao que Lacan chama de acontecimento de corpo.
A expressão serve a Lacan para convocar um aspecto do corpo que não é do corpo com que nos deitamos e levantamos, mas daquele que transborda sua imagem, essa que encontramos no espelho, às vezes com sustos, mas que nos assegura que somos nós mesmos. Refere-se à presença de um gozo que é corporal, mas que não se localiza no corpo. No máximo, entre os órgãos, como propôs Freud para localizar seu inconsciente.
Seu valor de acontecimento e subversão é o mesmo, só que nem tanto como furo no saber e sim como a surpresa, e a certeza, de que a vida que a gente tem não cabe na vida que a gente leva.
Uma análise é a certeza de que somos mais que nós mesmos e que isso conta. Quem duvida de que nossos corpos aqui reunidos são parte integrante para o acontecimento que são estas Jornadas? E quem não sente que o acontecimento que elas são se situa muito no plano que está além do que os corpos são capazes de entender, anotar, decorar, aprender?
O X Congresso da AMP nos propõe examinar o valor clínico, epistêmico e político do inconsciente como experiência do acontecimento de corpo, examinar a ação, na psicanálise deste plano, o do sinthoma, com “h”. O inconsciente como corpo falante é o inconsciente como falante no corpo que produz e sustenta um acontecimento fora do sentido, mas não fora da vida e não fora da linguagem. É o tropeço – na vida de todo dia – com lalíngua e suas ressonâncias como sítio da substância gozante do corpo. Uma análise permite que se esteja à altura do acontecimento deste gozo, que às vezes chamamos de feminino, às vezes de opaco, do Um. Só se apresenta para um só, mas não é solidão porque é sempre encontro com algo mais.
Não é imediato. É necessário que a análise transforme a fantasia, essa matriz do discurso de alguém, sua ideologia particular, para que possa acolher o acontecimento de corpo, que não dá a mínima para ela.
Muita gente prefere outra coisa. Neste sentido, peço-lhes o direito de fazer um desvio, um flashback sobre um acontecimento suspenso.
Assembleia da ECF há quinze dias, véspera das Jornadas, 3400 inscritos. Viva discussão sobre o “localismo”, sobre a tendência de alguns a se satisfazer com as atividades locais da Escola, mais que as atividades nacionais ou internacionais. Alguém lembra que a transferência é localista, quer alguém perto, um corpo de carne e osso para investir, reclamar, viver as emoções de proximidade. No entanto, se uma análise faz alguma coisa é trazer a esse playground a presença de encontros inesperados com dizeres em aberto. Há outras paixões em jogo em uma análise. J.-A. Miller lembrou como essa questão é antiga, como já há vinte anos, alguém defendia que a libido de nossas comunidades se concentrasse nas atividades locais, e como a escolha da AMP sempre foi, desde então e até hoje, a mesma. Buscar a constituição de uma comunidade analítica de trabalho. Uma comunidade, não porque as pessoas se conheçam, porque no, mas ao contrário, que estejam prontas a trabalhar juntas em prol de um acontecimento. Que cedam da libido investida em suas relações de proximidade em prol de uma aposta, nas surpresas que lhe aguardam em um horizonte aberto. Essa fala de Miller me marcou ainda mais retrospectivamente diante da noite escura, escura como nunca havia visto, que se sucedeu demonstrando como quantos preferem à próxima vida e não esta.
Para nossa aposta na surpresa do acontecimento, há muito o que fazer. Muitos são os caminhos que o esforço de trabalho do Congresso tem percorrido para materializar nossa opção pelo acontecimento. Vocês encontram no site, que concentra um mundo de coisas, os papers, textos de orientação, mas também vídeos, entrevistas e também a possibilidade de reserva dos mais variados hotéis de todos os preços e sobretudo, a possibilidade da inscrição. Não deixem de se inscrever logo. A inscrição exclusiva para os membros se encerra em dois dias e a expectativa dos não-membros é grande.
É preciso se deslocar, estar no momento e apostar no que do corpo é aberto, desconhecido, mas ao mesmo tempo concreto. Para materializar essa concretude, com a ironia que ela merece, Ana Lucia Lutterbach teve a ideia de que cada um materialize esse “algo mais” de si mesmo trazendo um pequeno objeto para o Rio. Uma pieça avulsa. Inspirados na colagem do cartaz, de Vik Muniz, faremos a nossa, com estes tantos objetos resto, peças soltas, ao longo do Congresso no hall do Sofitel, para compor uma figura como a do cartaz, mas do nosso corpo falante.
Tragam seus corpos assim como suas peças avulsas! Quem sabe com ela poderemos bricolar um acontecimento? Não é o que ocorre em muitas situações clínicas? Nelas o acontecimento se produz bem mais pela ação de peças avulsas, pela pulsação e ressonância que o sinthoma engendra que pelos ditos que o veiculam.
Neste mesmo sentido ainda, para concluir, trouxe um pequeno vídeo, realizado por um colega do Rio Lourenço Astua, que me pareceu muito feliz ao trazer o falante do corpo neste espaço entre-dois, entre os corpos que se encontram, mas desde afora deles, como as peças soltas, que circulam em suas ressonâncias, nas vozes que se ouvem, nos ritmos e ondulações da palavra.