IX Conversação da Escola Lacaniana de Psicanálise
Sobre o inessencial do sujeito suposto saber
Pierre-Gilles Guéguen
Palavras-chave: psicanálise aplicada, passe, Escola, saber, transferência e real.
A Conversação sobre o passe é bem-vinda. Bem-vinda porque a atualidade
nos tem obrigado a nos preocuparmos, e com razão, pela psicanálise
aplicada. Com efeito, se não temos cuidado, a psicanálise pode desaparecer.
Se a psicanálise aplicada é esta parte da psicanálise que trata o sintoma e seu
destino, corre sempre o perigo de confundir-se com a psicoterapia e sua falta de
interesse pelos princípios. Este é o erro fatal que a IPA cometeu quando
dissociou a psicanálise pura e a psicanálise aplicada sobre questões de
standard e não de princípios.
Necessitamos voltar sempre à psicanálise pura, quer dizer, à doutrina
psicanalítica e, especialmente, à doutrina do final da cura, para que a
psicanálise aplicada não se perca na psicoterapia ou na sugestão.
Nós não apostamos nos standards; pelo contrário, os rechaçamos. Apostamos
nos princípios e os afinamos.
Todo ato de psicanálise aplicada (digo assim porque convém distinguir entre as
curas psicanalíticas, os ciclos, os tratamentos e os atos pontuais) deveria
derivar-se da psicanálise verdadeira, estar feita com sua mesma pasta. Cabe às
Escolas velar por isso e assegurar as condições da prática. Não pode haver
clínica, por mais cotidiana que seja, que não esteja marcada e sustentada pelos
últimos avanços da doutrina analítica.
O curso recente de Jacques-Alain Miller nos mostra a via, uma vez mais.
Paradoxalmente, ele retorna às raízes dos grandes conceitos com o último
Lacan, mostra um Lacan que parece sacudir os fundamentos mesmos da
psicanálise, livrá-lo de uma sacudida sísmica que os interroga e, por isso, lhe
apressa a responder com a perspectiva do passe, de sua natureza, sua
vivacidade e também, ainda uma vez mais, de sua “desidealização”. Sem
dúvida alguma, este ensino ressoa para todos nós, nos ensina que não se trata,
em absoluto, de “Um esforço a mais para os passantes, os analistas e os cartéis
do passe!” Mas, nos lembra também que não há refúgio possível na posição do
cínico “não incauto”, tampouco na do relativista, para quem tudo é igualmente
possível. Farei um breve comentário sobre três pontos que me interrogam
especialmente.
Sobre o inconsciente real
Ao isolar este dito de Lacan na “Introdução à edição inglesa do Seminário XI”, J.-
A. Miller sublinha que só se encontra uma vez em Lacan. No entanto, esta
definição está de acordo com a que se encontra ao longo do mencionado
Seminário e indica ex post como lê-la: inconsciente pontual evanescente,
inconsciente de abertura e não de sentido. François Regnault, em um curso
sobre Descartes realizado no Departamento de Psicanálise, recordava que o
inconsciente não é feito de pensamentos e utilizava, para fazê-lo entender, o
apólogo lacaniano de alguém que tem a chave na mão para entrar em sua casa e
se equivoca de porta. O inconsciente só poderia situar-se no momento preciso
em que, de repente, se dá conta de seu erro. “Mas, onde tenho a cabeça?”. Não
mais. O aturdido encontrará seguidamente sentido para explicar ao Outro sua
mensagem, mas o inconsciente já se haverá fechado. Esta metáfora do
inconsciente concorda com a consideração do “fora de sentido” em psicanálise,
examinada por JAM (aulas de 10 e 17 de janeiro de 2001). Converge também
com a tese do Inconsciente-intérprete, se temos em conta que, no “esp d’un laps”,
se o analista não lhe acrescenta sentido, o sentido do pensamento do analisante
já se bifurcou, difratou. O real despistou, l’appansé, o pensamento, para retomar
uma escritura tardia de Lacan.
Sessão por sessão, a alienação do analisante aos significantes do Outro é
eventualmente modificada, liberada. Seu vínculo de gozo com la apparole, a
apalavra, do aparato linguageiro se encontra possivelmente modificada. À luz
desta reflexão, a queixa formulada, faz um tempo, de que, no passe, os
passantes não faziam referência às interpretações de seu analista, deve ser
examinada de outro modo. Se requer a presença do analista porque “forma
parte do conceito de inconsciente”. Mas só se conhecerá do ato do analista, a
interpretação que o próprio sujeito se faz. Então, o primeiro estaria dispensado
de intervir? Deveria mumificar sua posição? (discussão de JAM em Os usos do
lapso), se poderia prescindir do conceito de inconsciente? Concluir
apressadamente pode ser fatal para a análise. Se pensarmos que o sintoma é a
conexão desta abertura do inconsciente, com a pulsão se ancora no inconsciente,
por seu núcleo real. É necessário o analista como partenaire. O sintoma não vem
dado de entrada; para nós, não constitui um fenômeno natural porque o
dispositivo analítico o produz e a interpretação primordial lhe dá forma. Esta
não apontará ao real do mesmo modo, na psicose e na neurose.
No entanto, destas rupturas, destas repetições, destes encontros, desta “edição”
do texto analisante que a abertura do inconsciente provoca, nasce um Saber.
Lacan qualifica este saber como inessencial. Ele o assinala na “Proposição de 9 de
outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” (Autres écrits, p. 254. A tradução
espanhola está no volume Momentos cruciais da experiência analítica, p. 18):
“Nesse desser se revela o inessencial do sujeito suposto ao saber”). E no
Seminário XI, p. 116 (na tradução espanhola, p. 133): « Paradoxalmente, a
diferença [a respeito do saber da ciência] que assegura o campo de Freud, sua
mais segura subsistência, é a de ser um campo que, por sua própria índole, se
perde. Neste ponto, a presença do psicanalista é irredutível, por ser testemunho
de dita perda ». Toca-nos avaliar com cuidado, como ler isto. É o tipo de
formulações que JAM nos incita a levar a sério de novo, mas cuidando de não
estropiar seu alcance, de não apressar-nos a compreender. Não é necessário,
desde o ponto de vista do analisando, que este saber se saiba para que a
operação sobre o gozo se obtenha de maneira analítica. Os efeitos chamados
« terapêuticos » são, a maior parte das vezes, desta ordem. E Lacan recordava aos
americanos: não é necessário empuxar as análises demasiado longe para obter
uma satisfação. Do lado do analisante, o saber sobre/da operação analítica só
serve verdadeiramente àqueles que a transferência põe na via de tornar-se
analista e, nestes casos, é primordial, porque se não é referido, a operação
mesma do passe – na medida em que permite avaliar um final de análise – não
terá lugar, poderá produzir-se na análise, mas ninguém saberá nada disso e o
saber doutrinal não se alimentará com isso.
O passe transferencial e o passe real
Agora, é um saber que está vinculado à transferência. Isto é, talvez o mais
complexo que se encontra no Seminário XI e Miller – ao menos é o que entendi –
assinalou em seu texto de apresentação das próximas Jornadas da ECF: Lacan
não situa, finalmente, o saber do lado do inconsciente como se costumava fazer,
mas do lado da transferência. É mais exato dizer que o que chamamos “saber
inconsciente” é a conseqüência na transferência do fato de que há inconsciente.
Não se pode considerar que o essencial do judo de Lacan com a Verdade vá
nesse sentido: o sujeito suposto saber está ligado à transferência. Nesta
perspectiva, o passe é um esforço para fazer passar o saber transferencial obtido
graças aos instantes de abertura do inconsciente, para o lado da Escola. A este
respeito, o texto do passante é sempre único e sempre novo, a questão é saber
cada vez se ressoa ou não para o cartel, se interpreta o jurado ou não. Este saber
concerne à relação entre S/, a e o S1 que os conecta, mas J.-A. Miller nos indicava
recentemente que este S1 é, de fato, um Significante qualquer, no sentido de que
não se refere forçosamente ao pai. É uma leitura inédita do célebre algoritmo da
transferência, cujo alcance teremos que avaliar. No entanto, um passe não se
universaliza. Por este fato, a distinção que ele propõe entre o passe
transferencial (vinculado ao saber) e o passe real (vinculado ao corpo e à
pulsão) se opõem como o saber e seu resíduo (caput mortuum), como o que
Lacan chamava em determinado momento, o saber inconsciente e a extração do
objeto a. O passe transferencial permitiria cernir o objeto prevalente da pulsão e,
sem dúvida, nomear o Sintoma; o passe real, extraí-lo do Um-corpo. Um-corpo,
para utilizar outra formulação recente proposta por JAM. Seria melhor obtida
mediante o isolamento de pedaços de real, de buracos – no saber e no corpo –
que respondem à nomeação do sinthome.
A hystorização
Só se pode apresentar a própria análise, como um relato, como uma história,
melhor como um Witz. Não há nenhuma dúvida de que este relato, inclusive se
não é cronológico, inclusive se difere segundo o passador ao que se fala, é o
relato de um percurso. É ainda mais verdadeiro o relato escrito que chamamos
de “testemunho” dos AE. Este relato hystoriciza a experiência singular de cada
análise, no sentido de que faz disso uma história com seus nós, seus
desenodamentos, seu ritmo. A esta construção, subjaz uma lógica que não
poderia reduzir-se à exposição seca de três matemas. Tem a estrutura da
histeria, como assinala JAM, histericiza o público que escuta, no sentido de que
suscita identificação e desejo e também apela à verdade.
Havia estudado este tipo de questões quando da Jornada dos AE de 2000, a
propósito do íntimo e do êxtimo no passe. Assinalei, então, que a ilusão de
dizer tudo no relato do testemunho, se se produzia, não podia ser mais que
uma forma pela qual a verdade alcançaria o gozo da totalização. Lacan colocou
primeiro que no passe, nem tudo poderia ser dito, “o não sabido se ordena
como o marco do saber”, segundo sua paradoxal e célebre fórmula; isto não
desvaloriza este saber, mas lembra que não se pode dizer tudo: naquele
trabalho nomeei o que não se pode dizer o êxtimo do relato de passe.
Como alguns AE, tive que retomar um período de análise sob o efeito de um
acontecimento traumático. Creio haver passado nesse momento pelo que JAM
chama de passe real, que sistematiza a disjunção entre o saber transferencial
que se pode dizer e os efeitos sobre o corpo que escapam ao dizer direto – o que
não quer dizer que não se façam ouvir. Enquanto o passe me havia insuflado o
desejo de transmitir, deste complemento de percurso que me reconduziu por
outras vias e talvez mediante um percurso que qualificaria como o avesso do
primeiro, aos mesmos significantes amo, ao mesmo fantasma e a um novo
ponto de basta do mesmo sintoma, não tive vontade de falar. É.
Um paradigma lacaniano
Como articular de outra maneira a não ser mediante a cronologia freudiana da
distinção das tramas, este reenodamento da análise? Recentemente me dei conta
de que Lacan, no Seminário XI, onde constrói o objeto a, faz referência, em
muitas ocasiões, à ciência física mais moderna e, especialmente, à ciência física
nascida no século XX, com o princípio de incerteza de Heisenberg. No conjunto
de trabalhos que passam por Planck, Einstein (Seminário XI, p. 116; na tradução
espanhola, p. 133), etc., o objeto da experimentação científica não se pode
observar objetivamente; o experimentador toma parte dele, como o psicanalista
toma parte do inconsciente ou a transferência. Por outro lado, a experiência só
pode se reproduzir de maneira probabilística. O aparato que a experimentação
introduz faz variar o que se observa. Como é bem conhecido, não se pode
observar, por sua vez, a posição de um elétron e sua velocidade: uma necessita
de um equipamento que permita isolar corpúsculos; a outra, o recurso a uma
teoria das ondas. Parece-me que é o tipo de paradigma que introduz a distinção
entre passe transferencial e passe real. Nada indica que ambos não possam ser
concomitantes, no entanto nada obriga a isso. A cronologia ficaria aqui
substituída por uma probabilidade de que o passe real e o passe transferencial
coincidam. Mas, caso contrário, um não invalida o outro. Conviria desenvolver
este ponto.
Tradução: Maria Cristina Maia