«O negócio azul que existe entre a mãe e a criança»
Allons z’enfants (5), a crônica de Daniel Roy
Façamos a hipótese que uma primeira separação se opera, na própria escrita, entre Mika e seu cocô – separação que não havia podido se inscrever até então no universo significante entre sua mãe e ele.
Na sessão seguinte, Mika vai nos dar uma lição de saber viver para uso dos psicanalistas de criança. Isso toma forma daquilo que ele chama, de maneira justa, de um desenho animado com cinco quadrinhos:
1) não gosto da escola. Um personagem-criança está perdido entre duas formas geométricas antropomorfas, uma das quais está marcada com uma cruz.
2) um menino vai à escola / não gosto de ir à escola (sublinhemos que a criança até então nunca havia escrito). Há a criança e sua mãe que segura em sua mão um negócio azul, em direção ao qual o menino estende a mão, sem tocá-lo. É a mãe que tem o negócio azul.
3) um menino vai à escola / não, não quero ir à escola. A mãe está no movimento de estender o negócio azul à criança, mas a criança vira a cara com ar de nojo. A criança não quer receber da mãe o negócio azul enquanto que ela o tem.
4) você tem que ir à escola / segunda-feira não. A mãe imperativa (imperial?) está sorrindo. O menino fecha a cara e cruza os braços. Ele recusa. Ele é a recusa.
5) legal, eu gosto da escola. A mãe não está mais lá. O menino tem o negócio azul e vai em direção à escola. Está escrito em cima.
Mika nos ensina muitas coisas sobre o negócio azul que há entre a mãe e a criança:
1) que é ao se ligar ao gozo pulsional que ele pode se isolar como tal e permitir à criança não ser mais o negócio azul da mãe;
2) que a criança pode sempre recusar recebê-lo da mãe, ao preço de se privar de sua cor brilhante;
3) que a escrita é um bom meio de difratar esse brilho quando se começa a aceitá-lo;
4) enfim, que será sempre bom estar atento a essa pasta que circula entre mãe, criança, escola…
Obrigado a Mika e a Florence C. , que o acompanha em seus avanços dialéticos.
Depois de ter sido educadora durante muitos anos na escola primária, trabalhei três anos como professora em escolas especializadas num hospital dia. Comecei a investir os lugares esvaziando as coisas acumuladas durante quase vinte anos, numa sala sem nenhum atrativo, onde não havia nem caderno, nem caneta, nem livro escolar. No âmbito desse trabalho, vou relatar aqui o caminho percorrido por uma criança de 11 anos.
Quando cheguei ao hospital dia, essa criança não lia, não escrevia e não contava. Bastante agitada em seus gestos, ele podia prender o tempo todo os alunos e a educadora em discussões sem fim sobre tudo e qualquer coisa. Ele ameaçava me denunciar aos cuidadores por cada palavra pronunciada que se tornava para ele um dano grave. Várias vezes, em vão, eu lhe expliquei a grande banalidade ou o humor de minhas falas.
Dois fenômenos discursivos se alternavam:
1) A acusação daquilo que eu dizia, para me levar a experimentar um sentimento de culpa ( armadilha na qual eu tive muita dificuldade em não cair).
2) A enunciação de detalhes sem fim de cenas de sua vida cotidiana, em geral sem nenhum interesse, e sem laço coerente com o resto de seu discurso.
Quando a abundância de palavras se tornava invasiva, era muito fácil se empolgar, o que perturbava a classe toda. Então a criança não podia mais trabalhar de maneira alguma, os outros também não e seu discurso todo se punha a girar em círculo. A elocução, cada vez mais rápida, se acelerava mais ainda, para que todo mundo se perdesse numa confusão total.
1) Às acusações contra minha pessoa, eu levei seu próprio discurso aos limites do absurdo, lhe respondendo muito seriamente para ir me denunciar diante das mais altas instâncias, e eu consegui até mesmo fazê-lo rir, o que o fazia parar.
2) Quando se tratava de detalhes desdobrados muito rapidamente sobre sua vida cotidiana, eu lhe dizia, depois de escutá-lo um pouco para evitar feri-lo, para parar porque ele contava sua vida no lugar de trabalhar e que dessa maneira ele também atrapalhava todo mundo.
Ele reagia sempre muito mal, mas retomava o trabalho logo que eu acrescentava que o conteúdo de suas falas seria contado aos cuidadores e ao psiquiatra. O laço com os profissionais da medicina o sustentava.
Depois ele começou a ler sílabas, frases simples, e começou a ler. Ele quis ler todos os textos disponíveis, do CE1 ao CM2, com muita rapidez, e diante de todo o pessoal do hospital dia. E durante um ano, quanto se tornou um bom leitor, ele considerou que continuava a não saber ler, me acusando todo dia de abandoná-lo.
E eu devia então fazê-lo ler para lhe demonstrar, por meio dessa nova prova oral, que ele sabia muito bem ler. Mas ele não conseguia acreditar nisso. Ele pode, entretanto, integrar esse elemento novo em sua vida. Ele mergulhou na história do Conde de Monte Cristo, depois naquela da Ilha do Tesouro, feliz por devorar tão rápido quanto possível romances tão volumosos. Para ajudá-lo ainda mais, eu colei imagens ilustrando passagens desses romances. É um suporte que sustenta o trabalho de leitura. Ele ficava encantado com as histórias lidas e confiante em seus progressos.
Um dia, ele me diz que queria me abraçar porque eu o havia ensinado a ler. Eu lhe respondi que era meu trabalho ensinar a ler, mas eu compreendi com essa reflexão dele que ele sabia a partir de então que ele era um leitor.
Esse aluno me escreveu a palavra do final exatamente antes da minha saída do hospital dia, resumindo seu caminho na minha classe durante esses três anos.
«Eu vou lhe falar do meu projeto pessoal. Estou contente com o que o hospital dia me deu durante todos esses anos. A professora me ensinou a ler em momentos difíceis. Mas ela soube me deixar tranquilo nesses tempos de aula. Eu sei que às vezes eu fazia besteiras, mas porque eu estava triste. Mas a professora tem sempre a palavra certa para me recarregar.»
Aposta ganha na ilha da Reunião, para A céu aberto e pelo Courtil, por Annie Smadja
8h30, 31 de maio, dia J depois de vários meses de preparação, sob o sol dos trópicos ainda suave a essa hora matinal, Mariana Otero e Marie Brémond chegam ao cinema « multiplexo » cujo grande hall se enche de uma população mista, de todas as cores como sempre, mas também de todas as idades e condições : profissionais, estudantes, militantes, céticos, pacientes, famílias com crianças. Contra todos os prognósticos, A céu aberto vai encher a sala de projeção em Saint Paul da Reunião! Anunciado pela imprensa local, o filme foi projetado no dia 31 de maio numa bela sala de 500 lugares.
O Sub-Prefeito da Coesão Social e da Juventude, o Conselheiro Regional delegado para as pessoas descapacitadas que tem sede na MDPH, o Conselheiro do Reitor e Inspetor da Educação Nacional encarregado das crianças descapacitadas, três representantes de associações, um capacitador, dois diretores do setor médico-social, quatro psiquiatras infantis, tomam lugar na conversação ao lado de nossas duas convidadas, para debater com elas assim como com a sala.
Os participantes estão emocionados pelo filme e aplaudem M. Otero e M. Brémond, magníficas em seu engajamento e humildade. Seu tom justo e direto toca os espíritos. O talento da diretora levou os espectadores por caminhos que ela própria explorou. As intervenções de cada um são pertinentes e frequentemente sensíveis. Elas saúdam unanimemente o formidável trabalho do Courtil, o tempo tomado para ver e para compreender, o respeito, a implicação, a doçura, a alegria.
Um responsável político é « tocado por essa abordagem, estamos ali, estamos dentro, se trata do real, sentimos o ar, sentimos o sol, sentimos a terra ». Uma jovem, com uma elocução difícil, busca se expressar e vai encontrar como ponto final de sua intervenção entusiasmada um « bravo ». Interroga-se sobre as crianças. Alguém cita Jacques Lacan: « a psicose se caracteriza pela ausência de déficit » (1), outro, cita Antoine de Saint Exupéry: « é a Mozart que se assassina » (2).
Esse espectador se junta « ao estrondo de aplausos para saudar esse filme. Ele tem a força de mudar o olhar: no princípio, as crianças me perturbam, me assustavam, e depois, eis que eu me ligo nelas, eu começo a gostar muito delas. No final, eu me inquieto pelo que elas vão se tornar « .
As trocas continuarão no jardim do cinema, em torno das dedicatórias do livro de entrevistas de M. Otero e M. Brémond no Courtil (3) – o buffet apetitoso será pouco frequentado pelo tanto que os convivas estão ocupados em falar. Faltarão obras para se vender. Marie, muito assediada, nunca conseguirá se juntar a Mariana na mesa de dedicatórias…
Segundo as palavras da sala, escutadas naquela manhã: « Nos textos, na França, a vontade de levar em conta a particularidade da criança está bem firmada, mas nós ficamos, na maioria das vezes, na declaração de intenção. De fato, as iniciativas alternativas ou inovações são muitas vezes freadas. O seu filme, Mariana Otero, dá força para relançá-las ».
Uma mãe sonha um Courtil para sua filha autista. As associações de famílias querem fazer escutar uma voz distinta daquela até então dominante. Escolas, centros de formação, instituições, desejam prolongar o acontecimento. Uma personalidade política conclui: « Não se pode partir no mesmo estado daquele com o qual se chegou ».
Notas:
(1) Lacan J., De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité (1932), Paris, Seuil 1975, p.13
Tradução: Cristina Drummond