GPS off road – Boletim da XVI Jornada da EBP-MG – n. 6 O inconsciente descreditado e o desabonado do inconsciente Entre as precisas elaborações de Jésus Santiago em “A experiência analítica na época da permissividade delirante”[1][1], destacarei uma frase que me pareceu luminosa com relação ao desafio com que a psicanálise enfrenta nos nossos dias tomados pelas vacilações do Simbólico, instabilidades do Imaginário e casualidades do Real: “um sujeito demanda um tratamento sem dar crédito à existência do inconsciente, mesmo porque sua crença se aloja no gozo que provém de suas fantasias sexuais”. À crença no gozo proveniente das fantasias sexuais se conjuga, então, um descrédito quanto à existência do inconsciente. Como se analisa, hoje, frente a essa desvalorização? Jésus responde que, embora tal descrédito desafie a experiência analítica, não lhe é propriamente um impedimento porque as fantasias que ganham corpo nas práticas sexuais contemporâneas “não são capazes de vedar o efeito real da não-relação entre os sexos”, ou seja, não fazem com que “as relações entre os sexos” funcionem “a mil maravilhas”. Portanto, mesmo que o inconsciente seja descreditado, os enigmas que permeiam os modos de gozo fazem com que muitos sujeitos possam conferir algum crédito ao que podem escutar de um analista, especialmente se ele, a meu ver, com base na própria experiência analítica, for sensível ao que Lacan, no Seminário 23, chamará de “desabonamento do inconsciente”. Para elucidar esse meu ponto de vista, farei referência a duas breves situações clínicas. Em um texto que se encontra entre as “primeiras publicações psicanalíticas” de Freud, “As neuropsicoses de defesa” (1894), é evocado o caso de uma mulher neurótica que se queixava de ser compelida a “atirar-se pela janela, ou de uma sacada” e por um temor, quando via “uma faca afiada”, de “apunhalar o próprio filho”. Admite, ainda, que não tinha muitas relações sexuais com o marido, mas que isso não era um problema porque ela não era de “natureza sensual”. Se considerarmos a afirmação freudiana de uma etiologia sexual para as neuroses, poderemos tomar essa ausência de “natureza sensual” declarada pela paciente como um tipo de descrédito dado ao inconsciente. Entretanto, e aqui me sirvo do que aprendi com o texto supracitado de Jésus, o fato de a época em que aconteceram os primórdios da experiência analítica não ter sido marcada por uma permissividade tornava mais frágil a adesão dos sujeitos à crença no gozo proveniente das fantasias sexuais: uma forte repressão, assegurada inclusive pela operação do recalque, permitia à paciente não acreditar no quanto era mobilizada pela sexualidade, mesmo no seu pretenso “desinteresse sexual”. Mas bastou Freud dizer-lhe que a visão de um homem a faziam ter “ideias eróticas”, a considerar-se “uma pessoa depravada, capaz de qualquer coisa” e ela admite “a pobreza de seu casamento”, bem como “a sensação, frequentíssima, de que alguma coisa a forçava por sob a saia”. Ao admitir isso, ela dá ao inconsciente algum crédito. A segunda vinheta clínica vem de um caso que pude supervisionar, relativo a uma jovem que, já nas primeiras entrevistas, apresentava-se como não tendo “nenhum problema sexual”, inclusive porque vivia “plenamente sua sexualidade”. Tal “plenitude” no âmbito da vivência a contrasta com o desinteresse sexual inicialmente declarado pela paciente de Freud, embora essas duas mulheres – separadas há mais de um século – aproximam-se no descrédito que, cada qual a seu modo, fazem ao inconsciente. À segunda, foi perguntado por que ela, então, queria se tratar. Responde que seu desembaraço sexual não lhe é suficiente para que “consiga ter um namorado”. Um mesmo problema libidinal atravessa essas duas vinhetas clínicas: como uma mulher pode viver sua sexualidade com um homem? Separados e diferenciados pela chamada “liberação sexual”, os corpos dessas duas mulheres são tomados pelo real que, com Lacan, podemos localizar no que “retorna sempre ao mesmo lugar” e pode ter como, digamos assim, um de seus nomes, “a inexistência da relação sexual”. Se muitos analistas, hoje, são nostálgicos da decifração freudiana das metáforas sexuais corporificadas nos sintomas, a orientação lacaniana oferece-nos outro viés: quando uma análise pode dar lugar à experiência do desabonado do inconsciente, um analista poderá então vir a discernir que, se um sujeito neurótico descredita o inconsciente, isso não significa que ele não sofra seus efeitos, inclusive porque o inconsciente, mesmo descreditado pela crença no gozo proveniente da fantasia, não deixa de ser um o que Lacan, no Seminário 23, chama de “parasita falador” imiscuído, ainda que de modos diferentes, tanto no “desinteresse sexual” da paciente freudiana quanto no “desembaraço sexual” daquela cujo caso pude supervisionar. Em ambos os casos, é a “surdez” própria à neurose que impede as pacientes de escutarem o que, em seus corpos, fala sem parar. No Seminário 23, Lacan considera duas vias com relação a esse “parasita falador” chamado “inconsciente”: “liberar-se” dele “ou, ao contrário, deixar-se invadir pelas propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala, pela polifonia da fala”. Muitos neuróticos hoje, tomados pela crença no gozo de suas fantasias sexuais, descreditam o inconsciente. Ao contrário, como verificamos tantas vezes nos testemunhos dos AEs (Analistas da Escola), é apenas quando uma análise deu mostras de ter chegado a seu fim que certa liberação do parasita falador se processa, e justamente porque esse fim – diferente do que apresentam muitos neuróticos atualmente – implica um descrédito quanto ao gozo extraído da fantasia. Disse “certa liberação” porque uma análise não torna um sujeito imune ao inconsciente e porque, quando ela chega a um fim, terá como produto um analista. Graças a essa concepção do analista como produto de uma análise, parece-me possível conjugar (e não apenas tomar como alternativas exclusivas) as duas vias referidas por Lacan quanto ao “parasita falador”. Afinal, ao sustentar uma relação de descrença com sua fantasia, um analista-produto-de-sua-própria-experiência-analítica manterá outro tipo de relação com o parasita falador que lhe toma o corpo e, caso seja um praticante da psicanálise, esse analista vai – por outro viés – “deixar-se invadir pela propriedades de ordem essencialmente fonêmica da fala”. Trata-se de outro viés porque ele vai escutar reverberar essa “polifonia da fala” sobretudo nos corpos daqueles que o procuram como pacientes, mesmo se estes, como é tão frequente hoje, possam descreditar o inconsciente à medida que seus modos de gozo os ensurdecem quanto aos efeitos deletérios desse parasita. Sérgio Laia – Coordenador da XVI Jornada da EBP-MG ******* SOLICITAÇÃO 1 Membros da EBP residentes fora de Minas Gerais e que virão para a XVI Jornada da EBP-MG, favor enviarem uma mensagem para [email protected], assinalando-lhe quando chegarão. SOLICITAÇÃO 2 Membros da EBP e Aderentes da EBP-MG que publicaram livros recentemente e tenham interesse em lançá-los durante a XVI Jornada da EBP-MG, favor entrarem em contato com Mônica Campos, coordenadora da Comissão de Livraria: [email protected] ******* AVISO 1: Se você pode ajudar-nos a divulgar a XVI Jornada da EBP-MG, entre em contato com Cristina Nogueira, Coordenadora da Equipe de Divulgação: [email protected] A partir desta próxima 2a feira, dia 19 de setembro, já teremos, na sede da EBP-MG, cartazes para auxiliarem na difusão da Jornada nesta “reta final”. Ainda há também folders disponíveis, para o mesmo fim. AVISO 2: GPS off road continuará circulando, até a data da XVI Jornada da EBP-MG (28 e 29 de outubro de 2011). 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[1][1] Nesse texto, Jésus retoma, em parte, sua intervenção, realizada no semestre passado, no Seminário Preparatório para a XVI Jornada da EBP-MG: http://jornadaebpmg.blogspot.com/