Editorial
Esse número da ‘online’ trata da particularidade dos recentes acontecimentos na França e a repercussão destes em outros lugares, razão de querer iniciar este editorial compartilhando com os leitores uma nota que escrevi para LQ – Lacan Quotidien – a respeito de minha estadia em Paris, e cujo título expressa bem o momento vivido: « Uma brasileira no epicentro do mundo ».
« Na véspera de minha partida para Paris, recebi pela CNN a notícia do atentado ao periódico Charlie Hebdo. No avião, sobrevoando Chartres, anunciam que a aterrissagem seria adiada por causa de uma tomada de reféns no Hyper Casher, no dia 9 de janeiro (um curtíssimo fechamento do CDG desencadeia um tráfego muito intenso). Para minha rotina anual São Paulo – Paris, desde 1986, em janeiro ou em abril, quando acontece o Congresso da AMP, a experiência dessa semana parisiense foi muito particular: reencontrei os colegas da ECF, todos investidos de um acréscimo do gosto francês pela polêmica; a agitação nos cafés pós Marcha de domingo; mas também a vigilância por todo lado, não somente nos museus, como sempre; uma desconfiança; todo mundo saindo de um estado de choque.
Na América, todos conectados no Facebook, Twitter, televisão; muitos com inveja de que eu estivesse lá. Os primeiros LQ, « Pour Charlie », foram celebrados com frenesi e os tradutores surgiram espontaneamente de todo lado. Os textos de Jacques-Alain Miller eram esperados para se tentar apreender as questões: o periódico seria movido por um ideal? Por dinheiro? Por uma pulsão de morte que nos arrasta a todos? Seria a superação da linha pulsional provocando uma viragem sublimatória? Felizmente, com o LQ novamente cotidianos, nos nutrimos em dose diária dos comentários, testemunhos, reações, etc. Uma mensagem recebida de São Paulo no dia seguinte à Marcha: « Você está no epicentro do mundo! ». Sim, todos os olhares convergiam para a França, para Paris; estar no epicentro do mundo se torna uma responsabilidade: ficar a par, percutir, refletir, ou seja, erguer-se à altura desse epicentro, conectado à subjetividade de nossa época.
A noite de 13 de janeiro, na École de la Cause Freudienne, também adquiriu um contorno especial, cada AE (Analista da Escola) dando um testemunho do modo como era tocado pelos acontecimentos da semana anterior. De volta ao Brasil, fora do epicentro, me valeu a leitura do Lacan Cotidiano, para seguir atualizada a respeito do esforço de elaboração que se mantém com vigor. »
Este número de Opção Lacaniana online contempla as quatro crônicas de Jacques-Alain Miller, as primeiras de uma série que se iniciou logo após os atentados e seguem sendo publicadas no hebdomadário parisiense Le Point. Todas dão conta do esforço de elaboração empreendido pelo autor e cada uma, quase sempre, tece uma hipótese sobre qual poderia ser a questão em jogo.
E mais, ainda sobre esses acontecimentos, temos uma leitura atenta sobre o princípio da laicidade, este fortemente atingido no dia 7 de janeiro de 2015.
O termo ‘acontecimento’ conjuga-se bem com o tema do trauma, ou seja, como desde Freud entender o trauma à luz da realidade psíquica? A dialética interno e externo, como se articulam na experiência analítica? Tragédias são acontecimentos necessariamente traumáticos? São essas as questões levantadas e argumentadas nos textos sobre o tema.
E para abordar a contemporaneidade suscitada pelos eventos na França, nesse número há textos que tratam da violência do supereu como imperativo do gozo, resposta dada ao discurso do politicamente correto que tenta através de leis controlar, normatizar, o que é pulsional.
Concluo, para dar lugar a vossa leitura, com um fato da semana, que bombou na Web, o mistério do vestido azul-pretinho básico, que uns viam como branco-douradinho básico, o que vem a calhar para nos mostrar que nem todos enxergamos a mesma coisa, algo que a psicanálise insiste em afirmar como sendo da parcialidade das visões que na experiência analítica pode levar a singularidade absoluta, uma forma de lidar com as diferenças radicais existentes entre os seres falantes.
SUMÁRIO
Je suis Charlie
Uma minoria oprimida
Os mal-entendidos do trauma
O traumatismo anterior ao nascimento
Trauma e linguagem: acorda
Trauma, uma nova perspectiva sobre um real
Os sombrios poderes do supereu
O supereu no discurso politicamente correto