A saúde para todos, não sem a loucura de cada um.
(perspectivas da psicanálise) [A experiência analítica] “introduz o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto, representante daquilo que, do gozo, resta insocializável” (J. A. Miller, “A salvação pelos dejetos”). O Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana reunirá, pela quinta vez, a primeira no Rio de Janeiro, a comunidade do Campo Freudiano nas Américas nos dias 11 e 12 de junho de 2011. O ponto de partida é o lema “saúde para todos”. Ao psicanalista, que vive no um por um, o slogan parece perigoso. Como não endossar, porém, essa generalização em nossas terras, onde a saúde de todos é sempre a de pouquíssimos? No entanto, na escassez contemporânea de ideais compartilhados para definir o que entendemos por “boa forma” ou “bem-estar” a promoção da saúde tende a confundir-se com a exigência ambiente de satisfação – saúde máxima e satisfação máxima, por todos os meios disponíveis. Para conter o sem limites dessa exigência, o remédio tem sido amargo. Da porcentagem de posse de bola em uma partida de futebol à de suicídios em uma mesma rua, do número de sanitários por moradia ao de ingressos vendidos para uma estreia, a quantificação da vida passa a guiar nossas opiniões e escolhas com seu enxame de índices e a vender, como ideal, uma gestão economicista da existência. O “não sem” de nosso título convida a outro caminho. Esta expressão afasta a simples oposição entre seus termos. A loucura não será definida, como de hábito, como o contrário da saúde mental ou da razão, mas acrescenta-se a elas como condição imprescindível. E que loucura? Estritamente a “de cada um”, aquela que materializa, em variadas maluquices, nossa fração mais singular. Ela destoa do conjunto de lembranças e comportamentos que constitui nossa identidade, sempre com um pé no universal. Sustenta o bizarro de um gozo mil vezes desconsiderado por não caber no que se é. Por isso é tão difícil dar-lhe voz. A loucura de cada um só se apresenta como resto, que quase nunca entra na conta sem, no entanto, nos deixar jamais, pois, afinal, só se é “não sem” ele. Para abordá-lo, seguiremos as indicações de Jacques-Alain Miller na abertura do último PIPOL. Partiremos do papel, na invenção freudiana, “dos dejetos da vida psíquica, dejetos do mental, que são o sonho, o lapso, o ato-falho e mais além o sintoma”. Levá-los a sério é o caminho do trabalho analisante, sempre às voltas com o que de nosso gozo se mantém “insocializável” e que exatamente por isso constitui o fundamento de nossa presença no mundo. Concluindo o título, um subtítulo, “perspectivas da psicanálise”. Ele vem sugerir que possamos mergulhar as coordenadas acima nas inúmeras situações da cidade onde lidam aqueles que se orientam pelo ensino de Jacques Lacan. Talvez seja o momento de perguntar sobre o que atesta o inconsciente nestas situações. Nem sempre serão suas formações e sim o que ele nos ensina a céu aberto, como na psicose, ou descortina no campo dos dispositivos sociais. Poderemos sustentar, por exemplo, “Justiça, não sem a pena de cada um”? Ou ainda “Educação, não sem o fracasso de cada um”? De todo modo, assumiremos que, em cada caso, como afirma Miller, “não se trata somente de saúde, de cura, mas do que além do sintoma ou sob o sintoma é questão de verdade – de uma revelação de saber que carrega com ela a realização de uma satisfação e, se posso dizer, o desenvolvimento durável de uma satisfação superior”. Os seguintes eixos podem ser delineados a partir dessas e de outras considerações do texto em questão: 1. As surpresas de uma fala: as formações do inconsciente e seus efeitos com relação às identificações exigidas pelo mestre contemporâneo; 2. A loucura que estrutura: a função da paranóia e da debilidade na constituição do laço social, o sintoma como o singular que faz laço. 3. Artifícios de socialização: sublimação, invenção e a loucura de cada um. 4. Lei e gozo: a miragem do gozo do Outro, culpa e responsabilidade. 5. Sucessos e fracassos na educação: ou “quando o resto ensina”. 6. A quantificação da vida: a mística da avaliação e a eficácia da psicanálise. Por essas vias o V ENAPOL convocará os textos que possam examinar nas mais diversas situações e instituições os efeitos do inconsciente de cada um – habitado pelo tanto de vida que não cabe na vida que se leva e feito de surpresa e encontro. A organização do evento, tendo à frente Alicia Arenas pela NEL, Marina Recalde pela EOL e eu pela EBP, já está em pleno trabalho. Aguardaremos suas contribuições. São elas que poderão materializar, na impressionante escala desta comunidade que constituímos, a marca da psicanálise sem a qual estaremos definitivamente entregues à triste saúde dos gestores. Marcus André Vieira. Diretor do V ENAPOL
(perspectivas da psicanálise) [A experiência analítica] “introduz o laço social específico que se tece em torno do analista como dejeto, representante daquilo que, do gozo, resta insocializável” (J. A. Miller, “A salvação pelos dejetos”). O Encontro Americano de Psicanálise de Orientação Lacaniana reunirá, pela quinta vez, a primeira no Rio de Janeiro, a comunidade do Campo Freudiano nas Américas nos dias 11 e 12 de junho de 2011. O ponto de partida é o lema “saúde para todos”. Ao psicanalista, que vive no um por um, o slogan parece perigoso. Como não endossar, porém, essa generalização em nossas terras, onde a saúde de todos é sempre a de pouquíssimos? No entanto, na escassez contemporânea de ideais compartilhados para definir o que entendemos por “boa forma” ou “bem-estar” a promoção da saúde tende a confundir-se com a exigência ambiente de satisfação – saúde máxima e satisfação máxima, por todos os meios disponíveis. Para conter o sem limites dessa exigência, o remédio tem sido amargo. Da porcentagem de posse de bola em uma partida de futebol à de suicídios em uma mesma rua, do número de sanitários por moradia ao de ingressos vendidos para uma estreia, a quantificação da vida passa a guiar nossas opiniões e escolhas com seu enxame de índices e a vender, como ideal, uma gestão economicista da existência. O “não sem” de nosso título convida a outro caminho. Esta expressão afasta a simples oposição entre seus termos. A loucura não será definida, como de hábito, como o contrário da saúde mental ou da razão, mas acrescenta-se a elas como condição imprescindível. E que loucura? Estritamente a “de cada um”, aquela que materializa, em variadas maluquices, nossa fração mais singular. Ela destoa do conjunto de lembranças e comportamentos que constitui nossa identidade, sempre com um pé no universal. Sustenta o bizarro de um gozo mil vezes desconsiderado por não caber no que se é. Por isso é tão difícil dar-lhe voz. A loucura de cada um só se apresenta como resto, que quase nunca entra na conta sem, no entanto, nos deixar jamais, pois, afinal, só se é “não sem” ele. Para abordá-lo, seguiremos as indicações de Jacques-Alain Miller na abertura do último PIPOL. Partiremos do papel, na invenção freudiana, “dos dejetos da vida psíquica, dejetos do mental, que são o sonho, o lapso, o ato-falho e mais além o sintoma”. Levá-los a sério é o caminho do trabalho analisante, sempre às voltas com o que de nosso gozo se mantém “insocializável” e que exatamente por isso constitui o fundamento de nossa presença no mundo. Concluindo o título, um subtítulo, “perspectivas da psicanálise”. Ele vem sugerir que possamos mergulhar as coordenadas acima nas inúmeras situações da cidade onde lidam aqueles que se orientam pelo ensino de Jacques Lacan. Talvez seja o momento de perguntar sobre o que atesta o inconsciente nestas situações. Nem sempre serão suas formações e sim o que ele nos ensina a céu aberto, como na psicose, ou descortina no campo dos dispositivos sociais. Poderemos sustentar, por exemplo, “Justiça, não sem a pena de cada um”? Ou ainda “Educação, não sem o fracasso de cada um”? De todo modo, assumiremos que, em cada caso, como afirma Miller, “não se trata somente de saúde, de cura, mas do que além do sintoma ou sob o sintoma é questão de verdade – de uma revelação de saber que carrega com ela a realização de uma satisfação e, se posso dizer, o desenvolvimento durável de uma satisfação superior”. Os seguintes eixos podem ser delineados a partir dessas e de outras considerações do texto em questão: 1. As surpresas de uma fala: as formações do inconsciente e seus efeitos com relação às identificações exigidas pelo mestre contemporâneo; 2. A loucura que estrutura: a função da paranóia e da debilidade na constituição do laço social, o sintoma como o singular que faz laço. 3. Artifícios de socialização: sublimação, invenção e a loucura de cada um. 4. Lei e gozo: a miragem do gozo do Outro, culpa e responsabilidade. 5. Sucessos e fracassos na educação: ou “quando o resto ensina”. 6. A quantificação da vida: a mística da avaliação e a eficácia da psicanálise. Por essas vias o V ENAPOL convocará os textos que possam examinar nas mais diversas situações e instituições os efeitos do inconsciente de cada um – habitado pelo tanto de vida que não cabe na vida que se leva e feito de surpresa e encontro. A organização do evento, tendo à frente Alicia Arenas pela NEL, Marina Recalde pela EOL e eu pela EBP, já está em pleno trabalho. Aguardaremos suas contribuições. São elas que poderão materializar, na impressionante escala desta comunidade que constituímos, a marca da psicanálise sem a qual estaremos definitivamente entregues à triste saúde dos gestores. Marcus André Vieira. Diretor do V ENAPOL