6 de maio de 2012٠ 22h45 [GMT+ 1]
NÚMERO 208
Eu não faltaria a um Seminário por nada no mundo— Philippe Sollers
Nós ganharemos porque não temos outra escolha — AgnÈs Aflalo
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A Crônica de Éric Laurent
O fórum mais popular para os debates em andamento na prática clínica acaba de acontecer de 5 a 9 de maio na Filadélfia, com um nome bem apropriado. Trata-se do 165º Congresso da Associação Americana de Psiquiatria. O título e a palavra de ordem desse congresso foi: integração. Como integrar os cuidados psiquiátricos entre o médico generalista e o hospital num sentido amplo, num sistema que conhece as dificuldades com as redes de gestões privadas, de públicos diferenciados, nas diversas Organizações de Manutenção da Saúde (Health Maintenance Organisations), sem integração num sistema de saúde unificado. O sistema conhece também o excesso de prescrição de psicotrópicos pelos médicos generalistas, ou a dificuldade para integrar a psiquiatria civil e militar no tratamento dos veteranos e suas síndromes pós-traumáticas.
Este Congresso representa 10.000 participantes, com tudo em profusão: sessões plenárias, ateliers, mesas redondas, cursos, simpósios, convidados ilustres, palestrantes chaves, miríades de posters. Ele foi aberto com uma conversação entre Aaron Beck, professor emérito de psiquiatria da Pensilvânia e Glen O. Gabbard, Professor de psiquiatria no estado de New York e no Texas, sobre os pontos de convergência e divergência entre psicoterapias cognitivistas e psicodinâmica. Que se deixe claro: nada de slides, nada de texto, fala-se, luxo supremo.
O programa tinha 192 páginas, sem contar aquelas cujo conteúdo eram as centenas de posters. Ele começa com 30 páginas deDisclosure Index, lugar em que os expositores que têm ações ou compromissos diversos com os laboratórios farmacêuticos devem declará-lo. É também necessário que os expositores que nada tenham a declarar, que o declarem como tal. Evoca-se no programa tudo o que se fala no campo psiquiátrico. Foi muito difícil orientar-se neste labirinto democrático onde, no entanto, a ordem hierárquica é muito estrita. Para a psicanálise foi fácil, havia apenas uma única exposição no índice do programa, intitulado «Adolescência e reorganização do desenvolvimento da criança: um modelo neuropsicanalítico». Para todo o resto, será útil reportar-se aos artigos especializados do New York Times e do Washington Post que resumiram o essencial sob a escrita de Benedict Carey e de N.C. Aizenman.
Muito se falou nesse Congresso sobre as consequências da reorganização do campo clínico sob a influência do DSM 5 que será publicado em maio de 2013, e da importância desta reorganização para o «cuidado integrado». O mestre que está por vir, não cessa de polarizar o campo desde agora. O comitê dos 162 membros encarregados de finalizar o documento tornou pública sua decisão estratégica e altamente política de renunciar às duas novidades que haviam feito escândalo. Uma era a nova categoria de «risco de psicose atenuada». Tratava-se da possibilidade de identificar jovens que corriam o risco de desenvolver mais tarde uma psicose pesada, pelo fato de sofrerem alucinações ligeiras ou ideias delirantes. Havia o alto risco de que fossem pesadamente medicados, ao preço de efeitos secundários subestimados. As classificações psiquiátricas não podem dar-se ao luxo de admitir «psicoses ordinárias», porque seria necessário medicá-las, de modo também ordinário. Renunciou-se também ao novo «distúrbio ansiodepressivo misto», que abria a via para colocar sob antidepressivos o conjunto da população. Não se pode acreditar que estas categorias foram de fato abandonadas, por terem sido propostas pelo setor de biopsiquiatras mais fundamentalistas. São aqueles que consideram que a patologia seja provavelmente um vasto continuum, no qual as divisões da «clínica» seriam apenas artifícios retóricos infundados, e que seria necessário distinguir melhor os graus de intensidade. Estas categorias serão, portanto, colocadas numa categoria ad-hoc, aquela que nós aprendemos a conhecer com a literatura da HAS: «perturbações que necessitam de pesquisas posteriores». Entretanto é um fracasso da Big Pharma. Allen J. Frances, o Presidente do comitê que havia desenvolvido o DSM 4, agora no comando do movimento de oposição às extensões diagnósticas, congratula-se com este recuo, mas sublinha que há ainda um certo número de categorias suscetíveis de provocar efeitos perversos como o «distúrbio neurocognitivo secundário», ou a aceitação demasiado fácil da «adição». Ele declarou a Aizenman «As implicações vão muito mais longe do que o senhor possa imaginar… Ajuntem um novo sintoma e subitamente, dezenas de milhões de pessoas que até aqui não tinham qualquer diagnóstico, com ele revelar-se-ão e serão bombardeadas com publicidade na televisão fazendo propostas de medicamentos… Em lugar de estrangular o problema, o DSM 5 abrirá diques ainda mais profundos». O fato de acrescentar-se obrigatoriamente um parágrafo, no qual se afirma que a tristeza e os sintomas que acompanham uma perda significativa parecem-se com uma depressão, mas não são uma, é pouco tranquilizador.
Um ponto no qual o Comitê-DSM 5 tomou uma decisão de redução drástica foi sobre o autismo, ao propor suprimir a «Síndrome de Asperger» assim como o «transtorno invasivo do desenvolvimento» não especificado. O significado desta decisão foi objeto de vivos debates. Um estudo de Yale considera que o número de sujeitos autistas diminuirá pela metade, enquanto outro estudo apresentado no Congresso considera que isto não mudará muita coisa, no ponto em que estão os dados atuais. Como o diagnóstico é essencial para obter–se os benefícios financiados pelos estados, o diretor do Centro de Estudos sobre a Criança da faculdade de medicina de Yale acredita que a última hipótese seja verdadeira e que a situação permanecerá estável; no entanto, ele se pergunta de que adianta tocar neste ponto. Ora, um dos membros do Comitê-DSM 5, de quem nós relatamos as declarações em outra crônica, (“Autisme: Epidémie ou état ordinaire du sujet”, em LQ n° 194, de 10 de abril”) foi muito claro sobre isto. Trata-se de mudar a definição para «deter a epidemia do autismo». Pode-se deduzir daí, portanto, que isto não será fácil e dará lugar a reivindicações e debates já previsíveis.
Todo o Congresso de psiquiatria foi atravessado pela tensão entre extensão e contenção. Do lado dos neurocientistas, livres dos problemas clínicos, bem como de quaisquer objetivações das variações neurológicas que afetam os sujeitos autistas, liberam-se facilmente os limites. O artigo de Laurent Mottron publicado no último número de «Cerveau et Psycho» é exemplar. «Tudo o que se sabe hoje sobre o autismo nos conduz a ver uma organização cerebral diferente, mais do que uma doença» e que «É provável que o «espectro autístico» … represente uma população considerável … um estudo coreano recente mostrou que um indivíduo pode responder aos critérios comportamentais do autismo, tais como definidos pela comunidade científica, sendo totalmente autônomo e sem que seus pares observem seja lá o que for. Este seria o caso de mais de dois por cento da população em geral, juntando-se ao um por cento naqueles em que a diferença é evidente. Estes indivíduos são «autistas»? Sim, se forem definidos por um comportamento particular; não, se forem definidos por uma doença». Estamos portanto com 3 por cento, uma criança em 30, ou seja, com a dissimetria homem / mulher, um menino em 20. Esta «população considerável», dentro desta perspectiva, deve ser acolhida com sua diferença e ter acesso ao saber segundo as vias que lhes são próprias, de modo a otimizar o desempenho de seus membros. Será somente assim que se saberá o que é o autismo, porque no momento «não se sabe como se comportariam os autistas se eles tivessem acesso, desde seu nascimento, à informação correta». A comunidade de autistas é explicitamente comparada à comunidade dos escravos nas plantações. Os estudos cognitivos concluíram há tempos pela supremacia dos povos ocidentais, enquanto trata-se apenas de efeitos da exclusão do saber. Não se trata de adaptar a comunidade autista aos modos de viver da maioria e de querer apagar a diferença através de tratamentos comportamentais artificiais. Na tradição canadense de respeito pelas comunidades, Mottron propôs um neurocomunitarismo: «A demanda de adaptar-se a um mundo majoritário, fundado numa lógica da maioria, é uma lógica guerreira, ou eleitoreira. Ela não deveria dizer respeito às diferenças neurobiológicas que existem na família humana». Trata-se de encontrar o justo lugar dos membros desta comunidade. Mottron na verdade não gosta da psicanálise e não deixa faltar uma ocasião de fazê-lo saber, com uma falta de nuance digna de elogios. Entretanto, a objeção psicanalítica à comunidade de sujeitos reunidos sob uma mesma etiqueta deveria interessá-lo. O que se pode dizer de um sujeito de determinado tipo, não é de grande utilidade para um outro. O que se trata de visar não é a comunidade, mas sim, a particularidade. Isso, os praticantes do método TEACCH, como Bernadette Rogé, Professora em Toulouse-Le Mirail, interrogada no Mediapart sublinha, deve-se levar em conta a particularidade dos autistas: «de sua disponibilidade, sua motivação, seu funcionamento particular no plano sensorial, cognitivo, o que demanda muitas adaptações». Ou ainda, no «modelo de Denver», onde se combina jogo e aprendizagem numa «interação emocional positiva», «trabalham-se todos os domínios, linguagem, adaptação, motricidade… de uma maneira muito mais natural e espontânea». Para além da objeção pela singularidade, o neurocomunitarismo chega a um impasse devido à sua vocação em estender-se sem muitos limites, a partir de traços de comportamento, partilhando uma mesma disfunção neurológica não especificada, e que não faz mais sintoma.
No mesmo número de Cerveau et psycho (Cérebro e psicologia), um outro defensor da desaparição da clínica em proveito de avaliações neurocientíficas, Franck Ramus, sonha com outra proliferação. Ele põe em seu lugar a hubris do Deputado Fasquelle querendo legislar sobre os tratamentos do autismo. Ele vai mais longe, ele chama de seu desejo, a criação de uma «Agência nacional de avaliação de psicoterapias» apoiando-se no argumento, que nós conhecemos muito bem depois da Emenda Accoyer: o vazio jurídico. «Os tratamentos não farmacêuticos não são objeto de qualquer avaliação obrigatória, e estão no mercado sem nenhum controle». Está bastante claro que é para garantir que todos os tipos de obrigações sejam prescritas, listas de tratamento validadas em conjunto e com atualizações reveladas numa competência sobre todo o campo psíquico. Uma verdadeira usina à gás. Vê-se quais as contradições que induziram ao erro a antiga AFSSAPS, agora ANSM, enquanto seu domínio estava bem definido: aquele dos estudos biológicos. Tomamos conhecimento com desconforto, afinal, de projetos para a regulamentação do título de psicoterapeuta (decreto de 7 de maio de 2012 modificando o anterior de 20 de maio de 2010 relativo ao uso deste título, de acordo com o comunicado de LQ de 9 de maio). Pode-se imaginar facilmente os impasses nos quais esta nova Agência não deixará de perder-se.
Franck Ramus orgulha-se de não ser clínico e de orientar-se apenas pela «ciência», quer dizer, pelo horizonte das séries estatísticas da «medicina baseada em evidências». Ele é Diretor de pesquisa do CNRS, e também membro do KOllectif de 7 de janeiro, grupo de sustentação do documentário Le Mur, e «grupo de reflexão sobre o tema das práticas terapêuticas para crianças autistas, a fim de fazê-las evoluir apesar da resistência de numerosos psicanalistas». A animadora disso éBrigitte Axelrad, Professora honorária de filosofia e psicossociologia, autora de um livro sobre «a devastação das falsas memórias» (2011), que sustenta teses muito diferentes de Jean-Claude Maleval (1) sobre as causas da epidemia das «falsas memórias». Neste grupo, cruza-se também com Yann Kindo, professor de história-geografia, militante racionalista, cujo blog, hospedado por Mediapart, brinca com a psicanálise e recomenda a desobediência civil para «tornar-se um plantador voluntário de OGM (organismos geneticamente modificados)». Em 10 de maio de 2012, fiel às recomendações do «Manifesto para uma psiquiatria e uma psicologia baseadas em provas científicas» produzido pelo KOllectif, Franck Ramus publica em outro blog hospedado pela Mediapart um artigo orgulhosamente intitulado: «¨O sofrimento mental não é avaliável e nem mensurável¨.» Olha só! Ele aí reafirma sua fé nas bem fundamentadas avaliações estatísticas para mensurar tudo o que é do psíquico. Entretanto, no dossier consagrado ao autismo do número de abril de 2012 de Sciences et avenir (Ciência e futuro), ele não conseguia esconder sua surpresa diante do pouco impacto que havia tido o «Manifeste» du KOllectif, quando ele tentou recolher assinaturas para a petição em seu círculo. A causa disto seria simples «Segundo ele, muitos jovens psiquiatras julgaram arriscado para suas carreiras dizer em voz alta o que pensam baixinho da psicanálise francesa», relata o dossier de S&A. Nós temos aí dois elos da cadeia do campo subjetivo. Tudo no psíquico é mensurável, e se alguma coisa de imprevisto se manifesta, isto faz parte do complô psicanalítico. O fato, a evidência, é que o «Manifeste» foi um fiasco. O resto é interpretação.
1. Maleval J.-C., Étonnantes mystifications de la psychothérapie autoritaire, Navarin/Le Champ freudien, mai 2012
▪ ECOS E INFORMAÇÕES ▪
٠Obrigado, Presidente.
Fato divulgado pela delegação Brive-Tulle da ACF MC : o gabinete do Presidente do Conselho Geral de Corrèze transmitiu a seu Presidente então em exercício, M. François Hollande, nosso pedido de concessão de uma sala para organizar um evento em 2 de junho de 2012. Embora seja ordinariamente impossível colocar à disposição uma sala num sábado, M. Hollande nos respondeu prontamente que « de boa vontade » nos cedia a sala Corrèze, situada no centro do Hotel da secretaria « Marbot » em Tulle, a fim de organizar aí, como ele coloca em sua correspondência: » um fórum para a abordagem clínica do autismo » no sábado, 2 de junho de 2012. Devido à nossa urgência, não foi possível à cidade colocar à nossa disposição uma sala municipal neste dia, e nos voltamos então para o Conseil Général (Conselho Geral) com um recurso delicado, pois de sua resposta dependia a realização ou não deste evento. Nós agradecemos este acordo excepcional que tem valor de encorajamento, e como tal agradecemos a M. Hollande, Presidente ontem da Corrèze, e hoje de nosso país.
Gérard DARNAUDGUILHEM
(Secretário da Delegação Brive-Tulle da ACF-Massif Central)
٠Cubram este nome que eu não posso ver !
Mídias árabes foram obrigadas a adaptar a transcrição do nome de Jean-Marc Ayrault, para evitar que cada evocação do chefe do governo socialista se transforme numa história licensiosa. Com efeito, a transcrição em árabe – « Aïro » – é um sinônimo de « pênis » na linguagem familiar de numerosos países do Oriente Próximo. (L’Express, 16 mai 2012)
PETIÇÃO INTERNACIONAL PELA ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO
Através da iniciativa do Instituto Psicanalítico da Criança
(Universidade Popular Jacques Lacan)
NO SITE lacanquotidien.fr
>>Desde 16 de fevereiro,
Dia da colocação on line da petição,
11828 assinaturas já foram recolhidas.
(TEXTO DA PETIÇÃO INTERNACIONAL PARA A ABORDAGEM CLÍNICA DO AUTISMO)
▪ JANELA
O HOMEM A MAIS
Émilie Champenois
«Na fronteira entre a vida e a morte, seu destino trágico, esboço pontilhado em zonas de sombra pela humanidade contemporânea, regiões onde se pode destruir a si mesmo se ninguém estiver aí para nos alcançar a tempo»
(C. Leguil, Les amoureuses, Le Seuil, p.18)
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▪ O eterno feminino
« Foi como uma aparição1». Esta frase brota da escrita Flaubertiana, que em algumas palavras magnéticas, repletas de significado poético, resume bem o modo atemporal da definição do amor à primeira vista em sua transitoriedade. Esse algo que acontece, marcando o sujeito para sempre.
Tempo psíquico no qual o objeto ideal é elevado à dignidade da Coisa. Uma mulher que se torna sob o olhar de um homem: A mulher.
A exceção é madame Arnoux, a mulher eleita por Frédéric Moreau, o anti-herói desse romance de aprendizagem.
A vítima deste amor à primeira vista é um homem jovem, ele ficará marcado por toda sua vida pelo alvorecer deste desejo jamais fixado e que ficará como representação entre satisfação e insatisfação.
Mais adiante, quase ao final do romance, haverá uma segunda escansão que fixa o amor à primeira vista no tempo desamparado do real: «Foi como um choque no meio do peito…».
Na « Vie secrète2 (Vida Secreta) », Pascal Quignard escreve uma fenomenologia do amor à primeira vista «Eu sou apenas um fragmento de identificação que se encaixa, chorando de fome com o que lhe falta».
« Eu escrevo o perigoso prazer dos reencontros. Não há retorno sem o risco da desintegração de si e a absorção (…) Fulguração, fascinação dizem apenas do encaixe, num lampejo, mais rápido do que um lampejo, da forma mais recente sob a forma mais antiga ».
O raio atinge o fascinado, o aniquila. Encontrando com o que fundir-se, ele talvez encontre sua morte.
O reencontro se passa vinte e sete anos depois, durante um último encontro com a dama.
Frédéric viu os cabelos brancos de sua musa inspiradora, deusa das fontes de sua adolescência, ele sente algoinexprimível, uma repulsa, como o terror de um incesto.
Para Lacan3, prolongando o shreck (schreck= susto, medo, espanto ) freudiano, o terror é o efeito de surpresa produzido por um encontro faltoso com o real : um cruzamento produz-se de maneira acidental.
Na cena, Frédéric não quer ver, « para não degradar seu ideal, ele se vira ». Ele se afasta do real, abaixando-se para esconder sua perturbação, colapso do corpo inteiro.
No solo, ele é ultrapassado por seu fantasma : « A visão de seu pé me perturba ».
Um objeto parcial se esboça, aquele que ele só apreendeu como a fina pele do pulso, entre a luva e a manga que ele roçara com seus lábios.
Este momento assinala a volta do primeiro tempo, a lembrança da mulher do passado, casada e com filhos, amulher interdita que ele jamais possuiu sexualmente : « (…) é que eu estava apenas pensando ! Pois que eu sempre tive no fundo de mim mesmo a música de sua voz e o esplendor de seus olhos ».
Ela lhe responde do mesmo modo, com lembranças, mas reduzindo o passado ao presente:
« Algumas vezes, suas palavras me retornam como um eco longínquo, como o som de um sino trazido pelo vento ; e me parece que você está lá, quando eu leio passagens de amor nos livros ».
Estamos no século XIX, no final da Monarquia de Julho, Flaubert já revela o eterno feminino, o romantismo da mulher e o mito da cortesia e do príncipe encantado.
Ela é a mulher de todas as épocas e Frédéric o homem obsessivo de hoje.
Ela era a Única para ele, a mulher entre as mulheres, a intocável, e através desta, o desejo insatisfeito que jamais encontra satisfação, este é o esboço do luto impossível da mãe que aparece e do qual ele se furta.
En 1956, em Função e campo da palavra e da linguagem, encontra-se esta famosa frase de Lacan : « Reunir-se à subjetividade de seu tempo ».
▪De Flaubert a nossos dias
O que seria para o sujeito contemporâneo, o « Foi como uma aparição », dos tempos modernos?
Forçando a barra, o último filme sulfuroso de Steve McQueen, Shame, pode nos oferecer uma visão bastante radical.
Neste filme, o magnífico Michaël Fassbender encarna o anti-herói trintenário novaiorquino da ultra modernidade, viciado em sexo e guiado pela evacuação de uma necessidade sexual patológica, que não cuida nem de seumodus operandi, nem da eventual parceira.
Ele brinca de olhar o cotidiano de modo mecânico, reproduzindo sem descanso, muitas vezes por dia, o choque amoroso de um encontro excepcional.
É o semblante do amor à primeira vista sobre o fundo da farsa, na qual uma mulher vale por outra, e é intercambiável numa série infinita, com a qual Brandon preenche sua pulsão sexual insaciável.
A mulher inocente, anônima, torna-se a nova presa sem o saber, uma mulher ao acaso num vagão de metrô, sente-se repentinamente « iluminada » pelo olhar deste homem que a faz ser, não para sempre, mas pelo período de dois dias ou até mesmo de alguns minutos, a « exceção », a « fora-de-série ».
Uma mulher destaca-se na multidão através de um olhar, mas é um olhar que, ao perder sua transitoriedade e sendo muito insistente, faz surgir na cena a perturbação. Na moça imediatamente, o afeto não engana, a angústia vem substituir a ilusão do choque amoroso que a precede.
Uomo In Piu é o título enigmático do último filme de Paolo Sorrentino que se desenvolve na cidade de Nápolis dos anos 80.
O filme começa num lugar onde se pode ouvir a música Just an Illusion do grupo Imagination. O tom foi lançado.
O anti-herói, Antonio Sevillo, tem outro vício, é o futebol.
Ele joga como profissional e só se interessa por isto. Esta é sua vida, e ele o faz bem.
Por desgraça, no apogeu da carreira, ele fere gravemente a perna durante um jogo, seus sonhos se desfazem repentinamente. O imprevisível toca o real de seu corpo.
O abismo se abre a seus pés. É o início de uma descida aos infernos.
Isso acontece muito rápido : para os fãs, os treinadores, ele não conta mais, o peão será substituído por outro.
Obrigado a por termo à única coisa que sabe fazer, que é jogar futebol, amputado simbolicamente de uma parte de seu ser, seu ideal prossegue com uma nova intoxicação, não sem relação à anterior: tornar-se treinador. Por procuração, ele assim poderá insuflar sua paixão, e animar outros com a chama de sua vida.
Infelizmente, ele é repetidamente afastado pelo Presidente da federação. Ninguém mais quer ouvi-lo mas ele se obstina, não conseguindo vislumbrar salvação a não ser neste contra-investimento. Ele sacrifica tudo a esta paixão devoradora, até sua vida matrimonial.
Levanta-se durante a noite para atender à sua obsessão, a de desenvolver uma invenção técnica no jogo que revolucionaria o futebol graças ao « Uomo in Piu », « o homem a mais », uma nova estratégia de ataque em losango, que vai mudar tudo.
Em suas divagações noturnas e maníacas, ele põe em cena peões, como se fossem miniaturas de jogadores, e elabora táticas para um campo de futebol, usando como modelo um improvável tabuleiro de xadrez. Em suas noites acordado, ele cruza com sua mulher na penumbra do grande salão de seu apartamento, sentada no sofá, ao lado do telefone, olhando o horizonte, silenciosa e perdida em pensamentos insones.
O ambiente é sombrio apesar da beleza e espaço do lugar. O espectador sufoca, adivinhando o mal estar e o peso de um drama a chegar, irrevogável.
Antonio encerra-se nesta espiral, sem agir, sofrendo humilhações de seu treinador, do Presidente, de sua mulher, que acaba por deixá-lo por outro.
▪ Uma contingência que desarranja
Depois, em sua travessia pelo deserto um encontro acontece, ao modo de um « isso foi como uma aparição ». Apesar da simpatia que se instala para com o personagem, o espectador mesmo tendo dificuldade em acreditar, sente um novo ar, como uma via que se abre : a do novo amor.
Ela é casada, advogada, morena fatal, segura de si, do gênero destemido, sente-se que ela usa dos homens e dos encontros.
É uma mulher fálica, « mulher poderosa » como a Victoria de Winter do último romance de Reinhardt, que Pierre Naveau descreve tão bem em seu artigo4.
Eles saem do restaurante – atrás das portas fechadas joga-se sobre um fundo de mistério, o que descreve a mulher, espantada por ele não lhe colocar nenhuma questão. Ele, ele está perdido, estranho a si mesmo e seu mistério localiza-se finalmente, em um silêncio melancólico, carregado de nada. Mas o semblante funciona e tímido, ele se sente lisonjeado pelo interesse que lhe demonstra esta mulher abundante e audaciosa. A imagem de « fracassado » que está colada à sua pele desaparece por um momento, o bastante para deixar lugar ao possível.
Ela conduz, ela lhe propõe um segundo encontro numa festa mundana organizada por uma amiga.
Ele chega, ironia sem equívocos, « disfarçado» como jogador de futebol, pois esperava uma festa à fantasia. A dona da casa, vestida sobriamente, abre-lhe a porta e divertida mas compassiva, lhe propõe trocar-se em um aposento da casa.
Cinco minutos depois, Elena junta-se a ele na intimidade do quarto. O barulho da festa como fundo sonoro dá o tom. Ela se oferece rápida, rápida demais para o gosto dele « eu não via nosso primeiro encontro assim » ele lhe diz.
Ela não o ouve, ela comanda, ela sabe o que quer. Ela tira de imediato o vestido de festa, toma-lhe a mão, coloca-a entre suas coxas e deita-se na cama « eu quero você ».
Como homem objeto, « joguete futebolista » ele cede sem resistência, numa cena de amor que dá a impressão de durar três minutos, parênteses.
Ao final do coito ela se levanta, coloca seu vestido como se nada houvesse acontecido. Ela diz que gostaria de ir a Capri com ele e marca um encontro. Ela acredita nisso, ela não tem medo. Orgulhosa, vai juntar-se à festa e a seu marido, certamente presente.
Antônio não irá ao encontro marcado, a câmera para nesta mulher deixada no cais de Nápoles. « Capri não começará ».
Cortina.
▪ O horizonte da poesia
No O mito individual do Neurótico5, Jacques Lacan diz que de fato, como sempre é o caso na experiência dos neuróticos, a realidade imperativa do real vem antes de tudo o que o atormenta infinitamente ; o cenário fantasmático apresenta-se como um pequeno drama, um gesto, que é precisamente a manifestação do que ele chama de mito individual do neurótico. « A cada vez que a neurose tem êxito, ou tende a tê-lo, a assunção de seu próprio papel, a cada vez que se torna de algum modo idêntica a si mesma e garante a validade de sua própria manifestação em seu contexto social determinado, o objeto, o parceiro sexual se divide. O que é surpreendente na psicologia do neurótico é que basta entrar, não no fantasma, mas na vida real do sujeito, para tocar nisso com o dedo. Esta é a aura que rodeia mais familiarmente o parceiro sexual que tem para ele mais realidade, que lhe é mais próximo, com o qual ele tem, em geral, as ligações mais legítimas ».
Compreende-se que isto acabará mal para Antônio. Última viagem, ele toma um táxi para o aeroporto de Nápoles, deixando planar a dúvida de um improvável vôo. Mas não há solução, ele passa a noite olhando os aviões decolarem, parado, as mãos agarradas ao muro que cerca a pista aérea de Capodichino.
Ao amanhecer, metáfora do desejo que não aconteceu, ouve-se um estampido. Antônio acaba de meter uma bala na cabeça. Seu corpo afunda-se no terreno vazio, não muito longe da pista. Sob o sol, adivinham-se as marcações de um campo de futebol desativado.
« E isso foi tudo ».
Através da teoria freudiana « Da degradação universal da vida amorosa6 », este filme interroga o dilema trágico, alternativa do homem moderno face a duas vias possíveis : renunciar a seu ideal, perder suas ilusões aceitando habitar o mundo mais poeticamente em face do real, ao absurdo da existência e da ausência da relação sexual, ou capitular diante da pulsão de morte, armadilha da jaula narcísica onde dominam o imaginário, o ficcional e o mítico.
Um modo entre outros de ocultar-se a questão. Ocultar-se a questão até deixar a própria pele ₪
1. Flaubert, G. ; L’éducation sentimentale, 1996, éditions Folio Gallimard-format livre de poche.
2. Quignard, P. ; Vie secrète, éditions Gallimard, livre broché, 1998.
3. Lacan, J. ; L’angoisse, le Séminaire X, 1962-1963, Seuil, 2004.
4. Naveau, P. ; Lacan quotidien n°149 du 6 février2012.
5. Conférence donnée au Collège philosophique, invité par Jean Wahl le 4 mars 1953.
6. Freud, S. ; Oeuvres complètes, volume XI. 1911-1913, PUF, 1998.
Lacan Quotidien
publicado por navarin éditeur
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