Grandes Braços abertos – Cracolândia
Séries brasileiras, a crônica de Angelina Harari
Algum tempo depois das manifestações de junho de 2013 em São Paulo, que levaram os brasileiros a sair às ruas em uma multidão imensa para denunciar os 11 bilhões de dólares gastos na Copa do Mundo e exigir investimentos igualmente maciços nos transportes, na saúde e na educação, os poderes públicos municipais decidiram intervir no bairro da Luz («Lumière»). Situado no centro da cidade, esse bairro, conhecido como um lugar muito arriscado, é chamado de Cracolândia; sua população encontra-se em grande vulnerabilidade sanitária e social. Os manifestantes que protestavam, a revolta social histórica que sacudiu o gigante emergente, e os consumidores que utilizam crack, tudo isso, teve como efeito, entre outros, o de bloquear as ruas, de tornar difícil para a vizinhança o ir e vir, a circulação de carros, criando na cidade uma atmosfera caótica.
No início de 2012, o afluxo na Cracolândia de quase 2000 pessoas presentes dia e noite, conduziu as autoridades civis a intervirem com a ajuda da polícia militar. Essa intervenção repressiva teve como saldo uma compulsão de internações compulsórias! Suscitando vivas críticas aos poderes públicos, essa medida mostrava a que ponto estes últimos estavam desorientados por essa desobediência civil.
Uma experiência nova iniciada em janeiro de 2014 marcou uma mudança em relação ao efêmero sucesso do manejo da força – dito de outro modo, uma contra-experiência alternativa à repressão do uso e do tráfico do crack. Ela começou no Centro de Acolhimento Intersetorial e chamou-se «Grandes braços abertos» que, se podemos dizer, põe a cargo o corpo, foram convidados a mudar de território graças a ofertas de alojamento (uma cama para dormir e banho). Isso foi seguido de uma diminuição dos atos de violência, e um largo avanço do programa municipal «Os grandes braços abertos».
Aparentemente, nada muito diferente do «Housing First’programme» visando a redução dos riscos e prejuízos da droga. Conhecido em vários países antes de inspirar a iniciativa, «Os grandes braços abertos», é um programa que consiste no alojamento daqueles que vivem nas ruas – essa oferta foi vinculada a poucas condições: a abstinência da droga não era exigida. O projeto brasileiro que alia alojamento, alimentação e um trabalho remunerado, é orientado para a autonomia. No horizonte, a perspectiva de se tornar locatário do alojamento – em vez da inserção em centros de tratamento, inserção que não tem nada de evidente para os desinseridos, os SDF, os sem documentos ou os que não têm documento de residência exigido pelos centros.
O programa da municipalidade de São Paulo visa à reabilitação social sustentando o laço entre os profissionais e os indivíduos. Ele propõe que os intersetores intervenham reunindo as secretarias do Trabalho, da Saúde, da Assistência Social e dos Direitos do Homem. Outra garantia dos direitos e da cidadania da população em jogo, é gerir a ocupação desse bairro do centro da cidade, historicamente degradado com más políticas e gestão pública. Trata-se de oferecer um telhado, certamente, mas também alimentação e um contrato de trabalho remunerado de quatro horas diárias. O simbólico é também embelezar essa zona degradada no plano arquitetural e imobiliário, considerando que se trata de um trabalho de varredura e de jardinagem. O embelezamento da cidade é mesmo uma questão de segurança, pois um fluxo de 1500 pessoas cria uma atmosfera de insegurança nas paradas de ônibus e deve ser evitado pelos idosos, mulheres e crianças. Outro risco constante é o roubo nesses bairros.
Em conjunto com os programas federais de luta contra o crack, um grupo executivo municipal (GEM) foi criado no início da gestão municipal por um prefeito do Partido dos Trabalhadores. Esse grupo inclui representantes da sociedade civil e de centros de pesquisa.
A psicanálise está presente aí? Como? Por que evocar essa nova prática dos poderes públicos voltada à Cracolândia, voltada a esse fenômeno do século XXI que se estende até ocupar uma parte cada vez mais importante do centro da cidade? É também importante evocar que esse projeto visa produzir sujeitos-cidadãos, projeto sem dúvida inspirado pela psicanálise, pois inclui os profissionais da saúde que têm uma prática orientada pela psicanálise lacaniana, eles próprios orientados como psicanalistas-cidadãos. Graças a Lacan, outro fenômeno tem encontrado crescimento no século XXI: a presença de psicanalistas de orientação lacaniana nas instituições públicas.
A proposta de um tratamento voluntário começando pela inserção dos indivíduos na sociedade, com oferta de alojamento, de trabalho e de alimentação, é uma primeira tentativa para produzir um cidadão o qual poderá ou não se engajar em um tratamento. É aí que os profissionais de saúde mental entram em cena: atendendo nos centros de acolhimento, podem se constituir em destinatários, mesmo existindo os consultórios de rua e os centros de acolhimento de rua. Nos centros de acolhimento o engajamento se faz um por um sem que o praticante vá ao encontro daquele que vive na rua, contrariamente ao que se faz nos consultórios de rua. Para além disso, o sucesso ou não do programa, que suscita aprovação ou oposição segundo a posição política de cada um, para além de seu uso político neste ano de eleições, agiria em condições de produzir o «sujeito-cidadão»? Um cidadão que se engaje num tratamento aparentemente sem coação!
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LIDO HOJE, por Éric Laurent
10 de junho de 2014
A consciência e a cifragem.
A artista performática Marina Abramović, famosa nos USA e no Canadá, da qual Ruzana Habkobyan falou no Congrès d’Athènes da NLS, em 2013, tem um grande projeto: introduzir, um por um, os sujeitos à pura presença.
Lido no Prospecto n° 219, junho de 2014, o artigo de Hephzibah Anderson, « Sangue e ossos ». A artista performática Marina Abramović passou fome e cortou a si mesma pela arte. Poderá sobreviver como celebridade? » :
« Embora os jornalistas sempre perguntem a Abramović o que faz de seu trabalho arte, essa é uma questão que ela tem perguntado a si mesma, uma vez que coloca seu projeto mais amado, o Instituto Marina Abramović (MAI)… um centro para aperfeiçoamento no assim chamado « Método Abramović », um extrato de tudo que ela aprendeu sobre consciência em suas viagens, passando tempos com Aborígenes, místicos Sufis, monges Budistas e, mais recentemente, uma mulher Shaman no Brasil. Os visitantes assinarão um contrato, declarando permanecer por seis horas, deixando longe seus pertences – em particular telefones celulares – e vestindo aventais brancos de laboratório. Levando uma hora para beber um copo de água ou para contar meia dúzia de grãos de arroz, tornar-se-ão mais habilitados para experimentar arte ou fazer performances. « Não podemos mudar o mundo se não mudamos a consciência », diz ela.
11 de junho
de 2014
O inconsciente e a cifragem
O inconsciente é para todos: escolham uma cifra e serão traídos por um viés de suas línguas e por um viés de suas crenças. A novidade em relação ao Freud de « psicopatologia da vida cotidiana » é que os pesquisadores estão persuadidos de que o inconsciente está nos neurônios. Os que foram mais longe na busca do marcador individual são os iranianos, na excelente revista de Isfahan, Journal of Medical Signals and Sensors. O Iran, é o Kêtman (Écrits, p.140) das centrifugadoras aos algoritmos.
Lido em Le Monde de 11 de junho de 2014, suplemento Ciência e Medicina, o artigo de David Larousserie, «Le cerveau, probabiliste par nature ?» :
«Pedir para escolher ao acaso um número entre 1 e 9. Pensam que as respostas seriam uniformes, tanto de 1, de 2, de 3… ? Pois bem, não. Um terceiro escolherá o 7 e 3% somente o 1, lembra o matemático e professor do Laboratório de informática fundamental de Lille (Universidade de Lille) Jean-Paul Delahaye, em um artigo de Pour la science em março de 2006. «Acreditamos por muito tempo que isso ocorria porque o 7 não tinha propriedades matemáticas particulares, mas outras experiências mostraram que isso era válido apenas na Europa ou Estados-Unidos.
Outros países « preferem » o 2, o 3… É portanto uma tendência cultural», explica Nicolas Gauvrit, professor-pesquisador da Escola de altos estudos do laboratório Cognições humana e artificial (CHArt). Este último, tal como Jean-Paul Delahaye, quis saber se o cérebro é um bom gerador de números aleatórios ou não, como eles explicam no Behavior Research Methods de dezembro de 2013. Assim, 68 crianças de 7 a 11 anos foram convidadas a imaginar puxar oito vezes uma pilha (na realidade um jogo de cair e tombar sobre o verde ou vermelho). A conclusão é que o
cérebro serviu-se de rodeios e que ele tem a tendência de evitar as séries simples, compreendendo por exemplo a alternância vermelho-verde
[…]
Outros projetos parecem mais loucos. Recentemente uma equipe italiana do Instituto de neurologia em Roma estudou em Neurobiology of Learning and Memory o efeito do movimento de estimulações transcrânianas em relação à qualidade da geração ao acaso pelo cérebro.
O resultado é que parece ser melhor se exercitar que injetar uma corrente elétrica na cabeça. Uma equipe da universidade de Téhéran (Iran) gostaria mesmo fazer dessa atividade um marcador biométrico, como explicou em 2012 no Journal of Medical Signals and Sensors: a escolha da sequência aleatória, assim como o ritmo de apoio sobre um botão seria suficientemente diferente entre os indivíduos para lhes distinguir. »
12 junho de 2014
A arte do Brasil
Não é suficiente ganhar o Mundial de 2014, e saber fazer as manifestações, é preciso ainda se nomear. Os super-heróis do blockbuster de julho têm uma onomástica única.
Lido no New York Times de 12 junho de 2014, o artigo de Christopher Clarey, «Brazil wins the name game»: « Robert Kennedy, who teaches a linguistics course on the language of sports at the University of California at Santa Barbara, suggested another element that makes the Brazilian nickname practice singular.
« I think where Brazil stands out is not in the fact they use nicknames or first-name-only in many cases for athletes, but in the way that they extend them to so many contexts, » he said. « These are the names that appear on the roster and on their shirts and what the press uses to refer to them. In contrast, athletes elsewhere have their formal surnames on their shirts, and this is how they’re referred to on rosters and in press accounts. »
[…]
As for this edition of the Seleção, the Brazilian national team now has 17 players who stick with a single moniker. And with Kaká not making the cut this time, no name speaks louder to an international audience than Hulk.
Nothing has been lost in translation. Hulk, born Givanildo Vieira de Souza, has said he got the nickname as a child because he loved comic book characters and his father started calling him Hulk when he played at youth level. »
(acima: Hulk)
O que faz os títulos de Monde ?
O que é mais raso que o título «O cinema é um esquecimento da realidade»? Se recolocarmos a citação em seu contexto e prosseguirmos a leitura, ela se torna claramente mais interessante. Godard permanece Godard, antes de tudo um narrador da História. Um fool Shakespeariano multidimensional: Simbólico, Real, Imaginário.
Lido no Le Monde de 12 junho de 2014, a proposta de Jean Luc Godard, recolhida por Philippe Dagen e Franck Nouchi, «O cinema é um esquecimento da realidade»: «Gosto muito de Clio, de Péguy. Clio, a musa da História. Ele dizia: «Não devemos apenas ler um livro, devemos nos instalar no livro… ». Eu o instalei nas Históriae(s) do cinema. O cinema não é uma reprodução da realidade, é um esquecimento da realidade. Mas se registramos esse esquecimento, podemos lembrar e talvez alcançar o real. É Blanchot que diz: «É a boa lembrança que é esquecida» (abaixo : Jean-Luc Godard)
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Tradução: Maria Ângela Mársico Maia
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes