Santiago
João Moreira Salles
Dia 17 de abril, às 20:00 hs, na Aliança Francesa de Natal
Diretor: João Moreira SallesRoteiro: João Moreira Salles
Gênero: DocumentárioProdução: Maurício Andrade RamosFotografia: Walter CarvalhoEdição: Eduardo Escorel e Lívia Serpa Comentário
A vida não tem final feliz. Tudo é transitório, sujeito ao desaparecimento, à destruição e à decadência. Paradoxalmente, é a transitoriedade, a escassez do tempo que faz com que a vida ganhe valor. É o tempo curto que nos causa o desejo e nos impele a fazer algo com essa realidade:
João Moreira Salles faz um filme sublime: Santiago cria um mundo à parte, enxertando um plus, um extra, para que a vida lhe pareça mais grandiosa.
É com certa melancolia, mas com um olhar afetuoso, que João Moreira Salles faz o seu filme. Logo no primeiro plano há uma alusão ao tempo que tudo devasta. Não é diferente da idéia contida no final. Vemos a entrada de uma casa desabitada, a do seu quarto, onde morou até os vinte anos e móveis cobertos para evitar a poeira.
Em outros momentos também vemos sinais do tempo espelhados em imagens, como uma piscina com crianças brincando, reminiscência de um passado distante. Hoje já não há crianças brincando. Os donos da casa estão ausentes, assim como o mordomo da família. Só restam a memória e as lembranças da casa da Gávea. Se a vida é uma decepção, frase final do filme, ainda resta a memória dos tempos de esplendor. E há trinta mil páginas deixadas por Santiago, além de nove horas de filme rodado, mas só então editados.
João Moreira Salles evoca sua memória através de Santiago, o extraordinário mordomo do seu pai. “Minha memória de Santiago se confunde com a casa da Gávea”, diz ele.
Santiago era extraordinário no sentido etimológico do termo: “raro, que foge do usual, fora de, além de, inacreditável, que é excessivo em quantidade e em intensidade, encarregado de tarefa especial.”(Houaiss)
Santiago faz as suas orações em latim, toca Beethoven de fraque em sinal de respeito, fala diversos idiomas e compara a vida aos movimentos musicais. “Andante Cantabile”, para o outono, “Lento ma non troppo”, (já octogenário) referindo-se ao avanço da sua catarata. A morte está presente na sua fala, nas suas referências e nas suas ocupações.
Era a morte o tema de fundo que compunha o mundo de Santiago: “memória, transitório, eternidade, contingente, inutilidade, despedida”. A frase de Bergman que ele adora citar é: “somos mortos insepultos apodrecendo debaixo de um céu cruel e vazio”. Assim era o envelhecimento, o apodrecimento do corpo até a morte: lento ma non troppo, descrito com tanta realidade para Bergman e contornado, embora presente o tempo todo, por Santiago.
“Mortos insepultos, sinfonia rota, marionetes grotescas, paisagem tétrica, tempo implacável” eram as expressões mais usadas por Santiago durante as filmagens.
Talvez por isso ele gostasse tanto de fazer arranjos florais quase perfeitos e tenha dedicado a sua vida a refazer as linhagens perdidas de personagens esquecidos, restabelecendo elos perdidos, tecendo uma história. Dinastias, reis e rainhas com quem convive como se fossem seus companheiros e contemporâneos.
Faz também arranjos meticulosos desses papéis copiados por ele, classificados por ordem alfabética e ordenados até que cada linhagem fosse inteiramente reconstituída. Só então ele mandava vir de Paris uma fita vermelha para lacrar o texto. Ocupa-se dos restos e lhes dá um desfecho esmerado, grandioso.
Como se não bastasse ele trata aqueles personagens arrancados das sepulturas como se lhes restituísse a vida. Conversa com eles, leva-os para tomar sol e ar. “Converso com eles todos… apesar de tantas línguas, de tantos idiomas distintos, eles me compreendem, eu os adoro, porque durante tantos anos eu escrevi, os escrevi dentro de mim e os escrevo ainda (…).
Ele conserva toda essa gente morta, embalsamada nos seus montes de papéis lacrados com fita vermelha, conserva-os vivos. Em algum momento do filme um vizinho pergunta: “O que estão fazendo? Um filme?” Santiago responde: “me embalsamando ou me empalhando.” Talvez comparasse o resgate da memória que ele fez durante anos com o registro da sua memória por João Moreira Salles, a quem ele chamava carinhosamente de Joãozinho.
Quando criança era levado pela tia a visitar cemitérios em Gênova. O que o encantava eram as lápides de mármore preto espelhado, nas quais ele podia arrumar a gravata. Nessa mesma linha de raciocínio encantava-se com os enterros, quando assistia a passagem dos carros fúnebres, não com os mortos, mas com a imagem de dois homens que dirigiam os cavalos com cartola, todos vestidos de preto. “Era imprrrressionante!!!! O trem fantasma”.
O cerimonial fúnebre pomposo, as lápides de mármore preto disfarçavam o horror da morte, assim como a perfeição dos arranjos florais, a dança, as castanholas, Fred Astaire, a música, os movimentos musicais comparados aos movimentos da vida lhe suavizavam a existência, distanciavam-lhe de um mundo real demais.
Entretanto ele também satirizava a morte em diversos momentos. Morre um cozinheiro francês de uma antiga casa onde ele trabalhou e ele diz que dali não ficou vivo nem o peru. A família, de origem aristocrática, hoje ‘não vale um pepino’, diz ele.
Santiago viveu a sua infância no campo até os oito anos com os avós, na Argentina; depois com uma tia, na Itália. Lá aprendeu latim, com a senhora pra quem a tia trabalhava.
Com o recurso da fantasia, da imaginação, dos devaneios e dos sonhos ele podia se transportar a qualquer época ou civilização. Então sonhava que era nobre e vivia durante a revolução francesa. João Moreira Salles observa com sutileza: “Deslocado e fora de lugar até nos sonhos, sua imaginação o levava a um mundo mais antigo e menos moderno, mais europeu e menos sul-americano. A um mundo que julgava melhor. Lutadores de boxe viravam gladiadores romanos; a casa de meu pai, um palácio em Florença.”
Visitando museus com obras de Cézanne, Monet, Modigliani, Van Gogh, ele fecha os olhos e vê quadros do renascimento italiano.
Ele sabe que a casa da Gávea não é um palácio em Florença, que o boxeador não é um gladiador romano. Também sabe que está contemplando um Cézanne e não um Giotto. Ele fecha os olhos e modifica a percepção, mas no plano da fantasia, para que tudo se adéqüe à época e ao décor que ele escolheu. É uma diferença sutil entre o delírio e a fantasia.
Se retomarmos o adjetivo que melhor define Santiago, extraordinário, no sentido de raro, fora de, que foge do usual, podemos ver que há mesmo nele uma certa inadequação, algo fora de lugar, de época e de inscrição no mundo.
Poder fazer uso da imaginação para escrever os seus ‘abortos mentais’, resgatar um número avassalador de personagens, durante 40 anos, escrever sobre eles, eleger alguns que julgava injustiçados historicamente, detestar outros que não julgava merecedores e se inserir entre eles, em diversas épocas e na civilização que bem queria. Ele os inscreve recorrendo à fantasia e se inscreve em algum lugar entre os nobres. “Eu os escrevi, escrevi dentro de mim”.
Santiago é, como nós, um entre os mortos insepultos. Entretanto ele se imbrica entre os mortos sepultados e os arranca das suas sepulturas. Leva para casa então, os mortos ressuscitados de origem aristocrática, como ele. A sua fantasia é uma invenção que o sustenta, que o livra da falta de sentido da vida.
O pós-escrito do filme é uma cena de “Viagem a Tóquio”, de Yasujiro Ozu, que influenciou João Moreira Salles na época em que estava às voltas com as filmagens. Uma jovem pergunta: “A vida não é uma decepção? Sua cunhada responde com um sorriso franco e generoso: “Sim, ela é.”
Ela é, mas nada impede que as pessoas criem ficções para dar um sentido normalizante à vida, como o trabalho, as crenças, os romances familiares. Outros têm saídas mais criativas como o amor, a arte, a fantasia. Alguns se desesperam, perdem a vontade de viver; outros aceitam a falta de sentido e aproveitam as pequenas coisas da vida.
Santiago encontrou uma solução absolutamente singular, solitária, mas, bastante glamourosa. A sua saída se deu através da fantasia, um modo de melhorar a realidade quando esta nos aparece desagradável. Talvez fosse o tempo a sua questão desagradável. “Allegro agitato ma non molto- quase finali. (…) toda mudança é o símbolo detestável da passagem do tempo. Minha atividade mental é contínua, apaixonada, inconstante e de todo insignificante.” É o tempo, a passagem do tempo, a transitoriedade a questão sobre a qual versa o filme; a memória e as reminiscências contrapondo-se à morte e ao esquecimento.
Santiago vive numa bela mansão, é o senhor dos bailes, o mordomo perfeito, querido e respeitado por todos. A vida na casa da Gávea é uma vida de glamour. Ele viaja, dança, tem a música e diz-se feliz, acha que a sua vida foi boa e bonita.
A qual propósito serve então a sua invenção singular? Dar um sentido maior à vida? Contornar a morte? Ressuscitar os esquecidos? Afinal, por mais singular que fosse ele sabia que também seria esquecido. Todos o são.
Natal, 13 de abril de 2009
Tereza Sampaio