«O escabelo que precisamos»
Sobre o livro O real atualizado, no século XXI, por Guy Briole
O oráculo se enganou: o declínio do Nome do Pai não atinge a psicanálise. Porque esta teimosia de anunciar seu fim inevitável?
Na época do real sem lei, onde os discursos dominantes querem fazer desaparecer toda singularidade em normas para todos, a psicanálise lacaniana resta viva e guarda seu poder de subversão.
Assim, nosso contemporâneo se endereça sempre ao psicanalista. Sua demanda inicial é sem reflexão: se precipitando em interrogar o analista do que questionar sua própria responsabilidade de sujeito. Addict à felicidade em kit, ele crê nisso. Esta sensibilidade marca sua transferência e sua relação ao dispositivo analítico. Sua busca encontrará outras saídas na intimidade dessa experiência inédita.
Contingência, imprevisibilidade, ruptura, inconsciente real e transferencial, resistência, desmontagem da defesa, marca no corpo são algumas das palavras que falam dos tratamentos de hoje em dia. O analisante é tomado pelos pedaços de real sem rumo, desenlaçados, que suscitam angústia, mal estar, fenômenos de corpo, etc. Como inventar suturas e nós singulares em cada percurso analítico? É menos questão, na direção do tratamento, desenovelar conflitos do que considerar outros enovelamentos, que permitem um saber fazer com isso, com o real.
Neste livro, os psicanalistas da Associação Mundial de Psicanálise falam dos tratamentos que conduzem, e de seu próprio percurso, a partir de um aggiornamento de suas práticas no século XXI.
O real atualizado, no século XXI
Este volume faz eco ao IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, que aconteceu do dia 14 ao dia 18 de abril de 2014, em Paris, prolongando-o.
Pensado e construído a partir das intervenções apresentadas durante as sessões plenárias e de outros trabalhos que marcaram a preparação do congresso, reúne textos (retomados pelos intervenientes ou redigidos especialmente para esta publicação) escritos por psicanalistas de todas as Escolas da AMP, mas não somente, por filósofos, cientistas também.
É então uma nova obra que, pontuada pela Conferência de Jacques-Alain Miller, «O inconsciente e o corpo falante», é o escabelo que precisamos para dirigir o olhar para o X Congresso da AMP, no Rio, em 2016.
O real atualizado, no século XXI, publicado pela Escola da Causa Freudiana, Collection rue Huysmans, e disponível a partir de agora no ecf-echoppe.com e na livraria das 44ª Jornadas da ECF.
A narco linguagem e o silêncio dos corpos, por Mariana Alba de Luna
O homem nunca cessou de inventar ao infinito maneiras de destruir o outro. Guy Briole (1)
Corpos sem nome
26 de setembro de 2014, Iguala, Guerrero, México. Policiais municipais, assistidos por narcotraficantes, barram a estrada e atiram em três carros de estudantes que passam na rua. Seis são mortos no lugar, alguns escapam, quarenta e três são levados à força. Desde então eles estão desaparecidos. Um dos corpos foi encontrado, mutilado, olhos esvaziados, rosto arrancado. « Le quitaron la cara », «levaram a cara dele», dizem seus companheiros estupefatos. Estes estudantes eram normalistas da escola rural Isidro Burgos da cidade de Ayotzinapa, berço dos «estudantes que recusam o destino do pequeno povo». Tal é seu slogan (2).
Ironia do destino, eles se preparavam para assistir a comemoração do massacre de Tlatelolco onde, em 1968, 5000 estudantes tinham sido pegos em uma emboscada orquestrada pela polícia do exército. Os desaparecidos se contavam às centenas. E o povo, sob terror, tinha acabado por se calar.
Após a confrontação recente, várias fossas comuns foram descobertas, contendo corpos não identificados, selvagemente mutilados. É moeda corrente na região de Tierra Caliente onde, mais do que em outros lugares, reina a narcodelinquência. Um movimento de protesto dos estudantes se levantou e ganhou as cidades de todo o país, dando de volta rosto àqueles que queriam deixar sem nome (3). Cada 2 de outubro, desde 1968, o grito de Tlatelolco ressoa e volta nas bocas em cólera na Praça das Três Culturas, lugar do massacre: ¡Vivos los conocimos, vivos los queremos!, «Vivos os conhecemos, vivos os queremos!». Mas, desta vez, as bocas designam um culpado: ¡Vivos se los llevaron, vivos los queremos!, «Vivos os levaram, vivos nós os queremos!». O «nós» de Tlatelolco, grito de solidão coletiva, o único possível de assumir, se transformou em «vocês» acusador.
Anteriormente, nomeávamos desaparecidos os militantes políticos levados pelo regime em vigor. Há alguns anos, emprega-se a palavra de levantados (4) para designar os «não importa quem» que se leva «para não importa o que», com a firme intenção de semear o terror e de impor o silêncio. Na verdade, os mortos são abandonados na via pública, portadores de mensagens de advertência escritas à faca em seus corpos. Estas práticas se intensificaram desde que não há mais separação entre os poderes políticos corruptos e os grupos do crimen organizado, o «crime organizado». O conluio, a colaboração, destas duas entidades antagonistas não deveria jamais ter se produzido. Daí nasceu um narco Estado (5) e, com ele, com toda impunidade, tornaram-se costumeiras práticas de tortura cada vez mais bárbaras, visando diretamente a destruição da identidade subjetiva. Sobre os corpos dos mais pobres, e no entanto tão parecidos com nós mesmos, derrama-se uma sombria pulsão arcaica, multissecular, sempre em obra. É a rejeição, o inquietante estranhamento do outro, o unheimlich freudiano. Para esses carrascos, o rosto das vitimas é apenas o espelho onde resta fixado o insuportável, o incessante ódio em relação as nossas origens ancestrais.
A repetição sem fim desses atos inadmissíveis, e sua midiatização, terminaram por agir sobre a linguagem, que se encontra infestada por essa conspiração dos poderes. No entanto, a palavra narco é anexada a uma multiplicidade de palavras em uma simbiose letal: narcodélincuencia, narcoestado, narcopolicia, narcopoder, narcogobernador, narcocultura, narcomundo, narcofamilia, narcocorrido, narcofosa, narcofinancias, narcoterrorismo… O narcoglossário modificou para sempre a língua do povo mexicano onde as regiões do crime e do direito se frequentam perigosamente sem fronteira, nem distinção. A presença social do narcotráfico nas palavras se espalhou tal um vírus de linguagem. «Ele esconde suas raízes, na própria lógica da proibição e de medidas institucionais que eram supostas combatê-lo» (6).
O uso dessas palavras repetidas infinitamente conduz a «tirar todo sentido dramático e trágico de um caso criminoso» (7). As palavras do discurso narco viram eufemismos, a linguagem do crime se socializa. Uma pessoas não é mais sequestrada, mas levantada, não mais assassinada, mas ejecutada, deixando supor de maneira implícita que ela merecia um tal destino. Nota-se que o dicionário dos Americanismos da Associação das Academias de Língua Espanhola integrou certas palavras como «levantón» (sequestro sem pedido de resgate; a vitima é destinada a transformar-se em um fantasma) ou «plomear» (cravada de balas, cheia de metal), que sobressai diretamente do universo do narcotraficante. O crime organizado conseguiu violentar a linguagem, tirando uma certa dignidade das palavras, sobretudo aquelas que se referem aos direitos fundamentais dos cidadãos. Os termos jurídicos, assim criminalizados, retiram de seu status as novas vítimas da Guerra Sucia (8).
O fim da solidão coletiva?
Tlatelolco é o traçado de um passado deixado sem solução, paradigma de uma sociedade levada a se calar e lembrança sangrenta de que o México é um pais onde a impunidade é lei. «Enquanto isso permanece assim, nós não fazemos nada além de construir na areia» (9).
Este novo massacre, após tantos outros desaparecimentos já denunciados (10), vai mudar alguma coisa? Notemos que aconteceu na cidade onde foi assinado, em 1821, o «Plano de Iguala» que colocou fim à guerra e conduziu à independência do México. Tlatelolco-Iguala-Ayotzinapa são as marcas territoriais de uma cadeia significante simbólica que nos reenvia as nossas raízes. Os estudantes-pobres, que quisemos reduzir ao status de caveiras macabras, abrem a via em direção a uma identificação mais real, a outros significantes de identidade mexicana: campesinos, indígenas, que despertam o união de todos os estudantes e de todos os sem-rosto, os sem-nome, os sem-direitos, levando-os a declarar: «Somos todos Ayotzinapa!»
O Parlamento europeu e a ONU pedem esclarecimentos. «O governo mexicano está confrontado a uma pressão crescente no país e na escala internacional, para que a luz seja feita sobre esse assunto enigmático, que jogou uma luz crua sobre a conivência entre as autoridades locais, policiais e narcotraficantes»(11). Cabeças começam a cair. O fim do narco-Estado vai enfim ressoar?
Intelectuais não hesitam em qualificar o país de «fossa comum coletiva» (12). Sob cada igreja construída, esmagaram e ocultaram uma pirâmide ancestral de corpos sacrificados pelos massacres sucessivos, desde a fundação de Tenochtitlan. A escritora Elena Poniatowoska declarou recentemente: «Estamos sentados sobre cadáveres» (13). Se o Estado de direita continua a se deixar infestar pela narcoviolência, o Estado não terá mais corpo nem rosto jurídico, arrancarão o dele também. Os mexicanos sabem rir da morte. Por hora é a morte que continua a rir em nosso nariz.
Notas:
1- Jornada «A guerra sempre recomeçada». Mons, Belgica, 11 de outubro de 2014
2- Desta escola, onde os estudantes preparam o concurso de professores das escolas primarias rurais, nasceu a primeira formação sindical de leaders dos estudantes e campesinos (agricultores) dos anos 60 e 70, o « Grupo armado del partido de los pobres », Grupo armado do partido dos pobres, criado por Lucio Cabañas (1967).
4- Ludovic Bonleux, http://www.lepetitjournal.com/mexico/accueil/actualite-mexique/196280-état-du-guerrero-des-desaparecidos-aux-levantados-un-demi-siecle-de-disparitions-forcees
5- O Mexico e divido em 31 Estados e um Distrito Federal, a cidade do Mexico, D.F.
6- « A ‘narco’ linguagem »,
7- Marco Lara Klahr, http://www.eluniversal.com.mx/nacion/183182.html
8- A Guerra suja: repressão militar e política no México durante os anos 60-70.
9- Ignacio Carrillo Prieto, ex-procurador fiscal em 68. https://www.youtube.com/watch?v=8FUdd6Wy3Qg
10- Os desaparecidos de Chihuahua (1993), Acteal (1997), as vitimas da « guerra contra el narcotrafico » lançada pelo antigo Presidente Felipe Calderon (2006) e denunciadas pelo movimento #YoSoy132 (2012), ou aquele recente de Tlatlaya (junho de 2014),
12-http://www.sinembargo.mx/06-10-2014/1135594?fb_action_ids=10152313361645974&fb_action_types=og.likes
13http://internacional.elpais.com/internacional/2014/10/16/actualidad/1413491532_534824.html?rel=rosEPCarta #AyotzinapaSomosTodos que você pode assinar :
«Que eles ou elas vão para o diabo!», fórmula odiosa que deseja ao próximo o inferno. Provavelmente, a extensão atual do ódio levou Le Diable (1) a se interessar a isso e eles nos entrega, em seu n°11, o resultado de suas buscas.
Primeiro o título: «Diga-me quem tu odeia» funciona como uma interpretação pelo equívoco, pois várias entrevistas e artigos convergem ou desdobram o tema, mas, de toda maneira, validam duas teses lacanianas sobre este afeto.
No eixo imaginário (a–a’) da relação ao semelhante, o ódio do outro é o ódio de si mesmo. Ele convoca também o Outro do simbólico, o Outro radicalmente Outro para o falasser.
Mas visa também o real, pois ataca o ser: «Eu odeio o teu ser». O artigo de François Regnault, «Odeie os felizes», o demonstra. Partindo da clínica da dupla Wagner odeia–Nietzsche o odioso, este soberbo trabalho constitui uma verdadeira lição lacaniana sobre o ódio. Da mesma forma, o trabalho de Agnès Aflalo coloca à prova do texto profético de Lacan na «Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola» (2) as novas formas tomadas pelo ódio no laço social tais como as Gated Communities; tantas novas formas de «segregação» e de «concentração», em tempos de paz.
10 entrevistas e 15 artigos descrevem e analisam o ódio em todos os seus estados.
Abordam-no pelo viés de diversos campos disciplinares: filosofia, teologia, sociologia, cinema, literatura e teatro. Mas também pelo viés daqueles que são odiados, quer dizer pelo ser que o ódio visa: judeus, negros, romenos, estrangeiros em geral, os insurgentes, os homossexuais, os jovens, os velhos, deus, as mulheres, etc., e pelo viés dos odiosos, aqueles que fazem disso um comércio, quer o façam pela política, pelo cômico, pelo dramático, pelo difamatório, o mistério ou o horror… Todas as modalidades da palavra e da escrita são mobilizáveis por esse delírio universal. Existe o racismo ordinário e o racismo extraordinário, o racismo do um sozinho e o racismo de massa, o ódio do um sozinho e o ódio universal. Alguns entram nisso de uma só vez, como se entra em uma religião, outros caíram dentro quando eram pequenos. Mas sempre a poção é famosa para garantir um gozo.
Este número da revista permite avanços. Assim, coloca em evidência que a ideia preconcebida na qual a causa do ódio e de suas inumeráveis modalidades, racismos, sexismos, homofobia, antissemitismo, misoginia, misologia(3), não é a crise econômica. Como diz claramente Michel Wieviorka: «É um erro ligar muito diretamente ou muito rápido crise e racismo, pois este último pode muito bem prosperar em conjunturas econômicas ou politicamente felizes» (4).
Isso pode ser um fator agravante ou revelador, ou até desinibidor, mas, certamente, não casual. Do mesmo modo, um militante antiracista pode muito bem dar mostras de uma misoginia decidida, ou ainda uma vítima odiada e maltratada pela sua homossexualidade chegar a escrever: «Cada contato de Sabrina com minha pele me levava à verdade do que se passava, de seu corpo de mulher que eu detestava» (5).
«Eu não vejo o porquê do ódio. […] Odiar é uma decisão no sentido forte do termo: não se decide odiar mas aí já se está decidido»(6), diz Raphaël Enthoven. E ele propõe: «É o ódio de si que se deveria combater para esmagar a besta imunda», opinião dividida pelo católico Jean-Luc Marion: «o ódio do outro se funde no final das contas com o ódio de si»(7). Mas então o ódio de si é a causa? Pode-se muito bem amar a si mesmo à loucura e odiar o Outro. O amor de si não parece uma solução muito confiável, porque ele participa do mesmo registro do afeto.
Fazer distanciar o «eu não quero saber nada disso»
Deve-se renunciar a saber a causa? Cairíamos na terceira paixão, a da ignorância, contra a qual este número da revista precisamente toma posição. Mais do que buscar A causa, ele opta por insistir em um querer do ódio saber alguma coisa.
Deixemo-nos ensinar pela literatura e voltemos à «Sabrina» de Eddy Bellegueule. E se a chave do ódio fosse o corpo dos falasseres? Este corpo que torna impossível a relação que o discurso faz espelhar, que ele promete e que não existe. A pista parece mais segura e o ódio das mulheres, universal, dividida tanto pelos homens quanto pelas ditas mulheres, aquelas que difamamos (8), ódio histórico e provavelmente pré-histórico, vem confirmá-lo. O aprofundamento de uma orientação lacaniana sobre este ponto teria sido útil, pois teriam sido permitidos outros avanços.
Urgência
Você compreendeu, «Diga-me quem tu odeia» é um número da revista a ser lido com urgência neste momento onde avança, cada vez mais segura de si mesma «a besta imunda». Como diz Anaëlle Lebovits-Quenehen em seu editorial, neste período em que as vitórias eleitorais de extrema direita na Europa não parecem nem mesmo provocar «um traumatismo republicano», como foi o caso na França em 2002, Le Diable probablement «se apodera dessa paixão que faz hoje seu eterno retorno, toma-a inteiramente e trata de extrair disso um saber e alguma lição» (9). É um número que enovela estreitamente a política e a ética.
Eu darei a ultima palavra a Claude Lanzmann. Para a questão «Para além do saber acumulado na realização de Shoah, Sobibor, do Dernier des injustes ou em um outro registro Pourquoi Israël, o que você descobriu quanto ao ódio? », ele responde: «Descobri o horror do que é a humanidade» (10). Freud e Lacan também. Trata-se de não recuar a ser tolo do real. Leiam.
Notas:
1- Le Diable probablement n°11, « Diga-me quem odeias. À propósito de algumas formas contemporâneas do ódio», Paris, Verdier, 2014. Disponivel em ecf-echoppe.com e na livraria das Jornadas.
2- Lacan J., « Proposicao do 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola», Outros Escritos, Paris, Seuil, 2001, p. 243-259.
3- O Diabo provavelmente n°11, op.cit., Lebovits-Quenehen A., Éditorial, p. 4.
4- Ibid., p. 122.
5- Ibid., p. 54.
6- Ibid., p. 13.
7- Ibid., p. 36.
8- Lacan J., O Seminario, livro XX, Encore, Seuil, Paris, 1975, p. 79 : « Disseram a mulher, a difamamos. O que de mais famoso na historia ficou das mulheres, e falando bem o que podemos dizer de infamant. »
9- O Diabo provavelmente n°11, op.cit., p. 7.
10- Ibid., p. 50.
Lacan por aqui, Lacan por lá
O «caso» Zemmour
Revelamos já no Lacan Quotidien que Eric Zemmour se apoiou por duas vezes em Lacan em seu Suicídio Francês. Vejam agora que um crítico exacerbado desta obra fez, ele também, referência ao nome de Lacan. Bruno-Roger Petit elogia Mazarine Pingeot por ter espetado um prego no escritor em um programa de televisão: «Não é de Gaulle, Mitterrand, Clémenceau, Pétain e outras figuras da história que é necessário convocar para levar o caso Zemmour à sua realidade, à sua « racionalização do ódio », que não é do pensamento, não, é Lacan que é necessário convocar. Mazarine Pingeot teve razão de questionar o caso Zemmour situando-o no bom terreno, psicológico antes do que político, ou seja, um afeto trabalhado pelo ressentimento. E depois, se dizemos Lacan, concluiremos assim: Mazarine, ma tsarine.»
(sobre o « Plus » do Obs, 7 de novembro de 2014 ; comunicado por N*)