Sábado, 26 de abril de 2014 12h00 [GMT + 1]
NO 397
Eu não teria perdido um seminário por nada no mundo— Philippe Sollers
Nós ganharemos porque não temos outra escolha — Agnès Aflalo
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Flandres européia e Europa flamenga
Até que enfim! (4), a crônica belga
Até que enfim! (4), a crônica belga
de Yves Depelsenaire
No dia 25 de maio próximo acontecerão as eleições no Parlamento Europeu, mas, na mesma data, os cidadão belgas são também chamados a um duplo escrutínio, federal e regional. Será uma hora da verdade.
Depois das eleições precedentes, mais de 500 dias de negociação tinham sido necessários para chegar à constituição de um governo sem participação da Nieuw-Vlaamse Alliantie (N.VA), partido independentista vencedor na parte norte do país. A coalisão constituída pelos partidos socialistas, social-cristãos e liberais atrelavam-se então a uma reforma de Estado, a sexta em quarenta anos, transferindo numerosas competências às entidades regionais substancialmente refinanciadas.
Não o suficiente para satisfazer Bart De Wever, o líder da N.VA, que se tornou no ano passado burgomestre da maior cidade flamenga, Anvers. Mas muito habilmente, ele colocava na surdina as reivindicações institucionais para levar o debate para o terreno sócioeconômico. Esse discurso não deixava de seduzir uma parte importante da direita francófona do Movimento Reformador e um patronato pouco preocupado com a ideologia de extrema direita da N.VA.
As últimas sondagens creditam em torno de 35 % dos votos no 25 de maio. O PS de Elio di Rupo, apesar de sua popularidade pessoal, estando em queda livre, uma avenida se abre então no presente para Bart de Wever, como ele tinha aliás predito há três anos fixando duas condições para seu triunfo : Philippe sucedendo Albert II no trono e um Primeiro ministro socialista, di Rupo nesse caso.
Ao grande desejo de Bart De Wever de uma Flandres independente permanecem duas objeções de monta : Bruxelas, a capital encravada en Flandres mas 90% considerada como uma região inteiramente federal, e a Europa. Se a Flandres fizesse secessão, a sede das Instituições européias se encontraria de um golpe fora da comunidade dos Estados membros ! É por isso que, diferentemente das formações de extrema direita do continente, Bart De Wever multiplica as profissões de fé européias e toma o cuidado de sempre levantar a bandeira da União Européia ao lado da bandeira flamenga em todas as suas reuniões. O que restará então da identidade belga depois de 25 de maio ? Ainda não somente uma lembrança, sem dúvida, mas o lembrete pungente do caráter historicamente precário desta.
Como eu recordei recentemente no dossiê Trauma in Belgium do blog das últimas Jornadas da ECF, a Bélgica independente é um estado artificial. Ao mesmo tempo borgonhesa, espanhola, austríaca, francesa, holandesa, ela nasceu da sequência das guerras napoleônicas e do Tratado de Viena, da qual constitui uma espécie de peça tardia. Não sem mal, ela escolheu para si um rei na pessoa de um príncipe alemão, Léopold de Saxe-Coboug Gotha. Um vago sentimento nacional apareceu sob o reinado próspero de seu filho, Léopold II, aquele sobre quem Mark Twain denuncia as exatidões coloniais e ri dos sonhos de grandeza em seus Soliloques du Roi Léopold. Bruxelas era então a « cidade dos Sepulcros » do Coeur des Ténèbres de Joseph Conrad.
No século XX, as duas grandes guerras mundiais demonstraram que o Reino da Bélgica não fazia em nada o papel de Estado-tampão que ele deveria representar entre a França e a Alemanha. O território tornou-se novamente o campo de batalha eletivo que ele foi da Idade Média a Waterloo. Mas se da guerra 14-18 nasceu o mito (fabricado com todas as peças) de Albert I, Rei-cavaleiro, ao sair da guerra 40-45, a realeza vacilou ao contrário. Léopold III, que tinha escolhido colaborar com a ocupação nazista no lugar de seguir o governo exilado em Londres, foi obrigado a abdicar em favor de Baudouin 1, o rei triste. Em 1960, a independência congolesa o fazia agora um rei de um « pequeno país », cada vez mais profundamente dividido pela querela linguística.
Transformada em sede das Instituições europeias, a Bélgica encontra seguramente nesse novo papel uma certa aura. Um signo não engana : numerosas personalidades políticas, compreendendo aí os mais nacionalistas dos dirigentes flamengos, que tiveram por um tempo um papel nacional importante, não têm em seguida nada de mais pressionado que se fazer bombardear nos jornais europeus. Quem sabe ? Talvez não irá de outra forma com Bart De Wever ? Por hora, ele sonha primeiramente em ser liberador de uma « minoridade » de 62 % de cidadãos. (Procurem o erro !)
A identidade belga não é mais que o nome da divisão entre duas línguas e duas culturas mal casadas, nome do resto do Congresso de Viena, do qual ela é como o objeto caído, nome do vazio na borda do qual se encontram os habitantes de um país que se evapora. Mas a Bélgica é também hoje um sintoma para além dela mesma : sintoma de uma Europa sem alma, à imagem do aflitivo primeiro Presidente que ela deu a si mesma, Herman Van Rompuy, ex-efêmero Primeiro ministro, cidadão de Rhode-Saint-Genèse – oh perdão ! Sint Genesis Rood. Nesse último sentido, ela seguramente tem futuro.
Além do verdadeiro e do falso
de Philippe De Georges
por Joëlle Fabrega
por Joëlle Fabrega
Eis aqui um livro precioso e generoso. Ele pode ser levado para qualquer lugar, pode se abrir-lo ao acaso, para os leitores que podem, assim « andar de flor em flor », diz o autor em sua introdução. Philippe De Georges oferece vários níveis de leitura a partir de onde está cada um, tanto de sua própria cultura quanto de sua eventual implicação num trabalho analítico. As referências filosóficas, literárias, artísticas, religiosas, mitológicas lhe servem para esclarecer seu propósito a partir de diversas perspectivas. O discurso não é linear : como em análise, se avança decifrando-o. Esse poderia ser um romance policial onde o autor nos ensina procedendo a uma enquete com a ajuda de indícios, encadeamentos lógicos, de ir e voltar da reflexão, com seus impasses ou suas fulgurâncias.
Um acento vivo se associa aí ao rigor de Ph. De Georges, e se escuta, através de sua escritura, o som de baixo de sua sensibilidade singular, o fio vermelho de suas preocupações, sua pequena música ; somente em ler os títulos de suas publicações : Lições de Coisa, Ética e pulsão, A pulsão e seus avatares e enfim esse livro, Além do verdadeiro e do falso, com o sub-título Verdade, realidade e real em psicanálise1.
A introdução sob a forma de uma « Carta à minha editora » precede três partes e se conclui em « A sabedoria de Silene », considerada como « uma conduta de vida levando em conta a pulsão de morte ».
Na primeira parte, intitulada « O risco da verdade », o autor se dedica a uma genealogia da verdade de Parmênides a nossos dias passando por Platão, Sócrates, Aristóteles, Nietzsche, Foucault e, claro, Jacques Lacan. História, arte, política, literatura, poesia, cada registro é chamado para um desenvolvimento em torno desta noção de verdade. Ele interroga também os domínios da religião, da crença. A verdade figura entre as maiores questões filosóficas. Mas esta questão se encontra também na fala, seja ela a mais humilde, de nossos analisantes e de cada um entre nós. A verdade convoca a definição da realidade. A prática da psicanálise termina sempre por levar aquele que aí se engaja a confrontar a verdade às noções de realidade e de real. Ora o real lacaniano não é o real da ciência nem a realidade.
Assim Ph. De Georges trata do real na segunda parte, « Pequenos pedaçõs de real », onde ele recoloca esse conceito no ensino de Lacan, na diacronia de um pensamento em movimento. Ele aborda aí diferentes noções como os afetos, a mentira, a certeza, os semblantes, o objeto a, o traumatismo, o gozo, o grito, a pulsão. A psicanálise se confessa mais uma experiência que a demonstração de uma verdade. É uma operação que resulta no que se desenha no vazio o real do indizível. Não se trata somente numa análise de encontrar uma verdade mas de cercar um real. Não é questão por isso de desqualificar a verdade, mas como podemos ler, « de reconduzi-la aos seus limites ». Para não resultar no cinismo moderno, na canalhice, é preciso dar novamente à verdade suas letras de nobreza com o referente, exterior ao discurso, que é o real.
A terceira parte trata, então, da « operação analítica », dos « efeitos da fala na análise sobre o real ». Uma questão que preocupa Ph. De Georges desde seus primeiríssimos ensinamentos. A experiência analítica se torna uma operação sobre a qual o único que pode testemunhar é o próprio analisante, o que levou Lacan a propor o procedimento do passe. Esta parte retoma « a questão essencial do ato do psicanalista e dos efeitos da experiência analítica sobre a relação que mantém o sujeito com seu corpo e seu gozo ». O autor convoca de novo Foucault, mas também Derrida e Sartre. Ele aborda a questão da interpretação em análise, a manobra da transferência e o que faz insistência do lado do gozo sob a forma da repetição, da reiteração.
A vontade atual de recondicionamento dos sujeitos a uma norma é arranhada de passagem. Nossa « autoridade » se funda sobre esta « alternativa ao discurso do mestre », na contra-corrente da loucura avaliativa, permitindo ao sujeito retomar a fala para dizer sua verdade, em sua singularidade. Para isso, um consentimento é requisitado do lado do sujeito analisante « de ir além de seu sofrimento ».
O capítulo « Quiasmas » remete o trabalho na vertente da epistemologia psicanalítica. Tomando seu ponto de partida na fenomenologia, ele mostra o entrecruzamento dos pensamentos. São convocados Binswanger em seu diálogo com Freud, depois Lacan cruzando Jaspers, Kretschmer, Merleau-Ponty, Sartre, Heidegger, suas confluências momentâneas, suas trocas. Nós vemos como Lacan pede emprestado, subverte uma noção, um conceito, para reconstruir uma doutrina que, aliás, se alimenta, se irriga sempre da clínica.
A partir do ternário Simbólico, Imaginário e Real, o autor explora como se amarram essas três consistências e « como o nó que elas formam permite ao sujeito se sustentar ». Nós chegamos assim ao último Lacan, aquele que pesquisa « a diferença absoluta » e, deixando de lado toda categorização, todo sistema classificatório, se interessa por cada caso em sua singularidade. Além do verdadeiro e do falso, nos diz Ph. De Georges, a análise conduz a um puro « Há ».
[1] De Georges Ph., Par-delà le vrai et le faux. Vérité réalité et réel en psychanalyse, éditions Michèle, Paris, septembre 2013.
O irreprimível da tradução
por Marie-Christine Baillehache
por Marie-Christine Baillehache
Se a tradução interessa à psicanálise no século XXI, é porque, para além da significação de um texto, ela é um obstinado, preciso e alegre trabalho de extração do enigma de uma enunciação. A concepção lacaniana da barra saussuriana permite situar a tradução além de sua produção de significações, no nível da confrontação singular de um tradutor com o Outro barrado e com a parte irreprimível de sua própria divisão.
Lacan faz da barra saussuriana o que separa radicalmente o significante do significado, implicando que em sua leitura e sua escritura, o sujeito, confrontado a uma irremediável falta no Outro da linguagem, só pode aceder ao sentido pela articulação dos significantes entre eles e se encontra engajado em seu próprio « isso fala » que o divide entre seu sujeito de enunciado e seu sujeito de enunciação. Nessa falta, Lacan põe em jogo o objeto a mais-de-gozar . É girando em torno da falta do Outro com o gozo singular de seu próprio corpo vivo que o sujeito escritor e leitor consegue fazer se deslocar o significante, a fazer vir um significante no lugar de um outro, a fazer equivocar o significante, a fazer de sua leitura o objeto de uma tradução.
Cada tradução depende da escolha sempre singular de um tradutor de se fazer sujeito de sua enunciação e de engajar seu desejo inconsciente. Trata-se de que, para cada uma de suas traduções, esse tradutor coloca em jogo seu manejo singular do corte da castração. Manejo do qual é possível, com Lacan, identificar quatro tempos lógicos. No primeiro tempo, o tradutor, confrontado com um Outro para traduzir problemático, não quer o que esse Outro quer. À sua questão sobre esse desejo do Outro-a-traduzir, ele só pode responder fazendo-se desejante, já que o desejo do Outro é a fonte de seu próprio desejo. Esse segundo tempo lógico, onde o tradutor é convocado como sujeito em seu lugar de sujeito desejante pelo desejo do Outro, implementa a falta-a-ser do Outro barrado ao mesmo tempo em que coloca em jogo um objeto mais-de-gozar. O terceiro tempo da tradução é o do consentimento do tradutor a seu próprio desejo inconsciente disjunto de seu conhecimento da língua estrangeira e de sua própria língua. O quarto tempo coloca o tradutor se havendo com os « pedaços de real » que vêm contrariar o ideal de mestria da boa tradução formatada visando a adequação da língua a seu objeto.
Ao término desses quatro tempos lógicos do manejo da barra saussuriana, como Lacan a concebe, a tradução resulta e dá conta do ratear incessante do encontro entre duas línguas. Quer dizer que não se saberia traduzir sem consentir a uma certa « besteira », besteira sobre a qual Lacan nos ensina em seu Seminário Encore que é a « a dimensão em exercício do significante »1. Dimensão do significante pela qual o tradutor se confronta ao Outro barrado e não cessa de decifrar obstinadamente os significantes da língua estrangeira e da sua dita « materna ». Dimensão em exercício pela qual o tradutor consente em sua divisão de sujeito e não cessa de encontrar o real opaco de um objeto mais-de-gozar « deslizando » do qual é « Impossível parar o deslizamento em qualquer ponto da frase »2. Incessante « besteira » com a qual ele busca, no texto lido, a presença enigmática de um corpo falante e faz ressoar, naquilo que escreve, sua presença de sujeito dividido não suturando a falha no Outro. Além de sua produção de sentido, seu desejo segue e se dobra ao que há de fala no texto lido e procura produzir um texto que fala. Trata-se de que ele coloque sob os comandos de sua tradução este objeto real « que responde à questão sobre o estilo, […] a queda desse objeto, reveladora do que ele isola, ao mesmo tempo como causa do desejo onde o sujeito se eclipsa, e sustentando o sujeito entre verdade e saber »3.
Esse buraco do real que a psicanálise preserva sem suturar, Lacan o reconhece no estilo de Mencius : « Eu o apresento a vocês como alguém que, naquilo que dizia, sabia provavelmente uma parte das coisas que nós não sabemos quando dizemos a mesma coisa. É o que pode nos servir para aprender com ele a sustentar uma metáfora, não fabricada para não funcionar, mas da qual suspenderíamos a ação. É aí talvez onde tentaremos mostrar a via necessária. »4 Esta posta em jogo de uma metáfora que não capitona o sentido como o faz a metáfora paterna, Lacan nos dá disso sua experiência na sua tradução da palavra Tao (também escrita Dao). François Cheng relata como Lacan acolheu esse termo que em chinês significa ao mesmo tempo via e enunciação, arranjando um buraco em sua própria língua. « Para responder a esse duplo sentido do Dao, diz o Dr Lacan, propomos em francês o jogo fônico : a Via, é a Voz. »5
Se há tantas traduções quanto tradutores, a arte da tradução permite que um real que fura a linguagem passe pelas palavras.
[1] Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, Seuil, 1975, p. 24.
2 Lacan J., Le Séminaire, livre XVIII, D’un discours qui ne serait pas du semblant, Seuil, 2006, p. 50.
3Lacan J, « Ouverture de ce recueil », Écrits, Seuil, 1966, p. 10.
4 Lacan J, Le Séminaire, livre XVIII, D’un discours qui ne serait pas du semblant, op. cit., p. 53.
5 Cheng F., « Le Docteur Lacan au quotidien », interview par J. Miller, L’Âne, n° 48, octobre-décembre 1991, p. 52.
O real, a arte e o amor
Entrevista com Béatrice Wilmos
por Philippe Bouret
« A arte e o amor como uma sobrevida
ali onde a morte parece estar a ponto de vencer »
Béatrice Wilmos
Philippe Bouret – Béatrice Wilmos, li sua última obra Le cahier des mots perdus1 [O caderno das palavras perdidas] quase de uma só vez em uma noite. Marselha, 1940. Há Jeanne, a filha. Há Blanche, sua mãe. E esta cena que me capturou, no café da loja vermelha perto da Canebière, o ataque, a separação entre a mãe e a filha. Dramaticamente filmado por sua escrita, ela pontua o romance e o escande sob três ângulos diferentes. Três planos quase cinematográficos em torno dos quais você desdobra o tempo da solidão, o do medo, depois os tempo para compreender. Você descreve a cena ao avesso e prefere a lógica do sujeito à cronologia dos acontecimentos. O arrancar é mais violento porque é a mãe ela mesma que se joga no forgão de polícia para não ser separada de Thomas, o homem que ama desde a infância. Ela abandona sua filha no café, sem se voltar, da mesma forma como abandona sua bolsa. « Nada de identidade, nada de filha, nada de existência sem Thomas… » Jeanne vacila. « A dúvida é muito assustadora, por causa das palavras de Blanche, de sua súplica, me levem com ele, eu sou sua mulher ». Aí está, é bem « por causa das palavras » ! Esta última frase lançada aos policiais deixa a criança sem voz. A leitura do caderno encontrado na bolsa permitirá um curativo significante para o indizível. Diário de uma mulher amorosa. Aqui onde Jeanne buscava o amor de sua mãe, ela encontra o desejo de uma mulher. Caderno de palavras perdidas, caderno do indizível do gozo feminino. Minha primeira pergunta vai além do romance incluindo-o: o que é traumático ?
Béatrice Wilmos – Toda situação de ruptura é traumatismo. Mas eu não falo – ou não somente – da ruptura entendida como distanciamento de duas pessoas. Falo desses acontecimentos que, quando surgem, marcam uma ruptura na vida. Há um antes e um depois. O traumatismo explode no espaço que existe entre os dois, na « passagem » de um estado a outro : entre o que eu era e o que eu me tornei; entre o que constituía meu universo familiar e esse mundo estrangeiro e hostil que é subitamente meu horizonte, para o qual eu necessito de uma nova linguagem, de um novo olhar.
Para mim, esta ruptura, e então esse traumatismo, se incarna bem particularmente na perda da casa, e para ser ainda mais precisa, na perda da casa da infância. Eu reflito e vejo bem respondendo assim que é talvez a perda da infância que me parece ser o traumatismo. Mas isso não seria exato, no sentido em que não é somente a infância que desaparece com os muros familiares, o jardim, os barulhos e os cheiros. O que desaparece, é a possibilidade de se fundar sobre o que nos constitui profundamente – os « fundamentos » da casa, tomada quase num sentido simbólico – para se construir.
Ph.B. – A escrita tem alguma relação com isso ?
B.W. – Na escrita, e pela escrita, tento captar a maneira como podemos continuar a existir, sem sofrer nem sucumbir, remontando, pedra por pedra, o edifício de sua vida. O traumatismo fica mas ele transforma o ser interior, dá um outro gosto às coisas, modifica os laços, a percepção do tempo que passa…
Em meus romances precedentes, La Dernière sonate de l’hiver2 e L’Album de Menzel3, que se passam todos os dois durante a guerra na Alemanha e na Rússia, a questão é o desaparecimento das casas da infância. Os personagens transportam com eles esta dor da perda, da ruptura violenta com um universo familiar, do desaparecimento do que se cria imutável. Eles tentam entretanto sobreviver de início, depois viver, aceitando uma nova realidade, reduzida, dolorosa, mas que não se tornou menos a realidade de suas vidas.
Com a pequena Jeanne, abandonada por sua mãe em Marselha, trata-se ainda de uma ruptura. É esta expulsão brutal fora do amor materno que cria o traumatismo e projeta a filha na angústia. Pouco a pouco, ela sente entretanto aparecer nela um tipo de coragem, fraca no começo mas que irá se fortalecendo. Ela não fica mais congelada de medo. Ela se coloca a caminho mesmo sabendo que sua vida nunca mais será a mesma.
Ph.B. – É o sujeito-Jeanne que lhe interessa, quando ela descobre o desejo de uma mulher para além da mãe. Como essa passagem ressoa em você no momento da escrita ?
B.W. – Ao longo de todo o romance, deixei Jeanne ir. Nem previ, nem calculei essa « passagem » de que você fala. Mas tinha perfeitamente consciência de que ela vivia uma sorte de metamorfose interior, que a levava de uma infância temerosa, um pouco retirada da realidade, a uma tomada de consciência de sua própria força, de sua capacidade de viver os acontecimentos ao invés de se submeter a eles. Na cena que se desenvolve em Marselha, segui-a literalmente nas ruas em que ela se perdia. Ao mesmo tempo, seguia o que se passava pela sua cabeça : seu terror quando ela se vê abandonada, seus temores, seus pensamentos, a força de vontade que ela tem para vencer seu medo e ir em direção à vida real, no caso em direção aos espectadores que se divertem numa espécie de festa itinerante. A leitura do caderno marca uma última ruptura, um ponto de não-retorno : a filha pequena entra no coração da paixão de Blanche por Thomas. Não é mais sua mãe que fala e age mas uma mulher apaixonada. Daí, ela é excluída dessa identidade de sua mãe. Escrevendo tudo isso, eu me deixei levar pela trajetória de Jeanne através das páginas do romance, através dos incidentes e episódios que ela observa, sem compreênde-los. Eu a acompanhava com minha escrita… mas alguns passos atrás.
Ph.B. – Você evoca em seus romances os anos de 1940 na Alemanha e na Rússia. Mas é Berlim que ocupa uma parte essencial. Por que ?
B.W. – A descoberta de Berlim, no meio dos anos 1990, foi um choque. Essa Berlim só estava parcialmente reconstruída. Eu estava acompanhada em minha descoberta da cidade por um conto muito bonito de Jean-Michel Palmier : Retour à Berlin 4. A bússola de Palmier, em suas errâncias por Berlim, é imantada em direção ao passado : « O que me atrai nesta cidade, é menos seu presente que seu passado, sua atmosfera desrealizante, suas cicatrizes. Suas feridas me emocionam e eu jamais pude olhar seus velhos imóveis, suas ruínas de outra forma a não ser como enigmas a decifrar. » Claro, hoje, em 2014, a cidade é de uma modernidade extraordinária e é feliz. Mas eu continuo a acreditar, com Palmier, que « o passado sempre ronda, surgindo a cada canto da rua, para quem saiba decifrá-lo». Esta atração por Berlim não se confunde com uma fascinação mórbida pela guerra – que jamais evoco diretamente. O que me importa, é a tensão dramática que ela cria na vida dos homens, a obrigação que ela lhes impõe de voltar ao essencial de sua verdade interior. Uma frase do filósofo Teilhard de Chardin5 resume bem isso. Evocando sua experiência no front em 1917, ele escreve : « Pela guerra, uma rasgadura se fez na crosta das banalidades e das convenções. Uma janela estava aberta sobre os mecanismos secretos e as camadas do futuro humano. Uma região foi formada onde era possível aos homens respirar um ar carregado de céu.»
Ph.B. – Esta tensão dramática é apresentada em cada um dos seus romances e é sempre sobre a vertente do amor impossível que ela aparece. O que é para você esta amarração entre o amor, a arte e a guerra ?
B.W. – Em tempos onde o homem é confrontado a tais dramas que pode estar desesperançoso dele mesmo e de seus semelhantes, o amor e a arte têm o poder, me parece, de dar um sentido – mesmo que seja muito frágil – à vida. São, por exemplo, os habitantes de Leningrado sediada que acorrem, apesar dos tiros de artilharia, para escutar a sinfonia escrita para eles por Chostakovitch, cuja partitura foi trazida por um avião especial, forçando o bloqueio a despeito de todos os perigos. É Chalamov que, do gulag de onde ele está há mais de vinte anos, agradece Boris Pasternak por seus poemas cheios de uma vida e uma força « graças às quais as pessoas continuaram a ser seres humanos »6. Em meus romances, escolhi deliberadamente colocar num face-a-face amoroso indivíduos que deveriam ter se odiado. Num primeiro tempo, a arte lhes abre o caminho deste encontro impossível : na música, na pintura, no desenho, eles dividem uma mesma linguagem, um mesmo saber, um mesmo amor, uma mesma emoção… Fortes dessa linguagem comum, desse amor, eles podem se encontrar e desafiar o absurdo da guerra amando-se. A arte e o amor como uma sobrevida lá onde a morte está a ponto de vencer…
1Wilmos B., Le cahier des mots perdus, Belfond, 2013
2Wilmos B., La dernière sonate de l’hiver, Flammarion, 2007
3Wilmos B., L’album de Menzel, Flammarion, 2010
4Palmier J.M., Retour à Berlin, Petite bibliothèque Payot, Paris, 1989
5Teilhard de Chardin P., Écrits du temps de guerre, Grasset, Paris, 1961
6Chalamov V., Correspondance avec Pasternak, Gallimard, 1991
LIDO HOJE
por P-G Guéguen
por P-G Guéguen
23 de abril
Grandes soldos do sequenciamento: somente 720 euros !
« No último 4 de Março, celebrou-se uma reunião em Londres do mais alto nível entre os representantes da Global Allaince for Genomics and Health. Assistiram 150 das principais entidades públicas e privadas mundiais relacionadas com a investigação biomédica. Ali estavam as universidades de Stanford, Berkeley,John Hopkins e Oxford; o MD Anderson Cancer Center da Universidade do Texas, o Dana-Farber Cancer Institute, a Sociedade Americana de Oncologia Clínica e os prestigiados Institutos Nacionais da Saúde dos Estados Unidos. Também, por parte espanhola, o Centro Nacional de Investigaciones Oncológicas e o Instituto Nacional de Bioinformática. Não faltaram IBM, Google, as farmacêuticas Merck e Sanofi, a instituição britânica sem fins lucrativos dedicada à Saúde Wellcome Trust e o fabricante líder de sequenciadores de ADN Illumina. » Artigo de Jaime Prats, El Pais.
24 de abril
Divinos detalhes
« Ora não há nada que esta natureza me ensine mais expressamente, nem mais sensivelmente, senão que eu tenho um corpo que está indisposto quando sinto dor, que precisa de comer e beber, quando sinto fome ou sede, etc. E assim não devo duvidar de nehuma forma que não haja nisso alguma verdade. A natureza me ensina também por esses sentimentos de dor, de fome, de sede, etc., que eu não estou somente alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas, além disso, que estou conjugado a ele muito estreitamente e tão confundido e misturado, que componho como um só todo com ele. » Descartes, 6e Méditation, citado por Jacques-Alain Miller, conclusão do Congresso da AMP « Um real para o século XXI ».
25 de abril
Diferença entre os sexes
« Diferenças entre tecidos masculinos e femininos são frequentemente atribuídas à poderosa influência dos hormônios sexuais. Mas agora que os 12 genes reguladores são conhecidos como ativos através do corpo, há claramente uma intrínseca diferença entre células masculinas e femininas mesmo antes dos hormônios sexuais serem trazidos para atuar. » Artigo de Danielle Wiener-Bronner, The Wire.
Eles são os únicos ?
« Muito frequentemente, os economistas são, antes de tudo, preocupados com pequenos problemas matemáticos que só interessam a eles mesmos, o que lhes permite darem-se, a pouco custo, aparências de cientificidade e de evitarem ter de responder às questões de outro modo mais complicadas colocadas pelo mundo que os cerca. » Thomas Piketty, Le capitalisme au XXIe siècle, Seuil, 2013, Paris.
Lacan Cotidiano
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redação catherine lazarus-matet [email protected]
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edição cecile favreau, luc garcia, bertrand lahutte
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pelo instituto psicanalítico da criança daniel roy, judith miller
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