A ASA DE CORVO DE DESEJO, por Pierre Naveau
Quando seu filho Damis lhe conta que surpreendeu Tartufo fazendo a Elmire «a injuriosa confissão de uma culpável chama», ele não quer acreditar em nada disso. E que Tartufo, por astúcia, peça a ele, ao contrário, que creia naquilo que seu filho lhe diz – que ele é um perverso, um culpável, o maior celerado que jamais existiu e que Orgon deve expulsá-lo de sua casa como a um criminoso –, ele recusa, no entanto, a ouvir essas confissões que o perturbam em suas convicções e em seus acomodamentos íntimos.
Stendhal, depois de ter visto Tartufo, escreveu que ele não havia rido. Ri-se pouco, é verdade. Mas se trata justamente de uma comédia. Lacan diz porquê numa passagem muito esclarecedora na página 488 do Seminário VI : «Estamos na comédia cada vez que o desejo aparece aí onde se não o esperava.» O «dito» por meio do qual Tartufo define a si mesmo – «Ah, por ser devoto, nem por isso sou menos homem» – foi articulado por Molière inspirado pelo «dito» do herói na tragédia de Corneille Sertorius: «Ah, por ser romano, nem por isso sou menos homem». Mas, ao contrário de Sertorius, Tartufo não é um herói. Ele está aí para designar o que Lacan chama: «um mais além do pudor».
Por que Orgon não quer saber de nada? Porque não se espera que Tartufo comece a revelar a Elmire seu «ardor secreto» e sua paixão e que ele chegue a querer – franqueando assim ointerdito – tocar seu corpo (Luc Bondy põe com isso os pingos nos is). Tartufo, quanto a isso, não se detém. Ele declara a Elmire que ele não é um anjo, que é um ser de carne e que, se sua confissão lhe é insuportável, ela só se deve a seus encantos, reconhecendo assim que ele é sensível à tentação. Uma tal declaração só faz pôr em relevo a hipocrisia de seu famoso «Cubra este seio que eu não saberia ver» que ele dirige a Dorine.
É sobre este ponto que aquilo que François Regnault chamou «o desejo de Molière» está implicado: a mola da comédia tem a ver com que Orgon nada quer ver na medida mesma em que ele não espera que «seu» Tartufo manifeste seu desejo relativamente à sua mulher. Em princípio, diz Lacan, p. 488 do Seminário VI, «o desejo é algo que não se confessa». Que um tal desejo apareça no ponto mesmo onde deveria ser impossível que ele aparecesse, é esta « transgressão » que dá a esse drama familiar a dimensão da comédia.
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LIDO HOJE, por François Regnault
17 de maio de 2014
«Previsto para sábado, desmarcado e depois reprogramado in extremis para a quinta-feira de Páscoa às 10h30, o debate intitulado « A teoria do gênero, que gênero de teoria? « , com Farida Belghoul como convidada principal, finalmente aconteceu depois de intensas pressões exercidas pela geração montante. […] Encontram-se muitos dieudonistas*, como nas fileiras dos jovens UOIF [União das Organizações Islâmicas da França] que fizeram grandes esforços para que Farida Belghoul pudesse vir debater, observa um jornalista dito « comunitário ».
« Queremos que um homem, em sua virilidade, em sua missão de proteção da família, não assuma mais seus deveres? », pergunta Farida Belghoul a respeito do ensino destinado a lutar contra os estereótipos sexistas na escola.. Ela, mãe de três filhos, antecipa o ataque: « Eu, filha de um emigrado da Cabília, de extrema direita? » Haveria aí, a lhe dar ouvidos, contradição nos termos e nas trajetórias. « Tive belos diplomas que me fizeram renegar meu pai, minha religião, mas também os princípios da França. Ora, a França é o batismo de Clovis** », declama, como adepta à história sagrada dos reis, aniquilada pela Revolução ímpia. Além disso, continua, « as pessoas me têm por Joana d’Arc ». […] »Eu sou a favor dos estereótipos de gênero, proclama ela. Não sou a favor que um homem vista um vestido. A feminilidade deve ser respeitada, a virilidade também »»
Uma muçulmana pró-merovíngia tida por Joana d’Arc (apesar dos hábitos do homem dessa última!) e um tanto sexista, «Tudo é variado e ornado ao mais alto grau», como diria Leibniz. Imagino também Voltaire, partilhado entre as pérolas dos Diafoirus da teoria de gênero e as adagas de uma Bécassine cabila. (Acima, à esquerda: Farida Belghoul)
* Seguidores de Dieudonné M’bala M’bala, um comediante, ator e ativista político francês. Algumas de suas performances e associações têm sido controversas e ele foi condenado por anti-semitismo.
18 de maio de 2014
Il me revient quelquefois
Et je me deux
Je voudrais l’inconnu de ce pays du soir
(Algumas vezes me vem
E eu me ressinto
Eu queria o desconhecido deste país da noite
Por que esse poema ? Porque o li no «Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein», de Jacques Lacan :
«A cena de que o romance inteiro não passa de uma rememoração é, propriamente, o arrebatamento de dois numa dança que os solda, sob os olhos de Lol, terceira, com todo o baile, sofrendo aí o rapto de seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente. «E, para tocar no que Lol procura a partir deste momento, não nos ocorre fazê-la dizer um » eu me dois » [je me deux], conjugando doer [douloir] com Apollinaire?» [Outros Escritos, p.199]
Lido no Littré : «Douloir (se), verbo reflexivo. Empregado somente no infinitivo e ainda assim raramente; é pena que esse verbo tão cômodo e tão expressivo tenha caído em desuso. Sentir profundamente a dor, se queixar. […] Régnier ainda o empregou no presente: « Mas aquilo de que eu me ressinto (je me deulx) é justamente de outra coisa. »» (no alto, à direita: Guillaume Apollinaire)
Lido no Le Monde de 16 de maio de 2014 o artigo acertadamente vingador de Edgar Morin sobre La Marseillaise.
« La Marseillaise, que se a cante daqui por diante numa unanimidade espantosa, dos comunistas aos lepenistas, acaba de ser brutalmente mas justamente abalada. Isto não tem a ver com a ministra Christiane Taubira, que preferiu comemorar a escravidão se recolhendo em vez de cantar o hino que acompanhou todas as aventuras da França durante uma boa parte do século XIX, mas também as cruéis expedições coloniais, cobrindo com um véu glorioso os danos da colonização. Isto tem a ver com o ator Lambert Wilson, qui, em seguida às agitações antitaubirescos causadas pela direita, sentiu-se, de repente, envergonhado das palavras – racistas, diz ele abusivamente -, de fato sanguinárias e vingativas, da primeira estrofe, que se canta ignorando as outras. Como essa estrofe parece revoltante e absurda se se a coloca em nossa conjuntura atualmente pacífica, eu quis explicar porque me parece importante assumi-la assim mesmo. A primeira estrofe de La Marseillaise, que é a única executada, memorizada e cantada, surpreende. Esse hino de combate (ele foi o do exército do Reno) é inteiramente diferente dos hinos nacionais, que são quase religiosos e litúrgicos, à Nação (Deutschland über alles, «A Alemanha acima de tudo») ou à realeza, símbolo da Nação (God Save the King, «Que Deus salve o rei»). este hino de combate é um hino de alerta e de resistência à invasão dos exércitos reais conjurados. O perigo é, naquele momento, mortal para a República nascente. Seu caráter sanguinário está ligado a esse momento de exaltação, e mesmo de euforia vital. E, sobretudo, ele liga indissoluvelmente a identidade da República à resistência às tiranias. Ele liga, não menos indissoluvelmente, a ideia de República à ideia de França.
Estrofe 1
Vichy suprimiu essa primeira estrofe, por ódio da República, e apagou a resistência à invasão porque ele praticava a colaboração com o invasor.. Certamente, a estrofe que a substituiu tem sua beleza no «amor sagrado da Pátria», mas ela elimina a República da identidade francesa. Vichy era racista (e não a primeira estrofe de La Marseillaise, que é certamente sanguinária, mas na euforia guerreira). Ora, esse caráter sanguinário é abertamente repudiado pelo depois da vitória. (ver fim da estrofe 15).»
Eis o fim dessa estrofe 15:
20 de maio de 2014
«Diz-se que os povos felizes são aqueles que não têm história. Isto não é muito lisonjeiro para mim, diz ela. Mas analisemos assim mesmo. É preciso justamente analisar. Não tenho necessidade de dizer a você que é falso. Não há povos felizes. Mas este adágio, falso como todos os outros, introduz, como a maioria dos outros, uma distinção útil. Não somente há povos que têm uma história e outros que não a têm, o que coloca uma questão inteiramente outra, infinitamente mais grave, mas, e é aqui que hoje estamos, há períodos de tempo em que há história, e períodos de tempo em que não há. Dando precisamente a esta palavra de história o sentido destas articulações visíveis, exteriores, aparente, grosseiras.
Nesse sentido, diz ela, não temos história. E, assim, estamos bem situados para saber o que há de pungente nessa situação. Nada acontece. Nada aconteceu.»