Sábado, 15 de março de 2014 -11h00 [GMT + 1]
NO. 385
Eu não perderia um Seminário por nada no mundo – Philippe Sollers
Nós ganharemos, porque não temos outra escolha – Agnès Aflalo
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O avesso do romance?
por François Regnault
por François Regnault
A propósito do Faiseur de Balzac encenado
por Emmanuel Demarcy-Mota
e apresentado no Théâtre des Abbesses
a partir de 18 março
Uma peça de teatro de Balzac? Sim, Balzac tinha uma fascinação pelo teatro e seus romances testemunham isto. Pense na ligação entre Lucien de Rubempré com a atriz Coralie em As Ilusões Perdidas. Em uma carta endereçada a Madame Hańska, – «L’Étrangère» – ele almeja um projeto de vinte peças teatrais sobre toda a sorte de sujeitos pertencentes à sociedade francesa, entre as quais Le Faiseur, consagrado a um «Saltimbanque de la Bourse dans l’embarras».
Três delas são encenadas durante sua vida com sucessos distintos. Sete tardarão.
Le Faiseur foi criado para a Comédie-Française em 1848, ele lhe fizera leituras apaixonadas, mas será recusada, muito tranquilamente, porque ele foi embora, para encontrar Madame Hańska em seu castelo d’Ukraine antes das repetições. Ele se casará lá com ela e retornará a Paris, doente, onde morrerá em agosto de 1850. A peça estréia no Théâtre du Gymnase em 1851, e na Comédie-Française somente em 1868. Charles Dullin a retoma em 1935 no Atelier, depois em 1948 no Théâtre Sarah-Bernhardt (atual Théâtre de la Ville), Jean Vilar, no TNP, em 1957.
Um «faiseur», o Lyttré – nos dá outra designação «aquele que faz alguma coisa» -, é tomado de forma ruim para designar um homem que faz «negócios pouco honoráveis». «Homem de negócios» existe também, e um romance de Balzac é intitulado assim. «Affairiste», como diríamos, data de 1928 (um ano antes da crise!).
Roland Barthes, que não apreciou muito o espetáculo em Vilar, em 1957, retoma a sua crítica, em seguida, e faz uma excelente análise da mesma: « Querer me consome». Ele se pergunta se não se trata de uma «obra-limite» de Balzac, como alguns escritores, eventualmente, as escrevem (La Vie de Rancé para Chateaubriand, Bouvard et Pécuchet para Flaubert!) [1]
A genialidade da peça consiste, no fundo em: Balzac percebe, com clareza, que era preciso fazer uma homenagem calorosa a Engels [2], em decorrência da virada causada pela Monarquia, em julho, e pela revolução de 1848 – tempo do crescimento dos negócios da burguesia em ascensão e do advento de um proletariado industrial, visto que a riqueza se baseará doravante, menos sobre a propriedade rural e mais sobre os meios de produção e sobre a especulação que os acompanha – O Manifesto Comunista, de 1847, é contemporâneo do Faiseur (começado por volta de 1837 e terminado em 1848).
Assim, o herói Mercadet, coberto de dívidas, ousa, ao longo da peça, com a arte de pagar suas dívidas e de satisfazer seus credores sem desembolsar um centavo[3], o que parece inspirar seu método para ganhar tempo junto a eles, até a arte de decidir negócios e determinar o curso das ações da Bolsa: espalhar novas catástrofes sobre uma mina de carvão (situada na Basse-Indre), de forma que os acionários vendam as suas ações para, em seguida, revelar que estas minas são altamente rentáveis, graças a que, ele e alguns outros Iniciados por ele (que souberam do segredo do blefe), comprarão as mesmas ações com baixo preço. Sua fortuna se fará a partir disto. Procedimento idêntico ao descrito em La Maison Nucingen.
A peça fascina pela conjunção entre especulação e teatralidade, na medida em que, a primeira, consiste em criar a riqueza a partir de nada (crédito, mentira, blefe; «o grande tema do Faiseur é, então, o vazio», diz Barthes). É onde o teatro suscita um mundo imaginário a partir da cena vazia, ela também, como todo ator, cria um personagem a partir dele mesmo.
O outro tema do Faiseur, se podemos dizer assim, consiste no genial partido légistimiste católico, ao qual Balzac pertence, dá provas de uma forma de penetração teológico-política proclamando que, de certa maneira, deve-se estar em dívida. É viver (expandir seu ser social) como se ter, fosse morrer.
Lembramo-nos que o Seminário o Avesso da psicanálise trata deste romance extraordinário de Balzac que é o Avesso da História contemporânea («L’Envers de la vie…», como ele intitula com um erro que faz jus a um sentido), Lacan declara: «Se vocês não o leram, podem ter lido tudo o que gostariam de ter lido sobre a história do final do século XVIII e começo do século XIX, a Revolução francesa, para dar seu nome; vocês podem ter lido Marx, mas não terão compreendido nada».[4]
Qual será o avesso do Faiseur? Nós o deduzimos desta alusão cósmica que o herói deixa escapar em um instante: «Qual será o homem que não morre inadimplente com seu pai? Ele lhe deve a vida e você não pode lhe pagar. A terra constantemente faz o sol falhar».
Assim, eu aproximei esta ideia de um outro Lacan, segundo o qual, depois do Cristianismo, «É por sermos responsáveis pela dívida, o mais responsáveis possível, no sentido mais próximo que esta palavra possa indicar, imputável» e acrescentar que: «sem dúvida a Atè antique [o desvario de Antígona] nos tornou culpados desta dívida, mas a renunciá-la como podemos agora fazê-lo, somos encarregados de um infortúnio maior ainda, de que o destino não signifique mais nada». [5]
Reencontramo-lo, pois, em um romance de Balzac, jogando com o avesso do teatro, revelando esta novidade Absoluta de uma dívida em que a especulação, aparentemente triunfante na cena, não seria mais que a busca vã. Como um bom número de seus Études philosophiques, são o avesso das Scènes de la vie «realistas» que compõem la Comédie humaine.
Infortúnio no qual a «crise», incessantemente de retorno, nos afoga.
Que o espectador eventual desta tragédia engraçada de Balzac me permita lhe deixar a surpresa de descobrir como a encenação seguinte fará deslizar e galgar os longos declives de uma cenografia tão flutuante como as ações da bolsa, as falhas retumbantes e a ascensão vertiginosa dos faiseurs que somos nós.
[1] Dans Essais critiques, paru dans Bref en 1957, et repris dans Œuvres complètes, tome II : 1962-1967.
[2] Friedrich Engels, Lettre à Miss Harkness d’avril 1888 : « Autour de ce tableau central [celui de la Comédie humaine], il brosse l’histoire de la société française, où j’ai plus appris, même en ce qui concerne les détails économiques […], que dans tous les livres des historiens, économistes, statisticiens professionnels de l’époque, pris ensemble. » Cité dans Karl Marx, Friedrich Engels, Sur la littérature et l’art, éditions sociales, 1954, p.318.
[3] Charmant petit traité « drolatique » publié par Balzac en 1827 (Édition Maxtor France, 2013). On pourra en lire une partie dans le Cahier consacré au Faiseur et édité par le Théâtre de la Ville.
[4] Lacan J., L’Envers de la psychanalyse, Le Séminaire Livre XVII, Seuil, p.219.
[5] Lacan J., Le Transfert, Le Séminaire Livre VIII, Seuil, p.354.
* Le Faiseur, de Honoré de Balzac, encena Emmanuel Demarcy-Mota, em 18 março ao 12 de abril de 2014 noThéâtre de la ville-Théâtre des Abbesses. 31, rue des Abbesses, 75018 – 01.42.74.22.77
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O pesadelo anterior à primavera
Inatualidade Incandescente,
a crônica de
Jeunesse sans Dieu é, certamente, um romance, mas seu autor, que era também um dramaturgo, Horvath, o escreve no exílio e o publica em Amsterdam, antes de vir a Paris e de morrer em um acidente em 1938. É difícil não pensar que ele a escreve em seguida ao L’éveil du printemps. O mistério da sexualidade ou da paternidade não é aqui o tema central. Não é questão que levem a descobrir a sexualidade, perversa ou «normal».
A intriga é feita entre três jovens adolescentes, alunos, e o professor, o «eu» da narração, filho amado e celibatário de 34 anos. No programa de ensino dos colegas, a guerra. O clã, unidade suprema, é a sua causa e a salvação de todos. A voz radiofônica é sua voz. Só podem obedecê-lo ou morrer. Mas obedecê-lo é também morrer, é já estar morto e não saber. Anuncia assim, inelutável, a voz que chega do muro interior de cada um, mais infortúnio, se ele tem um, visto que «Deus é terrível».
Que pese então a voz do professor que coage seus alunos à doutrina ou a extrair o âmago deles mesmos? O corpo do romance é este monólogo constante que resiste à propaganda, mas embarca em uma intriga mortal. A missão do docente fracassa frente à rocha da pulsão de morte. O gosto do saber é reabsorvido na aprendizagem do manejo das armas, mas o do assassinato tem sempre a idade da pedra.
A adaptação da cena de François Orsoni faz do monólogo um diálogo e desdobra a estrutura do processo ao conjunto do drama: o confidente do professor, a quem ele se endereça, é seu juiz. Quanto aos jovens, eles encarnam, um, a normalidade e o programa do clã, os outros dois, cada um, uma vertente singular: uma, articulada à total carência paterna, o outra, algo de um fantasma sustentado por uma reminiscência. Todos os dois deixam aberta a via para o crime como gozo supremo ou como solução contingente. Isto aparecerá quando a classe e o professor se encontrarem sob a tenda erguida sob as estrelas na abobada celeste que é fracassada, sem dúvida, pagando seu tributo de beleza a esta cena, para executar o programa da aprendizagem da guerra.
O processo que acontece é o da transmissão impossível, aquele das mães; ele se divide entre aquele do amor, da verdade e da mentira. Estabelecido pela primeira (mãe de N), ausente de forma singular entre as outras duas (Z e T), o processo mostra que nenhuma palavra vem temperar o gozo com o qual estas mulheres, terrivelmente comuns, impuseram o espetáculo a seus filhos, não estimando a presença deles ao lado delas.
A verdade e o amor cego captaram o jovem homem pronto para assumir o crime que ele não havia cometido, entregue às suas lembranças traumáticas que faziam dele, involuntariamente, o parceiro da fortuna de uma jovem em conflito, encontrada, por acaso, perdida e confusa. O espectro de uma paixão cavalheiresca atravessa o professor que se apaixona pela jovem perdida.
O jovem assassinado volta e fala, mostrando que estava morto, mesmo antes do crime e continua entre os mortos-vivos. Quanto ao assassino, a pulsão completa o trajeto que a concerne.
Então? Desespero e nada? Não completamente. Um pequenino discreto, que não tinha dito nada, assiste a tudo isto e se emociona com os outros três. Aqueles que se reuniam para ler e discutir. Não, eles não zombam dos outros nem do mundo. Eles encontraram uma ancora e se agarram a ela. O professor se exila, porque não há mais nada a fazer.
Jeunesse sans Dieu, d’après le roman de Ödön von Horváth, spectacle de François Orsoni,
au théâtre de la Bastille, du 3 au 30 mars 2014, 76 Rue de la Roquette, 75011 Paris –
01 43 57 42 14
Atelier pour les jeunes, le 22 mars, avec François Orsoni.
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O centenário de Marguerite Duras em cartaz
A intensidade arrebatadora do nada « durasiano »
por Élise Clément
A intensidade arrebatadora do nada « durasiano »
por Élise Clément
«Escrever era a única coisa que povoava e encantava a minha vida. Eu o faço. A escrita nunca me abandonou»
Marguerite Duras, Écrire
Nos Écrire1, Marguerite Duras retorna ao Vice-Consul, Lol V. Stein, Anne-Marie Stretter, seus personagens, seus livros, sua solidão, o álcool, os amantes, a distância da escrita, o desespero, o nada, o vazio, o crepúsculo do verão e do inverno, a morte de uma mosca, sua repulsa à Alemanha nazista, o desconhecido e a loucura da escrita, de seus rituais – uma certa janela, mesa, tinta preta inencontrável, cadeira … – e os lugares para escrever.
Estes lugares que acolhem seu universo de escrita, sua vida.
Neauphle-le-Château. «Enfim, eu tinha uma casa onde me esconder para escrever meus livros»2. Comprada à primeira vista, graças aos ganhos dos direitos autorais pagos pelo cinema, a propósito de seu livro Un barrage contre le Pacifique. Quatro casas reunidas num mesmo terreno, dando sobre o parque e sobre a lagoa, em frente, a estrada que vai a Paris, «aquela por onde passam as mulheres dos meus livros»3.
Trouville. Seu apartamento nas Rochas Negras, o azul, a imensidão do mar, a areia, era lá que ela «vai à loucura para se tornar Lola Valérie Stein »4. «É em Trouville que eu olho o mar para nada. […] eu posso dizer o que eu quero, eu não encontro o porquê de escrever e nem o de não escrever».5
À Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein6 de Lacan e a uma frase que ele havia pronunciado, Duras responde neste pequeno texto ditado ou retranscrito: «E mesmo a partir do que disse Lacan, eu nunca a compreendi muito bem. Eu estava atordoada por Lacan. E esta frase dele: « ela não deve saber que escreve, o que ela escreve. Por que ela se perderia. E isto seria uma catástrofe ». Esta frase foi para mim como uma espécie de identidade de princípio, um « direito de dizer » totalmente ignorado pelas mulheres».7 O gozo suplementar em enunciado « durasiano »?
Marguerite Duras teria 100 anos. A homenagem lhe foi feita em os cartazes de vários teatros parisienses a partir de peças de teatros ou de seus textos. Tanto para a Pour La Maladie de la mort par Muriel Mayette-Holtz, na Comédie-Française, como também para Savannah Bay, Le Square e Marguerite et le Président por Didier Bezace no Atelier, infelizmente, será muito tarde.
Por outro lado, Un barrage contre le Pacifique está encenado no théâtre de l’Athénée até 22 de março com Juliette de Charnacé. Esta semana, La Musica deuxième, onde Susanne Hommel encarna Duras com uma semelhança impressionante, está em cartaz no théâtre de l’Ile Saint-Louis Paul Rey. Outras peças seguirão neste teatro intimista, de fundo de quintal e à beira do Sena, encenação feita por Claudine Gabay, Agatha e talvez, Yes. L’amante anglaise não será mais encenado. No Lucernaire, variações sobre Hiroshima mon amour por Patrice Douchet até 26 de abril. E ainda, Des journées entières dans les arbres com a ardente Fanny A., até 30 de março no Gaîté Montparnasse. Enfim, L’Homme atlantique será apresentado de meados de abril a meados de maio no théâtre Artistic Athévains, realizado e interpretado por Viviane Théophilidès.
«Nós podemos falar de uma doença de escrever»8, contagiosa para estas e estes que mergulham, porque a escrita e o universo de Duras não deixam de ser agalmáticos, tanto para as mulheres quanto para os homens de teatro, os espectadores e os leitores. Inesquecível e único universo « durasiano » que Raymond Queneau recomenda: «Não faças nada mais que isto, escrevas».
1Duras M., Écrire, Paris, Gallimard, 2013, p. 15.
2Ibid.p. 19.
3Ibid.p. 46.
4Ibid. p. 14.
5Ibid. p. 18.
6 Lacan J., « Hommage fait à Marguerite Duras, du ravissement de Lol V. Stein », Autres écrits, Paris, Seuil, 2001, p. 191-197.
7Duras M., Écrire, op. cit., p. 20.
8Ibid. p.52.
9Ibid. p.15
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O Grande Budapest Hotel,
O Grande Budapest Hotel,
de Wes Anderson:
Grandeza e a decadência do semblante
por Claire Zebrowski
Grandeza e a decadência do semblante
por Claire Zebrowski
Wes Anderson, o realizador da A Família Tenenbaum e de Moonrise Kingdom, retorna com The Grand Budapest Hotel, neste momento em cartaz e que arrebata um grande sucesso. Em Rennes, onde eu fui vê-lo na semana de estreia, era preciso esperar uma meia hora na fila, chovendo, para conseguir um lugar. A sala estava cheia e foi sobre um assento dobrável que descobri, com entusiasmo, esta obra maluca. O pequeno pedaço de assento não estava entalhado a meu gosto! Entre deleite e júbilo, The Grand Budapest Hotel leva o espectador a um universo na encruzilhada do surrealismo, da comédia de boulevard dos anos de 1950 e do suspense, brincando com requinte com os semblantes e com o humor. Ele conta a história de um encontro entre um escritor e um mordomo do hotel reputado por sua fleuma. Este último, Monsieur Gustave, era particularmente apreciado pelas senhoras mais velhas com quem ele cultiva um cavalheirismo mau intencionado pelo erotismo, assistido em suas aventuras pelo seu dedicado mensageiro chamado Zero.
O renomado Grand Budapest Hotel só tem de comum este homem famoso.
O filme conta a sua grandeza e a incrível decadência, jogando com sutileza entre o olhar e o verbo.
A arte de mostrar
Desde o início, o olhar é colocado no centro do dispositivo cinematográfico. As cores são, às vezes, berrantes outras pastel, as formas são delineadas, os quadros sucessivos dos lugares são cortadas no bisel. Assim como o funicular laranja vivo que atravessa a imagem em diagonal, como uma reta e um quadrado traçados debaixo de nossos olhos. Sobre um plano de arquiteto, desde a recepção do hotel, também laranja, merecedor de uma cozinha em fórmica dos anos 1960, as grandes escadas do hotel se dividem em uma simetria perfeita, a metade da direita e a metade esquerda da tela…
A perspectiva é finamente trabalhada. Na hora do cinema em 3D, Wes Anderson provoca uma resistência do traço em 2D. Imagine a primeira aparição do célebre hotel como uma velha fotografia reconstruída. O produtor não busca nos mostrar o que apresenta, mais próximos de nós; não busca nos incorporar no filme nos rodeando com personagens ou objetos que se deslocam em nossa direção através do artifício de óculos azuis e vermelhos. Ele nos mostra a fotografia de um objeto em que todos os seus atributos lembram que se trata de uma montagem imaginária, de um artifício.
É isto que o produtor traz, o olhar. Ele mostra. Nesta mostração aparece então à distância do objeto visado, e nesta, o nosso olhar. Não é um cinema do gozo, um cinema que nos cola à pulsão. É um cinema do objeto e do desejo.
O realizador vai mais longe. Através da sua arte de mostração, o que ele não deixa de nos presentificar, na presença do olhar assim como da imagem, é a divisão. O filme é todo construído sobre a implementação do abismo entre o olhar e a bela imagem.
Assim, a primeira aparição do Grande Hotel, toda em cores pasteis tal como um bolo de creme polvilhado de açúcar glacê e coberto de rosas, é imediatamente seguida de uma outra apresentação do hotel, cinza e deteriorado. A surpresa causada pela justaposição das duas imagens cria uma clivagem, uma vacilação que faz sorrir, mas que não deixa por menos a divisão do sujeito enquanto o objeto agalmático se desvela sob sua versão de resto.
O resto do hotel, mais do lado do lixo, se superpõe ao belo hotel que nos será mostrado outra vez. O velho edifício transparece então, como uma camada desbotada, uma filigrana empoeirada, presente-ausente, em toda fotografia do filme. Grandeza e decadência do olhar, portanto, grandeza e decadência também do verbo.
Pela beleza do verbo
Wes Anderson nos mostra e conta. O filme é inspirado em um romance de Stephan Zweig e começa com um escritor que se dirige ao espectador como se fosse um apresentador de jornal televisivo, diante da câmera, com pequenos cartazes na mão. Ele discorre com enfaticamente a respeito do sujeito que inspira o escritor quando, de repente, sem que o espectador perceba, uma criança que se encontra fora do campo de visão atira nele com uma pistola de plástico, o homem se vira e berra « Pare, pare com isto! ». Um primeiro inciso é feito a partir da solenidade da linguagem. Em seguida, o filme retrocede, mais ou menos, quarenta anos, e reencontramos o precioso mordomo. Ele se dirige a seu entorno com uma linguagem clássica que espanta seus contemporâneos. Ele recita versos de cor e tenta-se apreender o melhor das metáforas que ele endereça ao sujeito da circunstância, por vezes, o mais anódino de sua vida. É um personagem tomado pela literatura, um personagem de fala livresca, ou como uma poesia, em suma, é um personagem de ficção, que faz seu ser existir através da beleza do verbo. Atribuímos-lhe um saber-dizer as coisas, e nós o escutamos. Mas sempre a palavra surpreende. A primeira falha nas belas fórmulas ocorre com a irrupção de um real.
Monsieur Gustave e seu lobby boy Zero estão dentro de um trem.
Ele pára, a guerra acaba de ser declarada, os militares sobem, lhes pedem os documentos, Zero é um imigrante, os soldados lhe pedem para sair, Monsieur Gustave protesta, se esbofeteiam e são separados in extremis. Uma vez que a infantaria se vai, o mordomo com o nariz sangrando, inicia um comentário a respeito do que acaba de acontecer. Como de costume, ele usa palavras raras e as torneia de forma refinada. De repente, ele interrompe e solta « Eh merda ! », antes de virar seu corpo de um só gole. Há momentos em que o semblante da linguagem não se sustenta. Com Monsieur Gustave, o filme levanta esta questão: o belo verbo é somente tomado na sua função de semblante, ou quer dizer mais alguma coisa? Em alguns momentos, o mordomo nos diz alguma coisa a mais sobre o amor, sobre o que há de inumano no homem e nós escutamos respeitosamente. Por vezes, esta língua saborosa pára, esburaca, é insulto, ou o roubo de um quadro que entalha a prosa e engendra um ato, um ato de linguagem.
O cinema é uma ficção
Através da formatação do abismo da beleza, através de um tratamento insólito do olhar e da linguagem, Wes Anderson se anima a nos mostrar a maquinaria da ficção. Ele nos fala: «Olhem, escutem, isto não é provável!». Os códigos do cinema se reproduzem como aqueles da literatura para nos falar de três personagens que inventam sua ficção de ser diante dos olhos divertidos do espectador. Serão eles muito diferentes do neurótico e seu mito? Isto não está garantido. Com efeito, o filme se abre sobre a questão: teria o escritor uma imaginação que ultrapassa? O narrador responde pela negativa: são as pessoas que fornecem o material para a inspiração do escritor. Assim, a história de Monsieur Gustave e de Zero seria, na verdade, fruto da observação ativa. Mas isto seria descartar o ato da criação. Wes Anderson escreve como um sonho o que ele observa, reforçando o caos gracioso do fantasma e suas pequenas misérias.
Ao final do filme, Zero envelhece e diz : «eu acredito que o mundo do Monsieur Gustave estava morto, muito antes dele». O que faz um mundo viver, se não, as ficções que se contam a respeito dele? Com o The Grand Budapest Hotel, Wes Anderson nos faz mergulhar em um mundo onde os vícios do semblante não perturbam nem atingem a sua doçura. Ele nos fala de alguma coisa do tempo passado a partir do presente. É um festim!
LIDO HOJE
por Jam
12 março
Résilience
Gilles Hertzog: «« Ministre des Affaires étrangères bis », de fato, em ação, ministro pura e simplesmente, no lugar e posto que ocupa no Quai d’Orsay, este é o quadro que, meio irônico, meio sério, certos editorialistas pintam dele há vinte anos, enquanto que, da Bósnia à Ucrania de hoje via Afeganistão e Líbia ontem, Bernard-Henri Lévy apodera-se de uma causa rica que mergulha por inteiro, à sua maneira intervencionista patenteado por ele mesmo, no coração do drama em curso, fazendo, se necessário, um dublê no terreno da diplomacia e do militarismo. Somando nossas políticas de ação, mobilizando a mídia, filmando, escrevendo, batalhando através de todos os meios». Lógicas das Regras do Jogo.
Realidades
Pascal Morvan lista um ensaio de Alfred Schütz (1899-1959): «Para Schütz, não há realidade objetiva, mas «realidades múltiplas», tema que lhe é caro e que desenvolve especialmente em sua interpretação do romance de Cervantes. Segundo ele, a objetivação da realidade não é mais que uma construção social: « a origem e a fonte de toda realidade, seja do ponto de vista absoluto ou prático, é subjetiva. Ela repousa sobre si mesma. De onde vêm as consequências da existência de múltiplas ordens de realidade – provavelmente, um número infinito delas – , cada uma possuindo um estilo de existência específico e independente […]. « ele reatualiza, assim, a teoria das diferentes ordens de realidade
Elaboradas no final do séc. XIX por William James segundo o qual « toda afirmação que fica sem contraponto é ipso facto aceita como verdadeira e, a partir disto, considerada como sendo uma realidade absoluta». Site Nonfiction, artigo intitulado «A invenção do real », sobre Don Quixote e o problema da realidade, Ed. Allia.
Arrepender
Maureen Dowd convida a CIA a reconhecer suas faltas: «Langley needs a come-to-Jesus moment — pronto. » NYT (acima à direita: M. Dowd).
13 mars
Conso
Uma ideia selvagem: Prolongando nossos smartphones: «Os pontos principais são: use seu smartphone por mais de dois anos, o ideal são três; se tiver problemas, tente consertar em vez de substituí-lo; e, quando você tiver esgotado tudo com ele, troque-o». Farhad Manjoo dans le NYT.
14 março
Croquignol
Elisabeth Lévy : «Em duas semanas, passamos de Shakespeare aos « Pés indolentes fazem política »». Site Causar.
Filochard
Matteo Renzi: «Se bonus non arriva, sono buffone». Sur la Repubblica.
Ribouldingue
Hemingway a Marlene Dietrich, em uma carta de 1955 levada a leilão em 19 de março: «Eu te amo muito e nunca quis misturar qualquer negócio com você, como lhe escrevi a primeira vez em que isto se colocou. Nenhum de nós possui sangue de prostituta suficiente para isto. Não que eu não possa enumerar várias prostitutas esplêndidas entre meus melhores amigos e, certamente nunca, eu espero, possa ser acusado de anti-prostituição». Site de Vanity Fair (ci-dessus à gauche: M. Dietrich).
Anti-anti
Ann Friedman : « Cultura é uma coisa em constante mudança na qual criamos e moldamos coletivamente, não um tanto de regras escritas e reescritas formalmente por alguma política pública. Certamente, ‘estações de rádio podem ser persuadidas a deixarem fracassar uma série que pronunciou insultos radicais ou o Wal-Mart pode ser levado a parar de vender lingeries de meninas’ com a frase « Quem precisa de cartão de crédito… » escrita na frente. Proibições e boicotes podem ser usados com grande efeito quando forem concretas e pouco focadas. Mas o movimento feminista, na melhor de sua forma, não somente condena as representações negativas da mídia como declaram certas palavras fora dos limites; isto cria melhores alternativas e reescreve narrativas para serem mais inclusivas. » New York Magazine.
O novo normal
Zadie Smith :« Há uma linguagem científica e ideológica para o que está acontecendo com o clima, mas dificilmente há qualquer palavra íntima. Isto é uma surpresa? As pessoas de luto tendem a usar eufemismos; da mesma forma, as que têm culpa ou vergonha. O eufemismo mais melancólico e: »o novo normal ». « Este é o novo normal », eu penso, como se uma pereira, parcialmente inundada, perdesse aderência ao solo e caísse. A linha de trem para Cornwall vai-se embora – o novo normal. Nós sequer podemos dizer a palavra « anormal » uns aos outros em voz alta: ela nos lembra o que veio antes. Melhor esquecer o que uma vez foi normal, da mesma forma que estação após estação (estações do ano), com um charme temperado, apenas os poetas apreciaram. »Site de la New York Review of Books : début du texte publié dans le dernier numéro de la revue, sous le titre « Elegy for a Country’s Seasons ».
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Lacan Cotidiano
publicado por navarin editor
INFORMA E REFLETE TODOS OS DIAS A OPINIÃO ESCLARECIDA
comitê de direção
presidente Eve [email protected]
redação Catherine Lazarus-Matet [email protected]
conselheiro Jacques-Alain Miller
redação
coordenação Catherine Lazarus-Matet [email protected]
comitê de leitura Pierre-Gilles Gueguen, Jacques-Alain Miller, Eve Miller-Rose, Anne Poumellec, Eric Zuliani
edição Cécile Favreau, Luc Garcia, Bertrand Lahutte
equipe
pelo institut psychanalytique de l’enfant Daniel Roy, Judith Miller
por babel
-Lacan Quotidiano na argentina e América do sul de língua espanhola Graciela Brodsky
-Lacan Quotidiano no Brasil Angelina Harari
-Lacan Quotidiano na Espanha Miquel Bassols
-por Latigo, Dalila Arpin et Raquel Cors
-por Caravanserail, Fouzia Liget
-por Abrasivo, Jorge Forbes et Jacques-Alain Miller
difusão Éric Zuliani, Philippe Bénichou
traduções Chantal Bonneau (espanhol) Maria do Carmo Dias Batista (lacan quotidano no brasil)
designers viktor&william [email protected]
técnico Mark Francboizel & Olivier Ripoll
mediador Patachón Valdè[email protected]
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Para a rubrica Crítica de Livros, queiram endereçar suas obras a NAVARIN ÉDITEUR, la Rédaction de Lacan Quotidien – 1, rue Huysmans – 75006 – Paris – FRANCE. •
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Tradução: Raquel Amim de Freitas