22 de maio de 2012٠ 23h10 [GMT+ 1]
NÚMERO 212
Eu não faltaria a um Seminário por nada nesse mundo— Philippe Sollers
Venceremos porque não temos outra escolha— Agnès Aflalo
▪ CULTURA E CLÍNICA ▪
“No fundo eu continuei bastante criança. Eu posso ser feliz pela simples razão de que eu me encontro noutro lugar, que eu tenho no meu bolso uma moeda diferente.” S. Freud
Carta à Martha, 7 de fevereiro 1884
Notícias do front
por Philippe La Sagna
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A fantasia de nossos sábios, de nossos médicos e de nossos filósofos torna-se cada vez mais fragmentada; um objeto comum a incita, o cérebro!
A fronteira entre quimioterapia, dopagem e psicoterapia torna-se cada vez mais imprecisa aos adeptos das psicoterapias científicas autoritárias. Em um pequeno artigo do European Journal of Psychotraumatology 2010, 1: 5643 – intitulado“Utilização de glicocorticóides para o aumento da eficácia da terapia por exposição prolongada: Justificativa e estudo de caso”.
Podemos ler que:
“A terapia por exposição prolongada (TEP) foi apresentada como redutora dos sintomas de estresse pós-traumático (ESPT); no entanto, é difícil para os pacientes se envolverem plenamente na repetição obrigatória de suas experiências traumáticas. Este problema se acentua pelo fato de que o hábito e os mecanismos que permitem a reconstrução cognitiva, sob os quais a TEP propõe-se a trabalhar, não são processos instantâneos e requerem frequentemente várias semanas antes que sofrimento associado à exposição imagética diminua.
Estudo de caso: Dois casos são descritos que ilustram respectivamente a utilização de hidrocortisona e de um placebo, em combinação com uma TEP, no tratamento de um ESPT relacionado a combates. Baseado nos efeitos conhecidos dos glicocorticóides na aprendizagem e nas performances mnêmicas, nós fazemos a hipótese que um aumento pela hidrocortisona melhoraria os efeitos terapêuticos da PET acelerando a nova aprendizagem e facilitando as diminuições de impacto emocional das lembranças de medo durante o tratamento”.
Este tipo de terapia medicamentosa é tão entusiasmante para os cognitivistas que se começa a desenvolver o tratamento TCC das fobias com “preparação” da sessão tomando corticóides. Com ou sem exposição ao objeto! De qualquer maneira se memoriza melhor as instruções com o cortisol… Um nível mais alto de cortisol poderia assim reduzir certas fobias segundo uma pesquisa suíça, ajudando o organismo a se preparar para a ação (sic). “A pesquisa verificou o efeito do cortisol com relação aos medos de aranhas e de falar em público”, podemos ler em uma publicação helvética.
A dopagem contemporânea é um assunto que interessa o Dr Joël Monzée que exerce seus talentos na França (Montpellier) e… no Canadá, como Diretor-fundador do Instituto de desenvolvimento da criança e da família. Ele se interessou bastante pelos traços biológicos da ação das psicoterapias, incluindo os das terapias psicodinâmicas! Ele é também um especialista da dopagem e da ética. Ele chega à conclusão que as normas prescritivas ou jurídicas são inúteis nos sujeitos que se autorregulam e que elas são indispensáveis nos sujeitos ditos “heterorregulados”, quer dizer, os sujeitos mais sensíveis à autoridade (Fonte: Wikipédia). Por acaso selecionamos autônomos ou heterônimos em nossas escolas ou universidades? O que é certo é que o doping se espalha entre os estudantes. Eles de fato inteiram um ambiente altamente ansiogênico.
Os nootrópicos, prescritos às pessoas apresentando problemas cognitivos, tais quais a demência ou o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), são cada vez mais utilizados pelos estudantes: por exemplo, o modafinil (Provigil), o metilfenidato (Ritalina ou Ritalin) e os estimulantes a base de anfetamina (Dexedrine, Adderall).
Até 25% dos estudantes nos EUA tomam medicamentos à base de metilfenidato (Ritalina), que é muito frequentemente utilizado para esta finalidade, e anfetamina para se preparar para exames. A novidade é o uso dopante de medicamentos indicados no Alzheimer, o donepezil (Aricept), ou aqueles prescritos na doença de Parkinson (Deprenil). Os medicamentos para tratar a demência “poderiam fazer uma diferença importante na capacidade de uma pessoa estudar e de obter bons resultados nas provas”. Alguns acreditam, porém, que isso seria principalmente um efeito da sugestão …
Mas a dopagem genética é para amanhã. Nós já conhecemos o efeito do Repoxygen que é um “gene remédio” para combater a anemia. Ele rapidamente se tornou um substituto do EPO nos esportistas por conta da sua capacidade de suscitar a produção deste hormônio no corpo. Dar a vida à ratos geneticamente modificados, dotados de uma massa muscular aumentada, é hoje em dia possível. Este outro avanço científico interessaria os esportistas. E sobre o gene responsável pela produção de serotonina? Ou de ocitocina …
Mas a aprendizagem pura e simples no sentido do desempenho também não esta ausente, não se trata mais do sudoku, mas de exercício frente o visor do escâner.
Na sua última fábula filosófica, “Ler o cérebro”, Pierre Cassou-Noguès retoma a ficção do cerebroscópio de Herbert Feigl, que será em breve tornada “possível” pelos progressos da imagiologia médica.
Na realidade esta “máquina” é tão fictícia e teórica quanto a de Turing. Ela é o instrumento que permite apreender fisicamente, em uma “tela” os estados neuronais identificados aos estados mentais. Esta ficção do cerebroscópio foi celebrada por Bernard Andrieu em 2006, no comentário da obra Da física ao mental, consagrado à Feigl, primeiro membro fundador do famoso Circulo de Viena. Bernard Andrieu retoma na ocasião com outros, dentre os quais Sandra Laugier, o eterno dossiê do Mind-body problem: devemos identificar o estado neurônico e o estado mental à ponto de reduzir um ao outro? Ou mesmo eliminar o primeiro em um fisicalismo radical?
Thomas Nagel tinha a preocupação de colocar um limite… Isso não nos diz o que é a sensação de ser um morcego… The Bat problem!
O autor da coletânea sobre Feigl nota em conclusão que, longe da estática, o estado mental pode ser correlacionado à uma função de rede: “Esta ‘cognição em rede’ interdita uma autocerebroscopia frenológica, mas abre a perspectiva de uma subjetividade neurobiofenomenológica ligando, ao menos para o sujeito, mais que para o observador, sua experiência mental vivida com a interpretação da rede neurocognitiva”. (p.203) Para o inferno o que Google pensa!
Com o cerebroscópio se tornando “funcional”, a máquina de “saber o que pensamos” esta quase lá!
Para Cassou-Noguès, o problema se formula diferentemente: não é uma máquina que lê os pensamentos, mas o pensamento se torna o que a maquina lê.“Será preciso sem dúvida que a máquina não cometa regularmente erros grosseiros. Mas sabemos bem que basta alguém dizer que nós parecemos estar cansados para que nós nos sintamos cansados. O mesmo fenômeno se produzira no amor, na tristeza ou na alegria. Só o fato de ler no BR (Brain readers) nossa tristeza nos tornará tristes”. (p.137)
A máquina, o BR é fruto do trabalho de Trams e Smart (provável alusão especular à J.J.C. Smart autor de “Sensations and brain process”). O autor de “Ler o cérebro”, civilizado, acrescenta: “Enfim, se Lacan podia afirmar que o desejo é sempre desejo do Outro, este Outro é, a partir de agora, a máquina”; (p.137).
É aí que nós compreendemos o sentido político da tese do Outro que não existe!
O casamento do sujeito com seu estado cerebral realiza enfim o sujeito-máquina dos tempos modernos que fazia Deleuze sonhar. Até o sábio, estudioso louco, ter a ideia de “programar a máquina para que ela imprima ao sujeito as intenções, os pensamentos que ocasionariam um mínimo de descontentamento” (p.185)
Finalmente é chegado o tempo do brave new world!
Não há mais a fazer do que imaginar um vírus capaz de desregular a máquina e a suas consequências para os seres humanos: “devem assim reaprender a falar, e esta aprendizagem da fala apaga a memória de seu estado anterior, suas vidas no registro da comunicação cerebral até a doença que trará o fim” (p.187).
Mas o sujeito contemporâneo já é máquina e aparelhado pela sua linguagem e seu Ipad, ele esta dopado, e suas emoções já são mais ditadas pela televisão que pela literatura, a educação ou ainda a família. Felizmente o vírus já esta aí há bastante tempo no inconsciente… Isso vai fracassar, isso já fracassa. E o inconsciente serve para isso, para sair da máquina autística e reaprender a falar… Durante este tempo, Bernard Andrieu se inquieta sobre uma possível brecha entre os estados mentais e os estados neurobiológicos: “Admitir uma tal lacuna seria supor uma atividade subjetiva mental onde a imaturidade escaparia a determinação neurobiológica”. (p.203)
Sim! Há de fato a materialidade da palavra que escapa à máquina!
(NT: Sobre: materialidade da palavra. Em francês: Moteriel. Jogo de palavra composto por Mot = palavra e matériel = material).
Bibliografia:
Pierre Cassou-Noguès Lire le cerveau Seuil 2012-05-20
Bernard Andrieu Herbert Feigl De la physique au mental Vrin 2006
PETIÇÃO INTERNATIONAL
PELA ABORDABEM CLÍNICA DO AUTISMO
Iniciativa do Instituto psicanalítico da Criança
(Universidade popular Jacques Lacan)
ASSINAR A PETIÇÃO ON-LINE
NO SITE lacanquotidien.fr
>>Desde 16 fevereiro,
dia da colocação on line da petição,
12003 assinaturas já foram recolhidas.
TEXTO DA PETIÇÃO SOBRE A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO: www.lacanquotidien.fr
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▪ CLINICA ▪
Lego boy
por Lucie Pinon – Psicóloga
«Eu sou um trem curioso» me diz Charly, criança autista, indo da sala de espera à minha sala onde o recebo em um CMPP (Centro Médico Psico-Pedagógico)
Classificação, mapas e inventários.
Uma vez que estava em minha sala, Charly pede uma folha e vai procurar os legos. Ele faz uma construção na qual ele vai desenha o plano. Ele coloca os blocos em uma superfície, em seguida os recoloca conscienciosamente sobre seu mapa. Eu pergunto a ele se o pequeno trem não fazia também um pouco isso, delimitando onde estão as coisas. Minha questão parece agradar à Charly que sorri consentindo. Depois disso, ele se lança em um verdadeiro trabalho de delimitação. Ele faz por meio de desenhos o inventario do que constitui seu cotidiano: sua casa, seus brinquedos ou que ele come. Ele inventa jogos que consistem em reproduzir, diferenciar, classificar, contar, de acordo com as formas e as cores.
Charly tem sete anos. Ele chegou da Inglaterra há três anos. Ele se dirige à mim em francês, mas é difícil compreendê-lo, já que seu tom é monocórdio, seu vocabulário aproximativo e se utiliza da sintaxe inglesa. Não se interessa muito pelas questões que eu coloco a ele. No final de suas frases o tom baixa, como se ele falasse para ele. Ele olha para o lado.
Charly é uma criança alegre, dirão seus pais, mas às vezes uma coisa a priori insignificante, que vem mudar seus hábitos, o faz mergulhar em um grande sofrimento, não deixando outra alternativa que não seja o de um grito. Ele pode brincar sozinho durante horas sem procurar o menor contato. Na escola, ele se coloca à distância das outras crianças. Ele esta em CP (NT: abreviação para curso preparatório correspondente à pré-escola no sistema educacional brasileiro), ajudado por uma AVS (NT: auxiliar de vida escolar) já que ele é bastante lento e tem muita dificuldade em permanecer concentrado.
Tornar a língua viva: acento e pontuação
Charly me relata um dia sua surpresa diante de um fato que ele não consegue explicar. Ele queria ver o brinquedo lego na internet, ele digitou “lego” e para sua grande surpresa o site apareceu em inglês. Ele digitou “lego”, me diz ele com sotaque francês, e não “lego” com o sotaque inglês. O site deveria ter aparecido em francês, como se o sotaque devesse se materializar nas palavras.
Eu explico então à Charly que um mesmo alfabeto, uma mesma escritura das letras, serve para as duas línguas, mas com uma pronuncia diferente, isso o espanta. Charly distingue perfeitamente o inglês do francês e nunca os mistura.
No entanto, um ponto notável é a utilização da palavra inglesa “but”, pronunciada em um tom monocórdio. Esta palavra faz regularmente irrupção nas frases e atribui ao discurso de Charly uma pontuação, já que ele aprendeu sempre separar por um silêncio as palavras que o cercam. Esta palavra parece permitir uma articulação e a continuação da frase. Este “but” proveniente da língua materna, que vinha garantir certa imutabilidade na linguagem, agora desapareceu.
Estereotipias: do tremor ao suspiro.
Quando eu comecei a receber Charly, seu corpo era muito frequentemente atravessado por grandes tremores. Eles, progressivamente, deixaram lugar a gestos estereotipados, localizados: rotação dos ombros, gestos que consistiam em assoprar suas mãos e a passa-las em seu rosto. Um dia eu os evoquei, mas Charly não disse nada.
Meses depois, ele me diz estar incomodado por algo que é obrigado a fazer: fechar os punhos levantando os polegares, o que tem como consequência de fazê-lo perder nos jogos de videogame. Isto responde a uma necessidade na qual ele não pode dizer nada. Eu pergunto à Charly se um outro gesto menos incomodo poderia vir à substituí-lo. Ele parece interessado, mas não diz nada. Na sessão seguinte, o gesto desapareceu, no entanto Charly faz muito barulho com a garganta e também suspira.
Algum tempo depois, Charly começa a tocar (toucher) a sala com a ponta dos dedos (doigts). Eu pergunto se ele conhece a expressão “tocar na madeira” (“toucher du bois”). Ele não a conhece e não sabe também o que é uma expressão. Ele escuta atentamente minha explicação sobre o gesto que fazemos para se assegurar do fato de que as coisas vão continuar a ser o que elas são. Uma proposição de sentido que ele parece acolher com interesse. O gozo tão invasivo dos tremores parece ter sido circunscrito nos gestos cada vez mais discretos, hoje um leve suspiro.
Sua regra do jogo
No início, Charly me mantém um pouco à distância e progressivamente vai procurar fazer algumas coisas comigo. Ele propõe um dia uma partida de corrida de pequenos cavalos, mas eu apenas lancei o dado para dar inicio à partida e ele se joga em cima do dado para pegá-lo. Ele jogara no meu lugar. Depois, Charly vai construir seu próprio jogo, inventando regras, permitindo a ele me deixar jogar. Ele inventa posteriormente vários jogos de sociedade, que nós testamos juntos. Ele se aplica em estabelecer as regras e parece mais preocupado em verificar que tais regras funcionem do que em ganhar à partida.
Durante o recreio, ele gostaria de estar um pouco com os outros, mas ele não consegue jogar futebol. Ele tenta se colocar no lugar do árbitro, o que não é fácil! Ele deveria finalmente encontrar outra coisa, mas é um primeiro passo, Charly faz um amigo. Ele foi convidado por este amigo e gostaria de retribuir. Charly constrói assim o jogo “Tua Casa”, no qual, ao longo de um percurso, é preciso recolher as cartas que permitem convidar. Ele me diz isso algum tempo depois de ter convidado seu amigo a dormir na sua casa.
Ter sua voz
Durante um tempo, Charly se interessa bastante pelo herói de desenho animado Bob Esponja. Ele veste roupas do Bob Esponja, ele o tem no estojo ou mesmo no copo onde coloca sua escova de dentes. Ele o imita, o desenha e inventa novas aventuras para ele. Ele se apropria do humor absurdo do personagem e começa a modular sua voz, até aqui monocórdia.
Charly tem um DS e explora com ele todas as possibilidades. Ele grava sua voz – palavras – depois ele as “trabalha“. Ele modifica as sonoridades, faz passar a gravação de traz pra frente, grava falando de traz para frente para que o resultado seja o que ele fala normalmente, de frente pra trás. Ele me faz escutar uma paródia de uma canção do Queen que ele compôs, onde não se trata mais de um lover boy, mas de um Lego boy!
Ele se fotografa, de perto, de longe, produz imagens suas no caleidoscópio, faz pequenos desenho animados, de humor frequentemente negro. Suas criações são sempre inesperadas, às vezes surpreendentes. Um germe: um caule cresce, cresce chega até o céu, a flor começa a se abrir, ela mal abriu e grita: “Help!” antes de cair na terra, criação que evoca sua posição subjetiva.
Legoboy
Eu recebo Charly faz mais de quatro anos e ele esta atualmente na 6ème (corresponde ao inicio do ensino secundário ou quinta série). Ele é bastante apoiado pelos pais em todas as suas criações. Eles são atenciosos, sensíveis e participam voluntariamente de suas criações. Se de um lado ele vai bem na escola, de outro o laço com seus colegas não é nada fácil. Ele compartilha comigo suas dificuldades com relação a alguns alunos que o perturbam. Ele tem dificuldade de conversar com eles: ele fala para dizer o que ele tem a dizer, nada mais. Ele pode, no entanto mostrar-lhes suas criações e encontra aí um suporte para trocar com eles. Ele começou assim com um colega um filme para a festa de sua escola. O filme coloca em cena legos e deve então ser feito imagem por imagem afim de colocar os legos em movimento.
Assim, desde a primeira sessão, os legos estão presentes e constituem para Charly um apoio sólido, a partir do qual ele pode inicialmente ordenar e representar o mundo. Ele tenta agora de torná-los vivos, colocá-los em movimento, ele que anda sempre com a rigidez de um “lego boy».
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