Confrontados com esta pergunta, advogados e juristas se encontraram com psicanalistas no Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA) no dia 20 de outubro. A primeira evidência é que no direito existe a abertura para se buscar a resposta em outras áreas. E onde há abertura, existe a possibilidade de se conversar. E que teriam os psicanalistas para oferecer aos juristas? De um lado, alguém que busca uma resposta para impasses de seu saber, do outro, alguém que tem o desafio de colocar a sua prática à prova. Com estas premissas, como se deu o encontro?
Elza Macedo, psicanalista e diretora do IPLA, recebeu a todos e, na fala inicial, disse que os psicanalista aceitavam o desafio, deixando para os que falariam em seguida a responsabilidade de cumprir a demanda.
Na primeira mesa, Débora Pastana, jurista, fez uma crítica ao lugar divino que os juízes ocupam na sociedade. Por esta visão, só pode julgar aquele que esta fora do cotidiano do mundo ou do mundano. Os juízes não podem ter uma vida como os outros mortais, não podem ter problema conjugal, não podem ir ao bar nem falar palavrão. Lembrou da semelhança do lugar do juiz e sua toga preta, com os padres e outras autoridades religiosas. Fez um clamor para que o juiz, no mundo globalizado, desça do pedestal. E como ser juiz, como julgar alguém, se você vive as mesmas fraquezas e vícios que o cidadão comum? Como alguém que erra pode dizer que o outro é errado? Assim, pode qualquer um julgar? Nesse cenário nada confortável, o juiz que falou em seguida conseguiu surpreender com respostas fora do padrão. Jorge Luiz Souto Maior, juiz trabalhista, contou sua rotina de cidadão comum, das brigas nas partidas de futebol, da forma casual de se vestir. Falou de sua dúvida sobre o papel do juiz, de seu desconforto com o lugar sagrado que a sociedade dele espera. Chegou a conclusão que ocupa o lugar de juiz, e, se está neste lugar, a necessidade dele existe e que tem que responder a isto de alguma forma. A saída que deu, mesmo sem saber ao certo o que é um juiz, foi fingir que é um juiz. Tem que optar por uma decisão ou um julgamento e se responsabilizar por isto. Elisabeth Almeida, psicanalista que nesse momento estava na platéia, comentou, sem muito explicar, que esta postura era semelhante à proposta pela psicanálise.
Na mesa seguinte, procurei fazer uma diferença entre a busca da satisfação para o homem na época de Freud e hoje na globalização. No mundo industrializado freudiano, a sociedade era regida por normas ou leis fixas que diziam o que era proibido fazer. Neste cenário, a satisfação plena estava justamente naquilo que estava proibido. Era necessário ser um fora da lei ou um criminoso para se encontrar a satisfação. Como isto destruiria a sociedade, era melhor manter-se insatisfeito. No mundo globalizado, não temos mais os padrões fixos de comportamentos da época anterior; a moral e as normas são relativas. O homem perdeu o norte, encontrando-se “desbussolado”, como definiu Jorge Forbes. Muitos, neste novo cenário, temem uma violência desenfreada, clamam pelo resgate da lei, da autoridade. Lacan oferece outra saída, ao mostrar que o mal-estar humano é anterior às leis e que a satisfação completa é impossível. Não temos um homem insatisfeito, mas um homem incompleto. A solução é fazer como os loucos ou apaixonados e inventar uma satisfação. Não adianta burlar a lei para se ter a satisfação. Para encontrá-la, não é necessário um crime, mas uma paixão. Sérgio Salomão Shecaira, professor de direito da USP, na fala seguinte, defendeu que ninguém escapa da sua culpa e uma hora ou outra terá que se haver com ela. Fez uma denúncia da situação atual do direito que não consegue acompanhar a realidade do mundo em que vivemos. Falou que, frente a este dilema, os juízes e advogados procuram auxílio no saber psiquiátrico. Na conclusão, defendeu a necessidade de novas leis. Comentando a sua exposição, lhe disse que na psicanálise procuramos diferenciar responsabilidade de culpa e que nossa colega Dorothee iria trabalhar esta diferença na sua apresentação em seguida. Por fim, considerei que uma sociedade baseada em leis é uma sociedade que possibilita a existência de criminosos.
Dorothee Rüdiger, jurista, psicanalista e organizadora deste encontro, demonstrou, na mesma linha que Sérgio Shecaira, como a organização jurídica atual encontra-se em crise. Fez uma retrospectiva de conceitos psicanalíticos relatando que a psicanálise pensa leis e normas como representantes da função paterna. Tratou do fato que, na globalização, é justamente esta função que se encontra enfraquecida. Não temos um saber, ou um Outro, que nos garanta um decisão jurídica correta e verdadeira. Não é uma questão de melhorar a lei, de trocar uma por outra, mas uma crise da própria idéia de lei. No mundo em que vivemos, é necessário se responsabilizar pelo fato de não termos respostas para tudo. Não há culpa porque não existe quem possa desculpar. Uma decisão é sempre uma aposta, um risco.
Na última mesa do dia, tivemos uma conversa sobre o famoso seqüestro de Natascha Kampusch. João Paulo Martinelli, jurista, começou sua fala fazendo uma recapitulação do caso, dos impasses que este trouxe para o direito. Natascha contou, em seus depoimentos, que já tinha visto o seqüestrador perto de sua escola e desconfiado de sua postura. Mesmo assim, um dia se arriscou aproximar dele. Como julgar o seqüestrador, tendo em vista a conivência da seqüestrada com o crime? Como dizer se ela era responsável ou não pelos seus atos? A responsabilidade seria uma questão de idade? João Paulo diz não poder responder a estas perguntas com o saber jurídico atual. Acha encontros como este importantes porque neles teria a oportunidade de encontrar respostas na psicologia. Dando seqüência à mesa, Elisabeth Almeida, psicanalista, fez uma bela e provocante apresentação, utilizando-se de filmes, fotos, letras e músicas. Mais do que trazer respostas definidas, nos fez perceber a fragilidade das saídas que buscam a garantia em um saber. Apresentou trechos do artigo de Forbes sobre o caso Natascha publicado no Estadão. Para Forbes, o grande interesse sobre este crime se deve ao fato dele ser um estranho caso de amor. Lembra que as pessoas também vivem seus cativeiros cotidianos como o emprego chato e injusto. Pergunta sobre quem aprisionava quem. O seqüestrador dono dos movimentos de Natascha ou ela dona da reputação dele? Conclui dizendo que o saber é incompleto e caberá a cada um se responsabilizar por completá-lo com a sua subjetividade. Elisabeth encerra o dia dizendo que, tendo em vista a crise do direito, as soluções talvez não venham da psiquiatria ou da psicologia, uma vez que estas também se encontram atravessadas pela crise do saber. Se existe uma contribuição que os psicanalistas possam oferecer para gentileza do juristas em lhes procurar, é mostrar a possibilidade de, na globalização, mantermos a convivência humana, o laço social, não através do sentido comum ou das leis. Mas através daquilo escapa à norma, que é a singularidade, a exceção.
Márlio Vilela Nunes
São Paulo, 25/10/2007