O trauma é a melhor ocasião para recolher da experiência que somos um vestígio do desejo do Outro. O que nos afeta, nos assusta, nos angustia nos envergonha ou simplesmente nos dói[1], deixa pegadas que podem permanecer indiferentes em algum canto do passado mas, segundo a lógica temporal inventada por Freud e formalizada por Lacan, nos espreitam no futuro segundo o campo desenhado pela nossa sensibilidade. Nos futuros, seria mais preciso dizer, já que não podemos subsumir no singular o que ainda não tem acontecido[2].
Persistências inquietantes nas garras do imprevisível. O tempo retroativo faz com que « na análise a coisa caminhe na boa ordem: do futuro ao passado »[3].
Caminhantes foram os que fundaram as primeiras cidades. Assim como os traumas, as cidades são vestígios duradouros da detenção dos seres falantes nos cruzamentos de rotas, nos nós das estradas, como dizia Lacan quando avançava que a grande estrada não existe. Nesses nós nos aglomeramos, de um jeito viscoso acrescentava, fundando lugares de passo que confinam com o impasse[4].
A ficção mais potente de cidade que conhecemos é a bíblica Babel que pretendia ser Uma[5] e foi a maior metáfora da multipli-cidade; ela pretendia ser a escada aos céus e foi a Serra Pelada dos infernos, a maior figuração do mal entendido[6]. O cume invisível, engolido pelas nuvens, encarnou a noite do nosso desejo. Criaturas errantes, inquietantemente estranhas, decidiram acampar em torno de um sonho coletivo que se transmutou em pesadelo na hora de acordar.
O pesadelo contemporâneo, trauma nos corpos, violência nas cidades, é fruto desse vestígio duradouro que é o malentendido. Porém, diz Miller, “em nossos dias a cidade é uma lembrança. Não vivemos mais em cidades. A cidade existia na época do mundo fechado. Mas na época do universo infinito, não podemos senão ser deportados fora de um lugar. E a idéia de inscrever a particularidade do gozo na ordem da cidade é completamente inoportuna. O que se observa, pelo contrario, é justamente a pressão dos gozos individuais que abre à fragmentação do marco da cidade à pluralização da oferta”[7].
Silviano Santiago que sempre andava trás as malhas das letras disse em 1971 que América Latina era um entre-lugar (the space in-between). Entre Deus e o Diabo. Inquieto com essa mesma dificuldade, Torres García havia proclamado em 1936, em seu Universalismo construtivo, que nosso norte é o sul, idéia que materializou numa imagem, seu mapa América invertida (1936). Ação política possível dos deportados fora.
Parece-me encantadora a forma em que Eric Laurent diz o necessário: “O trauma se entende melhor quando ressoa sua origem grega: trôma, a ferida. Lacan nos fez compreender que se trata da ferida irreparável que faz lalangue sobre o corpo. É o traumatismo do nascimento à lingua. Noite do trauma, furo que bordeja a iteração do Um”[8].
Vivemos ontem que acontecimentos coletivos de potência traumática, por fundar-se na surpresa que irrompe estranhando a familiaridade, se dizem melhor em alemão, o Kränkung do Freud da segunda tópica.
Noite do trauma, atravessada pelas éguas da noite, como gostava traduzir Borges, o nightmare do pesadelo inglês, em cidades insones e viscosas, regadas de larva de solidão onde incubamos amoródio. O próximo encontro da Escola Brasileira de Psicanálise da de cara com a ferida, e ela desanda a falar.
* Expressão de Lacan utilizada no dia 7 de Janeiro de 1959, a lição 7 do Seminário 6, O desejo e sua interpretação, [7/1/59] em Le séminaire: Livre VI, Le Désir et son interprétation, Paris: Éditions de La Martinière. Le Champ freudien, 2013, para nomear o impasse traumático do sujeito com o falo.
Notas:
1-. FREUD, Sigmund, 1987 (1893a): “Esboço para a Comunicação preliminar de 1893” Obras Completas I. Imago, 1972.
2-. ENZENSBERGER, Hans Magnus, “Sobre la turbulencia”, El Paseante, N°12, Madrid: Ediciones Siruela, 20 pp.40-44.
3-. LACAN, Jacques. O seminário, Livro I. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:.Jorge Zahar Editora, 1986. p.184
4-. LACAN, Jacques. (1955-56) O Seminário, Livro 3, As psicoses. Aula XXIII, Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 321-332.
5-. MONTOYA, Pablo http://nel-medellin.org/blog/diez-reflexiones-sobre-ciudad-y-literatura-1/
6-. O malentendido fundamental, único traumatismo. LACAN, Jacques. «Le malentendu». Ornicar ?Nº 22/23, 1981, p.12
7-. MILLER, Jacques-Alain . “Filosofía <>psicoanálisis “ em Virtualia N° 11/12 Septiembre-diciembre 2004. (p. 7)
8-. LAURENT, Eric”Trauma Blitz », Interview Le moment de conclure, para as « 43èmes Journées de l”ECF : Les traumatismes dans la cure analytique », Paris, 2013