Travessias de pragmática lacaniana, por Françoise Haccoun
Sobre Encontrar sua solução com a psicanálise de Elisabeth Pontier
« A análise é o único dispositivo que permite avançar na noite opaca e singular do gozo » (4)
Leitor, você não pode ler o livro de Elisabeth Pontier sem um consentimento íntimo em endossar a responsabilidade dessa questão primeira: « Ainda queremos acreditar no inconsciente e no sintoma pelo que ele contém de mais real, de mais singular e de mais vivo em cada falasser? » (5) Esse fio vermelho destaca outro: o que o discurso analítico pode prometer àquele que aí se envolve?
Essa obra é ética e política
Leitor, você não pode ler o livro de Elisabeth Pontier sem um consentimento íntimo em endossar a responsabilidade dessa questão primeira: « Ainda queremos acreditar no inconsciente e no sintoma pelo que ele contém de mais real, de mais singular e de mais vivo em cada falasser? » (5) Esse fio vermelho destaca outro: o que o discurso analítico pode prometer àquele que aí se envolve?
Que outra fórmula tão próxima do real como a enunciada no prefácio de Guy Briole, poderia delinear o que está em jogo nessa obra? « Vazio, furo, falta, ausência, as vicissitudes da vida conduziram esses sujeitos a preenchê-los com uma solução sempre particular » (6). Esse título surpreendente, Encontrar sua solução com a psicanálise, permite supor que haveria receitas prontas para o uso. De modo algum. Extraiamos um a um cada termo: encontrar/sua/solução/com/a psicanálise. Eles se declinarão no caso a caso em uma sucessão de significantes: descoberta, solução inédita e privada, a cada um sua fórmula, o vivo de uma clínica singular, invenção, bricolagem, enlace, entrançamento, nomeação, savoir-y-faire…
Trata-se de uma obra de casuística
Nenhum dos oito casos apresentados por Elisabeth Pontier faz série, o que faria objeção à sua tese extraída de uma lição freudiana tomada ao pé da letra: considerar a singularidade de cada caso sem saber prévio nem assegurado, sem técnica standard. Cada caso surpreende, é vivo e contém achados, descobertas inesperadas e contingentes. A definição de caso é tomada de empréstimo da etimologia, de casus, cadere, ou seja, aquilo que vem, o que está submetido ao encontro contingente. Afirmaremos que os casos apresentados são verdadeiros acontecimentos. A autora se deixa ensinar pelos dizeres dos pacientes que sabem, melhor do que ninguém, suas soluções singulares, « fazendo de cada um peça única »(7).
Trata-se de uma obra de praxis lacaniana
Sobre uma caixa de fósforos, Lacan lia a fórmula seguinte: A arte de escutar equivale quase àquela de bem dizer (8). Uma torção entre o analista – aquele que escuta – e o analisante – aquele que diz – é introduzida. Tarefas repartidas, nos diz Lacan! Não há análise sem analista. Definitivamente não se trata de uma obra de exposição de casos mas aquela de uma analista que se expõe a seu ato com « uma técnica de interpretação, cujo manejo exitoso exige certamente tato e exercício » (9). O analista se arrisca a descrever esse diálogo inédito nesse encontro único.
Em seu prefácio, Guy Briole nos lembra que « Lacan situou o desejo do analista no cerne de uma ética da prática cuja exigência é que ela tenha, a cada vez, que se reinventar »(10). Relatarei esses momentos cruciais dos tratamentos expostos a fim de extrair a emergência do desejo do analista em seu ato e de precisar como ele opera. Por suas manobras visando o real em jogo, Elisabeth Pontier se faz parceiro-analista dos sujeitos. Ali ela desvela os mistérios da transferência e de seus efeitos. Interpretações, nomeações, operam como corte contra o gozo: « É seu segredo » (11) diz ela a Claire para bordejar a ferida que constitui a impostura paterna. A Liliane, a fim de operar um afastamento entre dizer e dito de um Outro consistente demais: « É o que ele te diz, mas será que é isto que ele quer? »(12). O analista acusa recebimento da solução inventiva de Alice ao exclamar « Maravilhoso! Você é uma contista! »(13)
Trata-se de uma obra tecida pelos conceitos do último e do derradeiro ensino de Lacan
É a chave de sua leitura e da abordagem dos tratamentos desses falasseres do século XXI. A fala é a grande força da psicanálise. « Apropriar-se da língua » é a fórmula exitosa de Elisabeth Pontier para indicar que o gozo do corpo está enlaçado à linguagem. Os oito casos são atravessados por esse eixo que circula entre os poderes da fala e a língua que se goza.
Enfim, essa obra explicita uma clínica psicanalítica que responde à definição proposta por Jacques Lacan: « A clínica psicanalítica, é o real como impossível de suportar. O inconsciente é ao mesmo tempo sua via e a marca para o saber que ele constitui: atribuindo-se um dever de repudiar tudo o que implica a ideia de conhecimento »(14).
Notas:
4 – Pontier E., Trouver sa solution avec la psychanalyse, Éd. Lussaud, Coll. L’Impensé contemporain – Ghyom,
p. 100
5 – Ibid., p. 20
6 – Ibid., p. 12
7 – Ibid., p. 22
4 – Pontier E., Trouver sa solution avec la psychanalyse, Éd. Lussaud, Coll. L’Impensé contemporain – Ghyom,
p. 100
5 – Ibid., p. 20
6 – Ibid., p. 12
7 – Ibid., p. 22
8 – Lacan J., Le Séminaire, Livre XI, les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973
9 – Freud S., Ma vie et la psychanalyse, chap. IV, Idées/Gallimard, Paris, 196810 – Pontier E., Trouver sa solution avec la psychanalyse, op.cit., p. 11
11 – Ibid., p. 27
12 – Ibid., p. 39
13 – Ibid., p. 87
14 – Lacan J., Ouverture de la Section Clinique, Ornicar ? n°9, Bulletin périodique du Champ freudien, 1977
9 – Freud S., Ma vie et la psychanalyse, chap. IV, Idées/Gallimard, Paris, 196810 – Pontier E., Trouver sa solution avec la psychanalyse, op.cit., p. 11
11 – Ibid., p. 27
12 – Ibid., p. 39
13 – Ibid., p. 87
14 – Lacan J., Ouverture de la Section Clinique, Ornicar ? n°9, Bulletin périodique du Champ freudien, 1977
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Gett – O processo de Viviane Amsalem, por Eve Sarfati
Depois de Prendre Femme, que relata o aprisionamento de Viviane em seu casamento, seguido de Shiva, que descreve através do luto a pressão social e familiar exercida sobre as mulheres, Gett, última parte da trilogia de Shlomi e Ronit Elkabetz, se focaliza na coerção e na violência sofrida por Viviane devido à lei religiosa.
Viviane é uma mulher cheia de vida, voluntariosa e orgulhosa. Os sofrimentos que suporta em seu casamento durante vinte anos tornam-se agora insuportáveis. Seu sentimento de humilhação vai crescendo, e ela vê na separação com o marido frio, insípido e que se tornou praticante, o único meio de salvar sua consciência de si-mesma. Ela pede o Gett, o divórcio. Mas, segundo a lei judaica, isso requer o pleno consentimento de seu marido.
Elisha se obstina a recusar. Será que ele ainda ama sua mulher ou não suporta a ideia de que ela queira livrar-se dele a qualquer preço? Psicorígido, ciumento com a ideia de que algo, que não consegue definir, lhe escape, o esposo abusa de seu direito, meio que ele ainda detém de exercer um poder sobre essa mulher. E há nessa obstinação surda e cega sobretudo a última possibilidade de permanecer em contato com aquela que não o ama mais, fazendo-a sofrer. E então Viviane inicia um processo que durará quatro anos, tendo por reivindicação central, « a liberdade ». De que fala ela exatamente, uma vez que esse Gett, que ela reivindica em alto e bom som, não lhe será de nenhuma utilidade quanto aos direitos que ele concede? De fato, ela não quer outros filhos, não quer refazer sua vida, e não espera nenhuma indenização financeira.
Os tribunais israelitas encarregados dos casamentos e dos divórcios são religiosos, e a postura insolente de Viviane, refratária ao machismo ancestral, lhe traz prejuízo por princípio. O filme começa nos interrogatórios dos rabinos e aborda a questão do divórcio do modo mais absurdo possível, sob o ângulo de um direito arcaico radicalmente inadaptado à realidade social. Em todo tribunal, o divórcio é encarado a partir de seu aspecto mais frio, destacado da vivência singular e íntima da pessoa.
As quatro paredes asfixiando tribunais rabínicos ocupam todo o cenário; verdadeiras seções de tortura que Viviane padece até o fim, acompanhada de seu advogado. O que motiva realmente sua presença naquele local cuja autoridade ela não reconhece?
Todo mundo notará o fechamento da mente dos rabinos, seu machismo diante de qualquer « provação sentimental ». Mas o que faz bater o coração do filme não se situa aí. Trata-se de evidenciar, através do que esse tribunal opõe à vontade de Viviane de se livrar de seu marido, assim como na rigidez desse último, as molas que ainda animam o casal como tal, no momento em que a separação se impõe como inelutável.
Eles estão de acordo sobre um único ponto: sua vida comum se tornou um inferno. Mas o sofrimento que vivem, cada qual de seu lado, é diferente, e é nessa oposição que reside a impossibilidade de aceitar a mínima reivindicação que o outro tenta pronunciar. A compreensão do outro, a sensibilidade às suas expectativas, o diálogo, sempre estiveram ausentes dessa vida comum. Um semblante de consentimento não pode surgir na sala glauca de um tribunal em que reina um direito vivido como absurdo e arbitrário (qualquer que seja o direito em questão, mesmo que o filme Gett vá ao cúmulo desse aspecto dramático da aplicação da lei). É imenso o hiato entre o que diz a lei e essa configuração afetiva, feita dos sofrimentos passados e da dor desse momento que marca o fracasso. Ele se revela um suplício suplementar insuportável, pois transforma o tempo do processo em um último episódio desse casamento fracassado…
No seu primeiro terço, o filme parece estirar-se no vazio e no insípido da miséria. A sucessão dos testemunhos percute profundamente os desafios em jogo em uma separação, as falas progressivamente acentuando o que contribuiu com o fechamento de Viviane e de seu marido. Em seguida o cenário se desdobra com uma força inaudita, transcendendo os limites do espaço confinado do tribunal e atravessando o tempo da relação como um todo. As trocas são pungentes, coloridas por toda a palheta dos sentimentos que oscilam em um casal, entre amor, afeição, hábito, apego infantil, animalidade de um pathos pendente, dores indizíveis, raiva, resignação, vontade de assassinato ou pelo menos de aniquilamento do outro. A ternura desapareceu, restam apenas as paixões tristes, o rancor e os remorsos ligados à pressão familiar e social, assim como a culpabilidade de ter de suportar ter-se tornado aquele que acusa, que pleiteia, que se defende, que pede que seja feita justiça pelos outros.
Os homens esperam o respeito, as mulheres demandam amor, consideração. É isto que se conclui dos interrogatórios.
Será que a harmonia entre os homens e as mulheres, separados pelo que os constitui, é possível ou deve permanecer para sempre como um ideal inacessível? Não há um mal-entendido constitutivo em todo casamento? Viviane não foi nem espancada nem traída, mas contrariamente a seu marido que não integrou que estar casado não se limitava a se alienar ao outro, ela sonhou com uma relação, com um olhar, com um reconhecimento de sua existência pela vida em comum, dessa coisa que justificaria essa escolha que ela fez « assim »… O tempo passou, ela já não se lembra sequer do que a motivava no dia em que entrou nesse inferno. Ela colocou no mundo quatro filhos, e pensa que foi por eles que permaneceu vinte anos sob o teto desse homem. Hoje, ela gostaria de reparar algo desse equívoco de si mesma, arrancando-se dessa situação à qual seu marido e a lei querem condená-la por toda a vida.
Em um casal em fracasso, frequentemente, quem decide partir é aquele que amou. Pois os sentimentos que o marcaram por toda a vida permanecem a fonte de um sofrimento inextinguível uma vez que não está na presença do outro. Muito além do que pode provocar os golpes, a indiferença daquele que se instalou em um contrato protegido pelo direito fere aquele que amou; aquele que provavelmente fez tudo o que podia para ser amado. Aquele que nunca se ligou ao outro de maneira diferente do que pelo hábito, certamente o detesta há muito tempo, e isto relutantemente. Mas o fracasso pelo qual ele talvez (enfim) se sinta responsável, torna-se o que o impede de partir. Esta seria a pior das confissões que ele teria a fazer sobre sua pessoa e sobre sua vida.
O Gett, – e qualquer outro procedimento que formaliza a separação de maneira geral -, diz o casamento como ao avesso do que significa. A substituição de um pathos vivido no íntimo, e toda a singularidade de uma história subjetiva, opera por um fato objetivo que atesta a desconstrução do casal, de modo público e sob a forma universal que o direito lhe dá. O procedimento obriga a ouvir e a fazer ressoar para todos o que ainda é invisível, uma vez que a Lei não o subsumiu sob uma generalidade previsível, e enquanto os juízes ainda não deram o veredicto.
É exatamente isto que é insuportável para Elisha, e é o Viviane busca, a qualquer preço, mesmo entre as paredes desses tribunais que ela abomina.
A única coisa que separa definitivamente um homem e uma mulher para sempre ligados pela intimidade que viveram (mesmo depois de seu divórcio) é a diferença de representação, e portanto de estatuto, que eles dão ao que foi vivido. No caso de Elisha e Viviane, um procura persistir no que vive, aceitando seu sofrimento uma vez que está escondido. Deste modo ele se opõe ao outro que deseja mais do que tudo colocar essa incompatibilidade às claras a fim de tentar se desfazer do que ela significa quanto a si.
A única separação verdadeira reside então na possibilidade de destacar os protagonistas pela afirmação pública do que os opõe: como cada um pensa, sente e vive suas expectativas decepcionadas, seus sonhos quebrados, a discórdia, o sofrimento, e o fracasso.
•Aos autores e editores
Para a rubrica Crítica de Livros, queiram endereçar suas obras a NAVARIN ÉDITEUR, la Rédaction de Lacan Quotidien – 1 rue Huysmans 75006 Paris.
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Tradução: Teresinha N. Meirelles do Prado
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes