NÚMERO 377
Eu não perderia um Seminário por nada do mundo— Philippe Sollers
Nós ganharemos porque não temos outra escolha — Agnès Aflalo
www.lacanquotidien.fr
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Allons z’enfants (1)
A crônica de Daniel Roy
Digamos assim, para começar: a infância não protege mais a criança. Foi uma criação do tempo em que o pai reencontrou o capitalista. Hoje resta, de um lado, os direitos da criança, de outro crianças entregues como todos nós às leis do mercado, a slogans e a objetos gadgets. Forças conservadoras tentam crer ainda na infância, mas é preciso o apoio do religioso, como se vê. O resultado? Mais segregação.
Vamos, antes aprender como as crianças se viram hoje, uma a uma, ou com os « nós » » inéditos, sem a proteção da infância.
Z, como os zestes (coisa muito pequena) esperados sob a forma de breves vinhetas que recolhem pedacinhos da língua e estilhaços de objetos com os quais as crianças fazem bricolagem de sua existência.
Alex faz hip-hop et isso lhe agrada muito. Aos 9 anos, ele descobre então o que acompanha a dança hip-hop, sua música, o rap, e ele gosta muito desta música, cujas letras ele decifra com atenção. Seu pai também gosta muito desta música: pode-se dizer que eles partilham esse gosto, mesmo se não sabemos ainda qual gosto isso tem para um e para o outro.
Na escola de Alex não se conta com a psicanálise para dar a palavra às crianças (é claro, ela já passou por lá, mas esqueceu-se tudo o que ela fez para a proteção da infância, na época precedente, quando era preciso afrouxar o torno), e se propõe a cada uma, se ela o desejar, trazer a música de que gosta para que as outras a conheçam. Alex, que é bastante tímido, está entusiasmado com a ideia de poder se fazer representar diante das outras crianças – e talvez da professora -, por trechos de rap.
A mãe de Alex me narra a situação em que ela se encontra face ao entusiasmo de seu filho. Ela se inquieta com essa exposição por causa do teor das letras de certas canções : será que não vai chocar? Ferir? Provocar escândalo? Sobre isso ela se abriu com o pai de Alex que considera que não se deve intervir nas escolhas do menino. Ela está de acordo com ele, «não de trata de interditar» pois não é assim que eles educam seu filho, mas resta-lhe como que um embaraço, sobre o qual ela vai fundar sua conduta.
De acordo, não interditar, mas dizer : há algo a lhe dizer. O que ela faz: «Teu pai e eu estamos de acordo, mas, você sabe, nesta canção aí, há palavras que talvez… ». Ela não vai mais longe, pois antes Alex lhe corta a palavra: «Ah! Sim, isso, nem pensar, seria muito duro para eles, é claro!».
Alex se tranquilizou, sua excitação em torno desta apresentação se apaziguou. Apoiando-se sobre o dizer de sua mãe, ele pode, suprimindo uma canção de sua lista, esvaziar essas palavras rapés de um gozo, e devolvê-las à sua função musical.
Aí está a encarnação da autoridade de um dizer – que não legifera, que não decreta, que não ordena -, mas que indica: e hip e hop!
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Departamento de psicanálise de Paris VIII
Comunicado de Gérard Miller
O Ministério do ensino superior e da pesquisa, Depois de haver se empenhado, durante vários meses, numa vasta consulta, acaba de publicar no Journal Officiel a nomenclatura das menções do diploma national de master.
Como me assegurou em novembro último o Sr. Fontanille, diretor de gabinete da Sra. Ministra, o Ministério efetivamente preservou o master de Psicanálise, respeitando a psicanálise como disciplina autônoma.
Este dossiê está, então, finalmente encerrado, com este feliz resultado.
Saint-Denis, 11 fevereiro de 2014
Lire (ler) ou dé-lire (des-ler; delírio), é preciso escolher
por Catherine Lacaze-Paule
ler, uma experiência do corpo
No endereço 20 Maresfield Gardens em Londres, a visita à casa de Freud permite descobrir o gabinete no qual ele praticava, inventando-a, a psicanálise. É com emoção que o visitante olha os objetos que o compõem. O célebre divã e seus tapetes, sua escrivaninha, as esculturas antigas, seu porco épico. E, sobretudo, sua imensa biblioteca de 800 títulos, resto dos 1600 que ele possuía na Áustria. Desde que o guarda se ausente um pouco, o visitante curioso pode ultrapassar a linha de separação e tentar ler sobre as lombadas os títulos e os autores de seus livros que se tornaram famosos. Se imaginamos Freud, fechado neste grande cômodo, podemos também representá-lo lendo sobre esta poltrona especialmente fabricada em sua homenagem segundo os votos de sua filha Mathilde. Solícita com seu pai, ela encomendou ao arquiteto Felix Augenfeld, uma poltrona sob medida onde ele poderia passar longas horas a ler. Esta poltrona, de forma antes bizarra e original, tem a particularidade de ser equipada com dois braços em torno de um encosto central muito recortado, nas dimensões adaptadas a Freud. Segundo seu hábito, Freud se sentava atravessado, passando as pernas sobre os braços e deixando-as pender, segurando o livro no alto, a cabeça ficando sem apoio. A poltrona, concebida segundo as indicações de sua filha, permitia-lhe então guardar esta posição em diagonal relaxada mas por ser mais confortavelmente mantida.
Ler é antes de tudo um posicionamento do corpo intransigente, uma experiência do corpo. O corpo deve, para que a leitura se revele inteira e plena, fazer-se o mais silencioso possível. Tal é a ascese do corpo do leitor que durante muitas horas vai, o livro em uma mão ou nas duas mãos, a cabeça alta ou abaixada, fixar seus olhos sobre cada pequena letra, cada linha, passando as páginas uma a uma, num ritmo regular. A leitura vai lançar o leitor, às vezes, à beira do adormecimento, ou mantê-lo acordado, acometê-lo de alegria ou de tédio, ele se torna a cada vez surpreendido ou indiferente, triste ou alegre, febril ou calmo, angustiado ou relaxado, amedrontado ou tranquilizado. A leitura provoca um efeito no corpo.
A escrita em 2050
Mergulhemo-nos alegremente na ficção, em 2050. O consultório do psicanalista, sem dúvida, terá mudado bastante. Apostemos que ele ainda terá um divã e a poltrona, e objetos de arte, algumas esculturas, mas talvez, nos materiais que ainda nos são desconhecidos, elas serão outras, terão se tornado esculturas de imagem em 3D. Os computadores, as tablets e os telefones terão sido substituídos por um minichip eletrônico e captadores invisíveis a olhos nus, colocados no cômodo ou diretamente no corpo ( dente, orelha, sub-cutaneamente no braço) podendo projetar sobre qualquer superfície, parede, mesa, óculos e mesmo lentes, som, imagens, textos, livros.
As paredes, esvaziadas de grandes e imponentes bibliotecas, poderão ser, em pouco tempo, o suporte de vídeo criando uma mutação quase permanente das paredes agora animadas e sonoras. Brancas ou em cores, elas se tornarão ora a exposição da projeção de criadores de vídeos contemporâneos colocando em cena a morte, a vida, o nascimento, o amor, em suma, a relação sexual que não existe, ora a projeção de livro superpondo todas as edições, ora suporte de uma videoconferência projetada. Imaginemos ainda a aparição simultânea, sobre estas paredes, da leitura do relatório de atividade da ECF N° 5 e os debates, seguidos pelos cinco continentes que se dedicam ao combate contra a última lei editada pelo ministério mundial da saúde — neuroeconômica, obrigando todos os neuroterapeutas a enviar a gravação de cada sessão filmada a fim de submeter à avaliação das comissões de controle dos prefeitos de higiene neurogenética. Fiel a seus princípios, a Escola da causa freudiana n° 5, que modificou pela enésima vez seus regimentos, para que nada mude de sua ética da psicanálise, se opõe com vigor a este atentado à liberdade do direito ao segredo e à palavra íntima. O que está em jogo é claro e reiterativo : manter as condições de discurso nas quais se possa ler o inconsciente, quer dizer, interpretá-lo.
Ler e interpretar qual é o impacto do significante no corpo para o sujeito permanecerá a questão da psicanálise, aquela do efeito do encontro das palavras no corpo. Saber ler, saber decifrar este encontro permanecerá essencial à psicanálise e isso não se dará sem a aposta do bem-dizer..
Eis porque o analista lacaniano deste início do século XXI se vê concernido, como seus concidadãos, pela inovação impressionante dos novos suportes da escrita dos significantes no nosso mundo. Da letra ao papel, assistimos em menos de 10 anos à generalização fulgurante do digital e da net.
Da letra ao número, da leitura à cifração
Porque esta nostalgia dos dedos enegrecidos pela leitura dos jornais do mundo, este pesar pelo fechamento das escolas de jornalistas que o acompanha, esta decepção devido ao fim dos boletins de paróquia, associativos, comunais, com as cartas eletrônicas que os substituíram. O que é esse apego passional ao Livro, esse objeto amado, sagrado, colecionado, fetichizado. De que é feita esta tristeza ligada à ideia de seu desaparecimento, à evocação de seu odor, de seu toque, de sua elegância, de seu material e de sua capa. Há o livro de todos os dias, no bolso, ou dos grandes dias cujas páginas são finas e sonoras com as do grande Livro. Pesar ainda em relação ao texto paginado, da leitura com o lápis na mão, quando os internautas avisados leem com entusiasmo os hipertextos, efetuam a pesquisa de obras através de zappings eficazes, sabem daqui por diante inserir nos textos da internet o realçamento em cores, os comentários, as anotações à sua maneira e enfim, os mais hábeis utilizam as funções de seus computadores que incluem as mensagens de voz e até o video anexado e pontuando o texto.
Então, a questão se coloca entre o livro e o digital, o que é que se perde? i(a) ou a ? Em que é que isto toca a causa do desejo?
Ler não é, antes de tudo, uma questão de desejo ? A grande mudança seria a perda do livro ou da leitura?
Em consequência, podemos nos perguntar o que do objeto livro se liga a nós tão de perto, e o fazer à maneira de Lacan que constatava, em seu Seminário XVI, De um outro ao Outro (sic), página 328 (da edição francesa), sua relação com um objeto particular, uma caneta datada da Belle époque. Esta caneta lhe foi oferecida por uma pessoa que a pegou de sua avó e esta caneta, qualificada de incômoda, era tão fina e flexível que, segurando-se na palma da mão, evocava a pluma. Sua relação a este objeto era qualificada por Lacan como o mais próximo do que era para ele « o objeto a ». Ele convidava, então, a distinguir a parte da história presente em todo objeto, esta parte que designa o lugar do Outro onde « isso se sabe » e sua incidência sobre a repetição e o gozo. Esse lugar do Outro que ele acabará por qualificar de corpo, em « A lógica da fantasia », no dia 10 de maio de 1967. Cabe, então, a cada um, proceder a uma interpretação de uma relação sintomática ao livro (ou à caneta) a ser efetuada para o século XXI.
A a questão vem a ser, então, o que se ganha com a net? Chora-se a perda da cultura quando se poderia considerar que ela nunca esteve tão acessível em um único clic. Pergunta-se como ler, papel ou digital, questão que pode ser deixada aos cognitivistas, que se apoderaram dela, aliás, tratando da atenção dividida ou de outros efeitos sobre a concentração, quando parece mais fecundo saber o que ler, na hora em que se difunde uma quantidade jamais igualada de obras instantaneamente disponíveis, duplicada por uma paixão – pulsão? – por escrever.
Do real da letra à cifração do gozo, trata-se sempre, para a psicanálise, de interpretar o sintoma, resultado deste encontro do significante sobre o corpo, e ainda mais quando o significante em questão é « ler ».
A alteridade radical do homem Kertész
por Élise Clément
É graças às variações polifônicas (1) que nos dão Nathalie Georges-Lambrichs e Daniela Fernandez sobre o homem Kertész, que este autor húngaro, apreendido frequentemente somente pelo tema do Holocausto, surgiu de um tempo passado de minha vida berlinense e do esquecimento em que eu o havia involuntariamente enterrado desde seu prêmio Nobel de literatura.
Radical presente
Numa entrevista concedida por Kertész ao semanário alemão Die Zeit em setembro de 2013, tomamos conhecimento de que ele voltou a viver em Budapeste desde que foi acometido pela doença de Parkinson e que o após prêmio (prix) terá seu preço (prix) : o de haver sido « um clown do holocausto » e de haver levado desde então « uma vida falsa ». Nenhum semblante que se mantenha para este que, sem concessão, incansavelmente, impiedosamente, Aucun semblant qui ne tienne pour celui qui, sans concession, inlassablement, impitoyablement, não teve trégua de buscar uma língua para dizer como os totalitarismos mudam os homens. « Depois da derrota da revolução de 1956, vi como um povo é levado a negar seus ideais, […] vi que a esperança era um imperativo do mal, e que o imperativo categórico de Kant, a Ética, eram apenas vales dóceis da subsistência ». (2)
Seu engajamento radical na escrita, reviver o que ele viveu para sobreviver, atravessa toda sua obra. Em Kaddish pour l’enfant qui ne naîtra pas (Kaddish para uma criança que não nascerá), ele escreve um monólogo profundo, magnífico, grito arrancado a um homem provado de infância e de pai pela deportação, estranho a este mundo de ditaduras que se sucedem em seu país. Não somente porque o Kaddish é a prece dos mortos e que uma criança não nascerá por recusa, mas porque seu enodamento à escrita é a marca de um absoluto. « […] Eu, é um fato real, eu devia fazê-lo, não sei porque, era visivelmente a única solução que se oferecia a mim … ». (3) Cada frase é uma deflagração que não cessa de girar em torno do que é escrever depois da Shoah : « Quando se escreve sobre Auschwitz, é preciso saber num certo sentido que a literatura foi colocada em suspenso. » (4)
Uma solidão modulada
No liceu, podíamos ser convidados ao « dever de memória », para além do espírito pedagógico da missão, este tempo zero de Auschwitz não nos deixava tranquilos no momento em que a pequena história pessoal subjetiva devia encontrar a grande, aparentemente mais objetiva, ou o inverso, enfim, sem nenhuma partição proporcional de uma à outra, já que H-h-y-stoire. Impossível, então, começar a ler ou a pensar, para esta terceira geração, à qual eu pertenço, sem haver sido detido, atormentado, moldado mesmo, quando tanto a filosofia como a literatura não cessavam de nos alertar, de se insinuar em nós com fórmulas tão intensas, sobre a possibilidade sempre recomeçada da objeção humana, ao passo que nenhum combate dessa ordem, para muitos de nós na Europa ocidental, devia mais tocar diretamente em nossos corpos.
Entretanto será preciso esperar a lucidez, o humor negro e o engajamento radical de Kertész para que, nesta busca inconsciente de leitura e de seus frequentes pontos de parada, algo possa se erguer, consiga se alojar – sem vergonha. « O inconsciente é a política », diz Lacan, encontrar a obra de Kertész e sua tenacidade ética, esclarece-o. Pois desde sempre, parecia-me, tocar nesta literatura, escrita por aqueles que haviam feito corpo com a escrita, depois desse tempo zero de Auschwitz, deixava-me, o mais das vezes, no limiar de um impossível de dizer e com o gosto do silêncio numa boca fechada por não falar. A questão da linguagem e das palavras, do imaginário, do simbólico, e do real, sobretudo do real, aí se eriça como em nenhum outro lugar.. Como e porque acrescentar palavras aí onde outros buscaram uma língua como única possibilidade de viver após haver sobrevivido ? De onde falar e com que direito ? Por ocasião de um « Hors-champs » (Fora de campo) com Laure Adler (5), Kertész diz : « Teria eu o direito de guardar minha história para mim ? […] Não, tomaram-me a minha história. Quem a tomou de mim ? Os homens políticos, os padres, os professores, os leitores da psicologia humana, são eles, […] eles todos que tomaram a minha vida de mim […]». Como não pensar em Gyurka, o duplo romanesco do autor em Être sans destin (Ser sem destino), que, de retorno à sua casa em Budapeste em 1945, reencontra os dois velhos então presentes no momento da partida de seu pai para um campo de trabalho e que lhe comunicam que ele foi morto em Mauthausen ? Que fizeram eles, Steiner et Fleischmann, o homem de pedra faltando só uma consoante* e o homem-carne** ? « “Pois bem… nós vivemos ”, disse um deles com um ar pensativo. “ Nós tentamos sobreviver ”, acrescentou o outro. E então : eles também tinham avançado passo a passo, observei. » (6) Kertész faz Gyurka dizer : « […] Nós mesmos somos o nosso destino ». (7) Os dois velhos acabam por se indignar : « Será que seremos nós os culpados, nós, as vítimas ?! » (8) E, mais adiante, por prosseguir sua proposição filosófica nesta última parte do romance, comparada, pelo autor, em Les variations (As variações), à Paixão : « Não se podia – era preciso que tentassem compreender isso –, não se podia me tirar tudo ; eu quase lhes suplicava que tentassem admitir que eu não podia engolir esta detestável amargura de que eu houvesse sido só um inocente». (9) A inocência e a vítima, duas palavras detestadas pelo autor, é o combate de Gyurka para lhe dobrar o golpe, e aquele do autor que não terá trégua para enodá-lo à escrita. Este romance foi muito mal acolhido no momento de sua publicação, notadamente em razão de seu pondo de vista desconcertante. Ora, eis aí sua força intrínseca : não fazer o relato de um adolescente puramente vítima ou somente revoltado. Ele ultrapassa as categorias esperadas para fazer tocar o leitor com estilhaços do real que a língua, decididamente, pode mais nomear tão tranquilamente, pois é incapaz « de representar os processos reais ». (10)
É um convite, pela surpresa, de se fazer responsável, por sua vez, desta história universal, C’est une invitation par la surprise à se faire responsable à son tour de cette histoire universelle, sem mais o pequeno mal-estar indizível, que exigia às vezes son tour de piste, porque seus avós não tinham feito a experiência do pior, sem haver tido também que enrubescer por eles. Com sua escrita, ele desaloja o leitor de toda posição segura demais. Ele o mergulha nos turbilhões incertos de uma verdade e de um saber solidificados pela resistência ou pela facilidade. Por evitar todo o pathos, toda dissertação sobre o mal da experiência concentracionária, por entrar no coração sólido do que é ser um homem que observa o mundo e a mentira, os homens que se enfiam em novas peles para se conformar a um discurso do mestre enraivecido, mobilizando uma escrita desprovida de semblantes se bem que vertida na ficção, ele atinge seu leitor oferecendo-lhe um lugar ético
O universal do holocausto e sua posteridade
Na entrevista realizada por Nathalie Georges-Lambrichs e Daniela Fernandez, Kertész dá uma forma suplementar a seu trabalho de escritor dele se fazendo ainda passador, não somente de uma heurística sobre seu trabalho de escrita, mas sobre nosso grande trauma coletivo do século XX, que ele viveu tão realmente: « Creio que o holocausto é universal ; é uma experiência universal, uma experiência que teve lugar, então, num círculo cultural judeu, depois num círculo cristão, e que, daí, passou ao círculo cultural como tal […]. Mas aí onde se recusa a considerar e a aceitar o holocausto como fazendo parte da cultura ocidental, permanece-se na influência e sob a influência do trauma. » (11)
Pela língua, uma outra língua, em sua língua no trabalho de um real sempre indizível que depôs suas marcas indeléveis, na escrita de uma língua em recusa daquela que produziu o pior, transformou os homens, extraviou-os cruelmente, Kertész s’est engagé pour nous enseigner. As oito vibrantes Variations analytiques sobre o homem Kertész – como um salvo-conduto concedido pela psicanálise – tomam-nos a mão para ir ao encontro de sua terra de escrita poderosa, elevada, e juntos autorizaram – enfim – uma pequena voz da terceira geração a colocar uma pequena pedra sobre os solos sempre moventes do ódio do Outro, como nossa recente atualidade no-lo mostra, não sem pavor de efetivamente escutar o que se diz.
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(1) Nathalie Georges-Lambrichs & Daniela Fernandez, L’homme Kertész. Variations psychanalytiques sur le passage d’un siècle à un autre, Paris, Éditions Michèle, coll. « Je est un autre », 2013. Com textos de Guy Briole, Catherine Lazarus-Matet, Myriam Mitelman, Pierre Naveau, Christiane Page, Daniel Roy, uma entrevista com Imre Kertész e um pósfacio de Clara Royer.
(2) Citação transcrita de « Pages arrachées au discours de réception des Prix Nobel de littérature 7/9 d’Imre Kertész » de 11 de dezembro de 2013. A transmissão « Fictions / Le feuilleton », coordenada por Blandine Masson, propôs esta série, disponível no site de France Culture : http://www.franceculture.fr/emission-fictions-le-feuilleton-pages-arrachees-aux-discours-de-reception-des-prix-nobel-de-litter-5
(3) Imre Kertész, Kaddish pour l’enfant qui ne naîtra pas, Arles, Actes Sud, 1995, p. 41.
(4) Citação transcrita de « Pages arrachées au discours de réception des Prix Nobel de littérature 7/9 d’Imre Kertész »
(5) « Laure Adler reçoit Imre Kertész, écrivain », Hors-champs, transmissão disponível no site de France Culture :http://www.franceculture.fr/emission-hors-champs-imre-kertesz-2010-10-11.html
(6) Imre Kertész, Être sans destin, Arles, Actes Sud, 1998, p. 353.
(7) Ibid. p.358.
(8) Ibid. p.359.
(9) Ibid. p.359.
(10) Citação transcrita de « Pages arrachées au discours de réception des Prix Nobel de littérature 7/9 d’Imre Kertész »
Georges-Lambrichs N.et Fernandez D., « Le roman de l’échec. Entrevista com Imre Kertész [2010-Berlin] » L’homme Kertész. Variations psychanalytiques sur le passage d’un siècle à un autre, op.cit. p. 117-118
*Steinern – de pedra
** Fleischmann: Fleisch – carne; mann – homem.
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Books, Olivier Postel-Vinay, o autismo
por Luc Garcia
Abrindo a revista Books de janeiro, especialmente a página 33, porque esta página estava indicada entre « Os 20 fatos & ideias a respigar neste número », e a quarta dessas vinte soberbas páginas foi destacada por um encarte vermelho com este acréscimo : « Cada um pode colocar uma placa « psicanalista » sobre sua porta » ; então, tomando nas mãos a Books, vendida nas livrarias pela soma de 9,90 euros, que traz uma capa em que está inscrito Compreender o autismo, encontrei um jornalista que minha aproximativa curiosidade havia até então negligenciado : Olivier Postel-Vinay, diretor de publicação de Books. E autor do artigo « E a psicanálise, nisso tudo ? ».
Um único ser os ilumina (M. Postel-Vinay), o mundo se torna lisível. Pois, sem seu brio que me abriu os olhos, graças a que pude enfim ver o mundo tal como ele é, pude também chegar a esta constatação – onde, então, eu tinha a cabeça até agora? : na minha rua, no meu bairro, desde a saída do metrô, por toda parte, estou rodeada de cartazes em que está inscrita a denominação Psicanalista. Até ler esse artigo, eu nunca havia notado. Não há mais garagista em Paris, cada vez menos pequenos bistrots, eles foram substituídos pelos psicanalistas. Nem falemos do interior, o fenômeno é ainda mais manifesto. E se você cruzar com alguém que pretende encontrar um psicanalista, pergunte-lhe como ele obteve o nome, o endereço, o número do telefone; a cada vez, a mesma resposta : ele viu o cartaz na rua.
Pois, como o lembra o Sr. Postel-Vinay, « a França é um dos raros países onde esta disciplina continua a ter direito de cidadania, incluindo aí no meio hospitalar ». Ele faz notar, além disso, « que eles têm também aliados nas mídias e em outros lugares ». Outros lugares ? Sim, evidentemente ! Vocês já não cruzaram com um taxista que diz : « Ah, pois bem, eu, eu sou psi no meu trabalho » ? Ou talvez o Sr. Postel-Vinay pense em outra coisa quando ele fala dos aliados dos psicanalistas.
Maldiremos o custo do papel, as coações editoriais, esta sociedade onde tudo vai tão rápido que não se tem tempo de dizer as coisas, isso que o diretor de publicação de Books deve sofrer igualmente. O Sr. Postel-Vinay teria podido então desenvolver seu pensamento sobre esses apoios e esses outros lugares.
Passada esta decepção, que alegria ler, enfim, sobre este estado de coisas que o Sr. Postel-Vinay sublinha com combatividade e vigor (é nisto que se reconhece uma grande assinatura da imprensa periódica) : do cartaz ao cuidado das crianças há uma concordância. Pois, muitas vezes, os pais de crianças autistas que dão seus testemunhos, por exemplo, no filme D’autres voix (Outras vozes), esses mesmos que o Sr. Postel-Vinay não considera nem idiotas, nem irresponsáveis, menos ainda imbecis, eles também viram uma placa Psicanalista, afixada assim, tocaram a campainha, entraram no consultório, e, bum !, cairam no interior (no interior do cartaz).
Mas graças ao Sr. Postel-Vinay, as famílias não se deixarão mais agarrar. Pois, diz o autor, trata-se também de ser modesto : « Para progredir (se se aceita a ideia de « progresso »), uma criança autista requer um enquadramento cotidiano ». Nosso jornalista tem razão, mas também é preciso não exagerar ! Aceitar a ideia de progresso é nos obrigar a colocar aspas. Eles são, muitas vezes, um pouco selvagens, esses autistas. Falar de sucesso de adestramento seria mais justo.
Entretanto, esta frase foi tirada de seu contexto, peço desculpas ao Sr. Postel-Vinay (a deontologia lhe interdita de utilizar tais procedimentos). Na realidade, a questão é a do poder.
Esse poder, de que ordem é ele? O Sr. Postel-Vinay nos esclarece : « Para além das questões teóricas, os interesses financeiros são consideráveis ». Uma vez ainda, o Sr. Postel-Vinay não deixa de ter razão : as instituições estão cobertas de dinheiro ; os hospitais não sabem mais o que fazer com o seu orçamento. As associações prestadoras de serviço, ainda aí, não deixam de auferir excedentes financeiros monumentais. Por exemplo, tome um psiquiatra que trabalhe a partir da psicanálise num hospital : ele abre a boca, chove dinheiro. E os educadores, e os ajudantes médico-psicológicos? Todos trabalham no 7O distrito, junto à Riviera, em piscinas aquecidas mesmo no inverno. Mas somente se eles trabalharem com a psicanálise. Traí, com isso, um segredo, mas como o Sr. Postel-Vinay começou o trabalho, sinto-me levada por esse élan jornalístico raro e profundo.
Lendo o artigo, vieram-me lembranças. Quando assisti, no Senado, a uma mesa redonda sobre o autismo, há alguns anos, não vi senão psicanalistas entre aqueles que distribuíam cartões de visita aos adidos parlamentares para receber financiamentos, no fim da conversação, Mas psicanalistas de um gênero novo, que diziam « com o nosso método, vocês vocês não terão mais necessidade de pagar fortunas com a psicanálise, as crianças ficam na casa de seus pais ». Há que se perguntar se uma tal publicidade não seria a de psicanalista mascarados. Pois, não estamos nos EUA onde eles foram, cito o Sr. Postel-Vinay, « erradicados ».
…
Desde quando ? Desde que eles estão mortos, por deus, nos anos 80 ! Este autores americanos, os mesmos que difundiram seus equívocos e se dedicaram à « dominação da psiquiatria americana pela escola psicanalítica, cujos numerosos representantes haviam fugido da Alemanha nazista », nos anos 30, 40, 50, 60, 70. Psicanalistas que não somente estão na origem das preciosidades sobre as quais outros psicanalistas se assentaram, mas além disso, são arqui-conhecidos : Frieda Fromm Reichmann, Trude Tietze, Theodore Lidz. Que pai de criança autista não ouviu esses nomes em apoio aos encaminhamentos ? M. Postel-Vinay realizou uma trabalho rigoroso para confrontar informações totalmente originais. Eu adoraria que ele nos fizesse saber dos psicanalistas que se orientam por esses autores dos quais ele fala. Creio, efetivamente, entretanto, que ninguém os lê mais, salvo ele e aqueles que redigiram Le livre noir (O livro negro) ; é isso aí.
Em todo caso, o Sr. Olivier Postel-Vinay intitula seu editorial de abertura da revista : « Somos todos autistas ». Então, seria talvez meu autismo que não me permitiu encontrar, como ele (não) os encontrou, a esses autores que se retira oportunamente do armário há pelo menos 10 anos (as mesmas citações, as mesmas frases). Seria talvez ainda o meu autismo que me fez notar que o documentário Le Mur (A parede/O muro), sobre o qual se apoia um bom terço do artigo do Sr. Postel-Vinay, traz o mesmo nome que um espetáculo nauseabundo proibido recentemente.
«Corpo selvagem!»
Queremos mais disso, ainda (en-corp)!
por Carole Allio
Dar ouvidos a Fauve é encontrar uma escrita, um uppercut* de palavras, um elogio do desejo, uma efervescência percutante.
Fauve é um coletivo « aberto » francês de quatro músicos e um realizador de vídeos, fundado em 2010, « Fauve CORP ». O estilo é « bruto » e « desesperadamente otimista » (1).
O coletivo é sem rosto; ou pelo menos eles querem permanecer na sombra. Eles não se mostram. A ligação à imagem, no entanto, não fica a dever mas se insere num processo artístico (via seus clips).
O que impressiona é o fluxo de palavras, o estilo em spoken word**, semi-falar, semi-cantar. Estilo que se diferencia do slam***, é uma outra forma poética, uma outra maneira de bater as palavras. Está do lado do vivo da língua.
Um símbolo anexado a seu nome os representa : o símbolo « não igual a ». « Fauve quer, de um só salto, se extrair da massa » (2). Elogio de uma singularidade em que « o mais importante não é o que você é mas o que você escolheu ser » (3).
Fauve traça um sulco em torno dos mal-estares contemporâneos, o encontro do Outro sexo, a inquietação, a raiva, um grande grito ressoa. Este sulco roça o real, ele o cerca e tenta revelar o indizível nele. O texte é cru, perturba às vezes, cria refrãos estimulantes : « Dia e noite eu persigo as epifanias Com a raiva de um mercenário sob efeito do crack » (4). Uma escrita selvagem que desperta. « Isto é fauve****. Uma cor intensa, uma direção, uma coisa visceral, forte, urgente » (5). É o que toca no real, poderíamos acrescentar. Nisso que o real é « o indizível, o impalpável, o invisível que vos cinge, vos orienta e vos desorienta » (6). Somos agarrados por esta escrita sem pontuação.
Os textos descrevem um sujeito desbussolado, « na nevasca », face a um gozo desenfreado, um gozo solitário, que se separa do Outro. Por exemplo, nos textos de Nuits fauves em que eles denunciam a sociedade de consumo no coração da sexualidade : « Ferimo-nos, fazemos amor, como nos enxugamos Que desperdício » (7). Efetivamente é um gozo do Um, solitário, que orienta ou desorienta o sujeito contemporâneo. Com o discurso capitalista que passou por aí. « A fantasia é ainda gratuita », lançam eles (8).
Eles abordam temas de nossa sociedade atual. O que nos propõe esta sociedade? Quais são as modalidades de encontro, de gozo entre homem-mulher ? No texto « Uma fantasia », Jacques-Alain Miller coloca a questão de saber se a nova bússola da civilização não seria o objeto a ? O objeto a, mais-de-gozar, nos comanda ! Ele acrescenta : « O mais-de-gozar comanda um « isso falha » e precisamente um « isso falha » na ordem sexual » (9). Do mesmo modo. ele afirma que : « O Um inteiramente só será o padrão pós-humano comandado por um mais-de-gozar » (10). É o que testemunham os textos de Fauve : « Basicamente, o projeto nasceu porque tínhamos em comum essa frustração com a rotina […] uma espécie de tristeza com os relacionamentos humanos, sobretudo no nível sentimental, sexual, uma espécie de miséria que nos tocava ». (11)
Eles levantam a constatação de que nós somos desbussolados, mas face a isto, resta a invenção e a aposta do encontro, notadamente o encontro amoroso. É o que ilustra a declaração de J-A Miller : « O amor é o que poderia fazer a mediação entre os uns-inteiramente-sós » (12). Está do lado da invenção singular, a se renovar sem cessar.
Depois de um primeiro EP (13) e um album a sair proximamente, apostemos que Fauve vá rugir ainda algumas epifanias noturnas ! Queremos mais disso, ainda (en-corp) !
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(1) Site na internet : http://fauvecorp.com/
(2) Tonet Auréliano, Cinq tigres blancs dans la nuit fauve, no lemonde.fr, 4 de janeiro de 2013
(3) Fauve, Texte « Blizzard ».
(4) Fauve, Texte « Cock music Smart music ».
(5) Tonet Auréliano, ibid.
(6) Chiriaco Sonia, Vers le réel, Go!, Lettre de l’ECF vers le congrès, n°0
(7) Fauve, Texte Nuits Fauves.
(8) Ibid.
(9) Miller J.-A., Une Fantaisie, Mental n°15, fevereiro de 2005, p.18
(10) Ibid., p.19
(11) Boursier N., Fauve ou la chanson comme thérapie, sem ouestfrance.fr, 20 de abril de 2013
(12) Miller J.-A., ibid., p.27
Extended play (mini album)
Em inglês, no original. Uppercut – (boxe) direito ou direto ( no queixo), golpe curto dirigido de baixo para cima.
** Em inglês, no original. Spoken word – palavra falada.
*** Slam – El Slam pode ser um tipo de poesia. É poesia oral interpretada. Muitos poetas que escrevem Slam não publicam seus trabalhos porque não são completos sem a interpretação, algo que confina com as representações teatrais.
**** Fauve quer dizer, ao mesmo tempo, selvagem e ruivo, uma cor avermelhada. A frase seguinte joga com os múltiplos sentido da palavra.
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