Quarta-feira, 08 de janeiro de 201419h00 [GMT + 1]
NO 366
Eu não teria perdido um Seminário por nada nesse mundo — Philippe Sollers
Nós ganharemos porque não temos outra escolha — AgnÈs Aflalo
www.lacanquotidien.fr
por Miquel Bassols
– Desabastecimento pós-festas-
Culpa e corrupção*
por Miquel Bassols
Os laços inconscientes entre corrupção e sentimento de culpa são bastante paradoxais. São fonte de toda sorte de hipocrisias. E seu segredo pode permanecer um mistério para cada um. A historinha contada pelo humorista americano Emo Philips resume isso muito bem: «Quando eu era pequeno, rezava todas as noites para ter uma bicicleta nova.Depois, me dei conta que Deus não funciona assim. Então, eu roubei uma bicicleta e rezei por seu perdão.» É nesse paradoxo que o sujeito de nosso tempo experimenta seu laço com o gozo e com a falta. O cinismo do argumento não exclui a miserável verdade que fica escondida nessa operação: é preferível crer na absolvição da falta, na impunidade do gozo imediato, do que no desejo que, por si só,faria com que se merecesse esse objeto de desejo. A psicanálise descobre essa equação nas sutilezas do sentimento de culpa: existe somente a certeza e a constância de um desejo, para me fazer responsável por um gozo, que eu jamais obteria impune.
É, sem dúvida, uma das razões que faz com que, nos rankings internacionais, os países que menos sofrem de corrupção sejam os países mais influenciados pela tradição luterana. Tal tradição experimenta maior desconfiança quanto à confissão dos pecados, que permite a absolvição e a impunidade do gozo. É ainda uma tradição que criticou radicalmente o tráfico de indulgências – a compra do perdão -, princípio de toda corrupção. Ao argumento utilitarista do humorista americano, o sentimento de culpa responde isto: não existe gozo impune. Seu desejo por uma bicicleta tem um preço, que você não pode negociar.
Soma-se a este argumento a crença na reciprocidade do gozo – se o outro faz, eu também posso fazer –, a lógica do vírus da corrupção está assegurado, mesmo no melhor dos mundos possíveis.
Logo, não é surpreendente que todos os historiadores que se debruçam sobre o fenômeno da corrupção a concebam como um fato ineliminável e inerente ao ser humano, em todas as sociedades e culturas, ora como um mal menor, ora como o princípio mesmo de seu funcionamento. A corrupção seria assim «um fenômeno inextirpável, porque respeita, de maneira rigorosa, a lei da reciprocidade», como escreve Carlo Brioschi, em sua Brève histoire de la corruption1. Segundo essa lei, nenhum favor é desinteressado, e gozar de uma prebenda será sempre justificado.Da mesma forma, essa lei de reciprocidade autoriza cada um a gozar, sem sentimento de culpa, daquilo que o outro goza.
Por conseguinte, tudo aparece como uma questão de grau: o gozo suposto ao outro é um pouco mais ou um pouco menos importante que o meu? A troca recíproca de prebendas é maior ou menor? Acontece o mesmo com as concessões conferidas para se obter o objeto de gozo: essa bicicleta que cada um exige como um direito que lhe é devido. A crença no Outro que pode perdoar e no Outro que contabiliza o gozo está no princípio da comercialização e de boa parte dos laços sociais. Na realidade, é uma crença tão religiosa como qualquer outra.
Em nome dessa crença, pode-se admitir toda corrupção como relativa ao tempo e à realidade em que se vive. Assim, quem ousaria sustentar hoje como politicamente correta esta frase do grande Winston Churchill: «Um mínimo de corrupção serve de lubrificante benéfico ao funcionamento da máquina da democracia»? É unicamente por uma questão de grau que ela se difere das afirmações sustentadas, há algumas semanas, por Luís Roldán, exemplo paradigmático da corrupção da sociedade espanhola de nosso tempo, em uma entrevista concedida à imprensa: «A corrupção era e é estrutural.»
Trata-se apenas, dirão vocês,de um problema de linguagem, da significação que se dá às palavras, para se sentir um pouco mais à vontade diante da justificativa intelectual do fenômeno irredutível da corrupção. Mas,então, essa afirmação de Jacques Lacan será ainda mais certeira: «O maior corruptor dos confortos é o conforto intelectual, como a pior corrupção é aquela do melhor.»2 O que quer dizer também que a primeira corrupção é a corrupção da linguagem, quando se começa a ceder sobre a significação das palavras, a que modula e determina a significação dos nossos desejos.
Por isso, vejamos: por que vocês queriam então possuir esta bicicleta?
*A ser publicado, em breve,em um dossier «Culpabilité et jouissance» do suplemento Cultura/,no jornal de Barcelona La Vanguardia.
1Brioschi C. A., Breve storia della corruzione: dall’età antica ai nostri giorni, Milano, Tea, 2004.
2Lacan J., Écrits, Seuil, Paris, 1966, p. 403.
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Les plus grands films que vous
ne verrez jamais
por Aurélie Pfauwadel
Escrever uma história de objetos perdidos para sempre, de atos cinematográficos para sempre faltantes, tal é a ambição original de Simon Braund, em sua obra Les plus grands films que vous ne verrez jamais1.
Este livro esboça uma história alternativa do cinema: uma história dos projetos artísticos mais megalomaníacos ou absurdos que, finalmente, não viram o dia – de diretores tão talentosos como Charlie Chaplin, Robert Bresson, Orson Welles ou Francis Ford Coppola. Vários são os filmes que se perdem no limbo de Hollywood, por um monte de razões, por vezes contingentes, e, mais frequentemente, financeiras ou ideológicas. Mas alguns filmes «não-nascidos» ganharam o lugar de mitos cinematográficos : obras-primas escópicas últimas que não se « verá jamais » – fórmula bem feita para evocar, aos nossos ouvidos lacanianos, a impossibilidade de alcançar o objeto do desejo, destinado a permanecer faltante.
Assim, não contemplaremos jamais em nossas telas « o melhor filme de todos os tempos »2, como proclamava orgulhosamente Stanley Kubrick,quando queria dirigir seu monumental Napoléon. Antes de Laranja Mecânica, Kubrick passou anos acumulando todos os arquivos e informações possíveis sobre a vida do Imperador, aponto de ser a maior coleção de documentos sobre Bonaparte no mundo. Para cada um desses temas, Kubrick, como um Zola do cinema, era conhecido por conduzir pesquisas minuciosas e exaustivas – ele passara vários meses frequentando assiduamente a NASA pararealizar2001uma odisseia no espaço. Ele levou o perfeccionismo relativo a Napoleão até a obtenção de uma erudição histórica excepcional, tendo lido mais de 500 livros, visto todos os filmes sobre o personagem, acumulado 15.000 imagens sobre as sociedades dos séculos XVIII e XIX, e toda sorte de objetos de época (esboços, pinturas, uniformes, pistolas, castiçais, etc.).
Ele visava uma reconstituição em escala real das batalhas, nos lugares históricos, pensando em chamar 40.000 infantes e 10.000 cavaleiros do exército romeno. Este Napoléon devia ser para Kubrick o que Salambô foi para Flaubert: um poema épico grandioso, um afresco da estética inaudita, uma ópera militar, onde o movimento das tropas seria «como um balé». «Eu não quero simular as batalhas napoleônicas com menos soldados»3, afirmava o diretor. Kubrick chega a organizar a produção segundo um sistema hierárquico concebido de maneira quase militar, no qual os figurantes deveriam seguir um treinamento físico de quatro meses. Kubrick se tomava por Napoleão? Em todo caso, ele mesmo teria podido representar o papel.
O que nos parece particularmente lamentável no inacabamento desse filme é que Kubrick queria abordar o personagem sob o ângulo da psicanálise : o que pôde causar a queda de Napoleão? Como explicar que esse homem tão prudente tenha podido fracassar em sua campanha na Rússia? O cineasta projetava tecer um paralelo entre as paixões guerreiras do herói e o campo de batalha de seus amores com Josefina. Mas a MGM decidiu de outra maneira, bloqueando bruscamente o orçamento exponencial do filme, escaldada pelo fracasso nas telas de três «Napoleão» rivais (entre eles o Waterloo de Bondartchouk).
Orson Welles, campeão de pepitas abandonadas, deplorava os malfeitos da máquina sacrificial hollywoodiana: «Perdi uma boa parte da minha vida buscando dinheiro…»; «Gastei energia demais com coisas que não têm nada a ver com um filme. É cerca de dois por cento de cinema, para noventa e oito por cento de solicitação»4.Na série dos projetos colossais, aprende-se especialmente que a ideia fixa de Sergio Leone era fazer um filme sobre o cerco de Leningrado, que Orson Welles ruminava sua própria visão de Don Quixote e Eisenstein, sua versão da história do México, enquanto Coppola só pensava em reconstruir Nova York em um Megalopolis.
Pode-se deixar a imaginação divagar sobre no que teria dado La Genèse por Robert Bresson ou L’enfer de Henri-Georges Clouzot. Que pena que Dalí e os Irmãos Marx – a própria essência do surrealismo na pintura – não tenham colocado em película sua louca Giraffes on horseback salads…
Papaoutai de Stromae1
por Eduardo Scarone
Kubrick (de novo) tinha até mesmo considerado fazer um filme pornográfico – Blue movie – para mudar o gênero e reinventá-lo. Mas, diante das ameaças de sua mulher, «razoável, Kubrick prefere a harmonia conjugal ao suicídio de sua carreira »5.
Todos esses filmes, retomando as fórmulas do Seminário 11 sobre o inconsciente, são « nem ser, nem não-ser, trata-se do não-realizado »6, e como tal, são causas de sonhos e de desejo.
[1] Braund S., Les plus grands films que vous ne verrez jamais, Paris, Dunod, 2013.
2Ibid., p. 70.
3Ibid., p. 73.
4Ibid., p. 136.
5Ibid., p. 72.
6 Lacan J., Le Séminaire, livre XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 38.
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Papaoutai de Stromae1
por Eduardo Scarone
Todo mundo sabe como se faz bebês,
Mas ninguém sabe como se faz papais
Stromae me apareceu, desde seu começo,como um artista no qual não se pode colocar rótulo.
Alguns sabem que ele conheceu um primeiro sucesso maciço com a canção Alors on danse2, que tecia o retrato de uma juventude um pouco no abandono, uma juventude em expectativa, sem garantia no futuro, Verwahrloste, tinha dito em 1925 August Aichhorn.3Eram já as premissas de uma juventude sem bússola. Este novo sucesso de Stromae, Papaoutai, interroga também esse ponto a partir, precisamente, da posição do filho.4
Seria relativamente simples, até mesmo simplista, considerar o laço autobiográfico presente no texto. O próprio Stromae não esconde isso. Nas entrevistas dadas a esse respeito, ele indica, sem desvios, que escreveu esse texto apoiando-se no que foi para ele sua infância sem pai : « Meu pai nunca esteve ali para mim, confiou ao Parisien. Ele foi embora logo. Era um paquerador, um mulherengo.Percebi, bem depois, que tinha meios-irmãos e meias-irmãs. Ele era arquiteto e fazia um vai e volta entre a Bélgica e Ruanda. Devo tê-lo visto umas vinte vezes em minha vida, e ele morreu durante o genocídio ruandês. Mas ele já tinha desaparecido para mim. » Stromae assinalou também a Télérama que: « Algumas crianças, que foram criadas por seus dois pais, têm sem dúvida mais sofrimento que eu com a morte de seu pai. Meu verdadeiro sofrimento é que não saberei nunca quem ele foi realmente. »5
Mas não é a escolha da orientação lacaniana se manter nesse lugar autobiográfico. Certamente também não é a escolha de Freud.
Trata-se mais de alcançar o que o artista nos assinala como via para a compreensão do humano, com essa dianteira que o psicanalista reconhece nele, para que o ensinamento que tiramos daí nos sirva em nossa prática.
O sucesso de vendas e o sucesso midiático obtidos por essa canção não pode deixar o psicanalista indiferente. Stromae consegue, como em Alors on danse, falar de um assunto grave, transmitido por uma música empolgante, alegre, dançante. O vídeoclipe que acompanha o lançamento do single acentua justamente esse ponto, graças à força transmitida pelos dançarinos de hip-hop de Marion Motin. Como em seu primeiro sucesso, Stromae mostra sua solução diante do que pode parecer como o impossível de suportar: o recurso à música, à dança, ao ritmo, como via de transformação da pulsão numa forma culturalmente aceitável.
O pai, nesse pequeno texto, não é aquele geralmente presente nos trabalhos dos psicanalistas. Estamos longe do que Lacan chama de « os grandes temas míticos »6, do Édipo, do Ghost de Hamlet, inclusive do pai presente demais de Une semaine de vacances de Christine Angot, comentado em Toulouse, em abril de 2013, por Jacques-Alain Miller.7 Estamos mais diante do pai que se esconde, do pai que se ausenta, que abandona. No entanto, proponho considerar que o grito desesperado, o chamado do filho que quer saber onde está seu pai, que o reclama, que o lamenta, que está irritado ou com raiva também, participa de uma época de transição, da « saída da era do pai »8 e nos mostra alguma coisa particularmente preciosa.
Nenhuma referência a Deus nesse pai papaoutai. É mais uma ausência que dura, que arranca uma questão sem fim. Somente o significante « sagrado » vem ressaltar o mistério que o recobre. O filho do texto de Stromae não ficou doente por causa da presença da palavra do pai, mas por sua ausência. A palavra do pai é, portanto, sempre um sintoma, como palavra recusada, desajeitada, covarde ou simplesmente inexistente.
Duas partes se distinguem claramente no texto da canção.
Estrofe 1, em que o sujeito se posiciona como criança, aquela que espera seu pai, que não vem, e que obtém ou forja várias respostas que tentam justificar, inclusive mascarar essa ausência.
Estrofe 2, em que o sujeito se posiciona como se tornando adulto e encarando um futuro sem a bússola paterna, confrontado com a ausência do segredo de fabricação do pai, o que se mostra como uma verdade para todos: ninguém sabe como se faz papais.
A partir de sua posição particular, o filho encontra assim uma questão universal sobre esse lugar não transmitido, liberado de todos os destinos possíveis.
Como inventar o pai a partir de uma ausência de transmissão? As diferentes posições consideradas são declinadas do imaginário. Com a falta da palavra do pai, só a via imaginária permite encarar a maneira de se tomar aí, ser um pai como este ou como aquele.
Como se fabrica um pai ? A questão pode se colocar para cada um, mas é destacando o que isso tem de enigmático que Stromae permite localizar que isso se fabrica com o que já está ali. Sujeitos se tornam pais através de uma transformação misteriosa. E sobretudo após trazer, cada um, a marca do seu. Um passo subjetivo é portanto indispensável.
Essa declinação de figuras imaginárias testemunha, em nossa época, o fato de que o pai simbólico não basta, é ele que está desvalorizado hoje, empurrando para uma encarnação que se organiza em modalidades do ser.
O pai como função simbólica que introduz uma normalidade não é mais uma via que satisfaz nossa sociedade. Do detestável ao admirável, do simples genitor ao gênio, do protetor ao irresponsável, Stromae situa o pai em uma paleta que vai da transmissão ao abandono, cada uma dessas figuras comportando um traço que vai (ou não) fazer um traço para a criança.Trata-se, em suma, de várias versões do pai, como Lacan exprimia, várias versões em direção ao pai.
Se Lacan conseguiu dar a fórmula da função paterna, a partir da obra de Freud, isso não retira nadado enigma que a encarnação dessa função continua sendo para cada criança.
Jacques-Alain Miller lembrava que, segundo Lacan, Freud fez muito para salvar o pai, mas que o desejo do pai, o desejo pelo pai, deixa-se interpretar mais em termos de perversão. Este, um termo clínico que Lacan utilizaemseuSeminário6, para indicar que todo desejo tem esse viés, e que o Édipo não é a solução única do desejo, mas a forma normalizada do desejo e sua prisão. O Édipo é patógeno. Sempre indo pela via indicada por Freud, esta leva Lacan para outros lugares : leva-o a considerar que o pai é um sintoma, e, principalmente, como parece assinalar também Stromae, que não se pode dispensá-lo, a não ser sob a condição de servir-se dele.
Stromae é uma criança do final do século XX, um artista do século XXI, logo, ele nos faz entrar na dança de um pai não encontrado, de um Papaoutai da era da pluralização dos Nomes-do-Pai. É isso que ele divide conosco, e principalmente, com as crianças, com os adolescentes do nosso tempo, nesse momento em que o sexual e a fabricação dos filhos não são considerados enigmáticos, mas tempos em que o pai se tornou opaco.
Em Stromae, o pai fica em tensão entre a recusa e o consentimento, entre a rejeição e a assunção. Mas, principalmente, trata-se de um pai que não determina a escolha da criança, um pai que não é uma bússola.
No texto da canção, o filho não sabe se o pai está morto ou vivo, sabe somente que ele não está ali para ele, que espera por ele. Como uma promessa que o desespera.
É esse ponto de falha do sujeito que o leva a colocar a questão central do texto : Faut l’sucer d’son pouce ou quoi ?
Esta frase coloca a questão da invenção, da qual cada sujeito é o autor ou o portador para fazer sintoma do pai e a partir daí tentar suportar, por sua vez, ocupar esse lugar, o que, bem entendido, não é proibido.
Podemos voltar então ao título enigmático, Papaoutai, como produto de lalangue, para encontrar aí a tentativa de forjar um significante novo, um neologismo, um significante que escapa ao código, que tenta nomear um pai que não se encontra, opaco, um pai contemporâneo, dessa « fase de transição », um sintoma próprio à saída da era do pai. É o Witz de Stromae.
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À ciel ouvert : câmera e olhares
por Sophie Boutin
1 Stromae, seu verdadeiro nome Paul Van Haver, nascido em 12 de março de 1985, em Bruxelas, filho de uma mãe belga e de um pai ruandês, é um autor-compositor-intérprete de hip-hop, de música eletrônica e da canção francesa.Ele escolheu seu nome artístico utilizando a palavra « maestro » em verlan (gíria francesa, que inverte as palavras).
http://fr.wikipedia.org/wiki/Stromae
A canção: Papaoutai – estilo house com influências pop zouk – Single, primeiro lugar de vendas na França, em 3 de agosto de 2013.
Seu lançamento é acompanhado de um vídeoclipe, que saiu em 6 de junho de 2013, dirigido por Raf Reyntjens e as coreografias elaboradas por Marion Motin, e recompensado no Festival international do filme francófono de Namur, 2013 (prêmio de melhor clipe). http://youtu.be/2J3y314I6tk
O título é um neologismo em « trompe-oreille » com conotações africanas, que joga com o mal-entendido da pergunta « papa, où t’es? » (papai, onde você está ?), que é uma versão, em linguagem familiar, da pergunta « papa, où es-tu? ».
3 Aichhorn A., Jeunesse en souffrance, Champ Social Éditions, Nîmes, 2002 (prefácio de Sigmund Freud)
4 stromae.net
5 Télérama n°3321 du 4 septembre 2013, entrevista de Valérie Lehoux
6 Le Séminaire livre VI, Le désir et son interprétation, La Martinière, Paris, 2013, p.295
8 Cf. note 7
9 Cf. Miller J.-A., … du nouveau! Introduction au Séminaire V de Lacan, rue Huysmans, coleção editada pela ECF.
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À ciel ouvert : câmera e olhares
por Sophie Boutin
Se muitos espectadores estavam advertidos quanto às questões relativas à psicose e ao autismo, inclusive quanto à teoria de Lacan, se muitos de nós tinha ouvido falar da instituição do Courtil e de seu formidável trabalho, realizado há quase trinta anos, fomos todos surpreendidos pelo olhar da artista que nos convida a ver « a estrela » no céu aberto do inconsciente psicótico. Esse documentário é um acontecimento. Ele provoca alguma coisa de radicalmente nova, com o que podemos ou não consentir, que toca nossa compreensão da criança autista e psicótica.
No momento em que ela busca alcançar, sem preconceito nem saber preliminar, o que é a loucura, como esta nos concerne em nossa humanidade, Mariana Otero faz de nós testemunhas impressionadas com o que as crianças arriscam transmitir, numa relação de confiança calorosa com os praticantes do Courtil e com a cineasta, de sua relação com a loucura e de sua criatividade, para extrair algo disso.
A câmera de Mariana Otero, divertidamente amarrada sobre seus ombros, para que tenha as mãos livres para brincar com as crianças, foi um objeto de que as crianças, cada uma a seu modo, souberam se apropriar. Estamos bem longe da suposta indiferença dos autistas, do suposto narcisismo dos psicóticos. Vemos em ação como, no respeito ao desejo singular da cineasta, de seu objeto que lhe permite trabalhar, cada criança saúda, à sua maneira, a câmera. Olho benevolente, olhar silencioso e desprovido de qualquer intenção, a câmera capta instantes intensos de medo, de perplexidade, de angústia, de risos, de surpresa, de charme, de travessura, de estridência. Traços fugazes do que, aquém ou além das palavras, fala da presença dessas crianças no mundo.
Existe mais que uma arte de fazer em Mariana Otero. Sua poesia juntou-se ao indizível da experiência íntima dessas crianças, experiência sensorial, ao mesmo tempo invasiva, trágica, que a câmera restitui à sua dimensão ética. Uma poesia que não é em nenhum caso um embelezamento, mas um esforço de tradução, uma modalidade inédita de dar conta do que se passa ao reunir a criança a esse limite,onde o indizível acompanha o horror do inominável.
Um documentário, certamente, mas principalmente um ato de leitura para compreender, com a escritura cinematográfica, o que não se pode traduzir com as palavras. Longos planos sobre a solidez das paredes do Courtil, a permanência estrita dos corredores e o tremular das árvores seculares, para acolher o instante precário, fugaz, de um achado onde o pequeno sujeito arrisca advir, a fragilidade dos espaços íntimos. Os momentos de silêncio que fazem vibrar de maneira perceptível as raivas mudas, os urros átonos. As passagens rápidas de um plano a outro, de uma sequência a outra, ecoam as fragmentações, os estilhaçamentos da vivência do sofrimento psíquico, mas também a leveza do saber fazer dos praticantes, para tentar acabar com a opacidade e a angústia massiva psicótica.
Mariana Otero escolheu, assim, fazer planos aproximados dos rostos dessas crianças.Somos afetados por uma imagem que nos salta à vista. Uma imagem que libera um charme, uma sedução, e que interpreta nossa própria relação com a loucura, relação de fascinação, mas não sem repulsa.Essas imagens estão inscritas numa escritura que dá lugar ao vazio, ao silêncio, mas também aos contrastes tocantes que constituem o espaço onde se recebe e se humaniza o sofrimento dessas crianças. Nós mesmo faremos um percurso por onde passaremos, pouco a pouco, da fascinação ao deciframento desse quase nada que dá sinal da presença no mundo dessas crianças. Veremos assim algumas estrelas incandescentes nos gestos das crianças, como a mão de Evanne, que passará da compulsão em encher sua vasilha com colheres de chocolate, ao gesto rápido e leve na medida de uma concha para fazer crepes.Como Alyson estende à câmera sua mão onde desliza uma minhoca, e cruza nesse instante de encontro com a câmera de Mariana Otero o terror do pequeno em consentir com a sensação do vivo.
A escritura cinematográfica torna legível o acontecimento à margem, no limiar, na fronteira. Será que isso tem a ver também com sua situação geográfica, na fronteira entre a Bélgica e a França, que a instituição do Courtil foi escolhida por Mariana Otero,para compreender alguma coisa sobre a loucura, a loucura que Lacan nos diz que, longe de representar um insulto à nossa liberdade, é sua mais fiel companheira, e o ser do homem não seria se não trouxesse em si a loucura como limite de sua liberdade ?
Depois de ter visitado, sem a priori, várias instituições, Mariana Otero apresentou-se ao Courtil. Esta instituição permite essa liga extraordinária, luminosa, entre rigor clínico e doçura de uma presença para a criança em sofrimento que dá lugar à surpresa, aos sorrisos, ao encantamento dos momentos pacificados. Serenidade e angústia andam juntas numa poética versificação do cotidiano, a escritura cinematográfica se ajusta ao tato dos praticantes. Qualidade de presença e silêncio de sua parte para sustentar o dizer do pequeno sujeito e suas invenções. Aos achados dessas crianças responde o trabalho, sem descanso, dos praticantes, tanto para manejara vassoura, a pá e o rodo, o violão e frigideira, como os conceitos lacanianos. A referência ao ensino de Lacan permite que se tenha, nesse dia-a-dia na instituição, esse modo discreto de fraternidade com a criança, que é um convite a dizer o que ela sabe de sua experiência de vivo às portas da loucura.
Foi se arriscando que Mariana Otero rodou 180 horas de filme junto à essas crianças. Nenhum cenário preliminar guiou sua arte de fazer. Ela fez esse filme de maneira tão mais criativa e viva, quanto dócil ao imprevisto, ao impensável, mas não sem a lógica do dizer desses crianças.
Com as crianças, temos que medir as consequências de nossos atos : o público interrogou Mariana Otero nesse sentido, às vezes com a desconfiança de uma resistência, que nos foi dada a ver e a compreender. Esse documentário, nós o recebemos,sob medida ; ele nos interpreta.
* Sobre a exibição de estreia em Lyon, segunda-feira, 2 de dezembro de 2013, de À ciel ouvert, com a presença da autora, Mariana Otero.
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Estreia nacional do filme À ciel ouvert
de Mariana Otero
8 de janeiro de 2014
Os leitores de Lacan Quotidien poderão encontrar no site :
– as datas das projeções previstas nas diversas cidades da França, na presença da diretora : Ver no site de LQ
– e a série de artigos dedicados ao filme publicados em LQ :
LQ 365 : « L’invisible est devenu visible… » por Delia Steinmann ; LQ 362 : « À̀ propos de À ciel ouvert » por Jean-Pierre et Luc Dardenne ; LQ 360 : « À ciel ouvert au festival « Traces de vie » por Claudine Valette-Damase e « Mariana Otero à Nonette » por Simone Rabanel ; LQ 351 : « Ouverture à propos de À ciel ouvert de Mariana Otero » por Jean-Pierre Rouillon ; LQ 342 : « Un film rare sur le sentiment de la vie » por Bruno de Halleux ; « L’univers du possible » par Delia Steinmann e « Le Courtil en trois questions » ;LQ 340 : « Mariana Otero, « une intervenante à caméra » au Courtil », entrevista rérealizada por Antoine De Baecque ; LQ 365 : « L’invisible est devenu visible… » por Delia Steinmann.
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Publicação de Latigazo n°2
Raquel Cors Ulloa& Dalila Arpin apresentam o n°2 de Latigazo, boletim de Latigo,
The Lacanian transatlantica de investigacion.