Atração perigosa, política e religião – Daniela Affonso (EBP)
TEXTO EM PORTUGUÊS
Sempre imaginei a cena seguinte como um momento solene. Freud, convidado a ir aos Estados Unidos pelo psicólogo norte-americano Stanley Hall, para falar na Universidade Clark, em Worcester, Massachussets, em 1909, orgulhoso da expansão de suas ideias, diz aos discípulos Carl Jung e Sandor Ferenczi, que o acompanhavam na viagem de navio e com os quais conversava sobre a importância dessas conferências para o futuro da psicanálise: “eles não sabem que nós estamos levando a peste”. Ao idealizar esse momento, eu estava, é claro, tomada pelos ideais freudianos com respeito à psicanálise, a qual traria uma resposta aos imperativos da cultura e à sua sacralização, provinda da religião.
Sabemos que a peste não veio. A psicanálise não se mostrou uma espécie de “outra ordem social”, tampouco os preceitos religiosos foram abandonados e massacrados pela razão da ciência, como Freud explicitamente profetizou em O futuro de uma ilusão[1]. Qual lugar cabe hoje, então, à psicanálise? Somos testemunhas de que persiste, mas que usos se faz dela? Desde Freud, por quais veredas seguiu, que traços tem deixado na cultura? Ainda podemos farejar algo de sua “virulência”?
No texto inaugural desta coluna no Blog da AMP trago para o debate recentes acontecimentos que, se não exclusivos do Brasil, nele assumem aspectos muito particulares. Trata-se da eleição, para a presidência da República, de um candidato com forte viés religioso, apoiado por sem-número de igrejas evangélicas, que se apresenta como o “salvador da pátria, da família, da religião, da moral e da propriedade”, afirmando que Deus quis que assim fosse. Assistimos, num misto de estupefação e incredulidade, a acontecimentos no mínimo bizarros, como a nomeação de uma pastora evangélica para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que atesta ter visto Jesus numa goiabeira, num momento em que pensava em se suicidar, e brada estarmos salvos porque agora meninos voltarão a usar azul e meninas, rosa. Mas o enredo chega ao paroxismo quando o presidente, em evento religioso, diz que o Supremo Tribunal Federal estaria legislando ao equiparar a homofobia ao crime de racismo, e pergunta: “será que não está na hora de termos um ministro evangélico no STF?”.
Tudo isso ainda se mostra profundamente opaco se tentamos lhe dar sentido, mas é certo que permanece o gosto amargo do retorno do recalcado. A religião passa a ocupar, agora de maneira explícita, lugar de preponderância num Estado considerado laico – muito embora nos deparemos com a palavra Deus no preâmbulo da Constituição de 1988.
O que a psicanálise tem a ver com isso? Muito. Em tal contexto, a chamada “bancada evangélica” expande-se no Congresso Nacional, e com ela a possibilidade de êxito de projetos cujo objetivo é a regulamentação da psicanálise – o que por si só seria um contrassenso, mas ganha proporções ainda mais inusitadas na medida em que se trataria de regulamentação com viés religioso. Será a psicanálise do porvir uma nova religião?
Miller[2]considera que, no ponto em que chegamos na civilização, tudo leva à homogeneização entre religião e psicanálise, a ambas serem confundidas, mais do que contrapostas, ao avesso do que preconizava Freud. Estaríamos diante do retorno do religioso mais do que das religiões, ou seja, da religião alijada do suporte institucional vigoroso, mas fortemente embasada em legiões de novas denominações religiosas (matéria publicada em O Globo, em 23/6/2017, estima que entre 2010 e 2017 uma nova organização religiosa surgiu, por hora, no Brasil).
Ao prescindir da instituição, valoriza-se a experiência religiosa. O conceito de experiência da atualidade seria o conceito de humanismo contemporâneo. Diz Miller: “o ponto em que hoje nos encontramos é que, através do conceito de experiência, nada impede comparar, aproximar a experiência analítica e a experiência religiosa. Este conceito de experiência é um operador de nivelação extraordinário”[3].
A experiência religiosa já fora abordada por Freud, em 1907, no artigo “Atos obsessivos e as práticas religiosas”[4], em que propõe uma analogia entre o cerimonial do obsessivo e o cerimonial religioso. A tese implícita no texto – a religião seria uma neurose obsessiva – supõe uma psicanálise da religião. Freud psicanalisa a religião ao considerar que se baseia na renúncia pulsional. Poderíamos, contudo, supor tudo isso ao avesso, no sentido de que a nova relação com o gozo trazida pela religião é que daria lugar à neurose.
Freud imaginava que ao desvelar, por meio da psicanálise, os fundamentos da religião, acabaria por reduzi-la a uma ilusão. A ilusão, asseverava, não é necessariamente um erro, mas algo que não tem confirmação na realidade. Nessa medida a religião seria uma ilusão, pois promete defender o homem do inexorável da natureza e do mal-estar gerado pelas renúncias impostas pela civilização, mas não cumpre a promessa.
Lacan posicionou-se de forma diferente: não acreditava que a psicanálise, e tampouco a ciência, pudessem aniquilar a religião. É assim que em O triunfo da religiãovaticina: “[…] se a psicanálise não triunfar sobre a religião, é porque a religião é inquebrantável. A psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não”. E ainda: “[A religião] não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião”[5].
A religião se ocupa em dar sentido ao real, muitas vezes, inclusive, reinventando-o, transformando-o, subvertendo-o: “Ora, a religião, sobretudo a verdadeira, tem recursos de que sequer se suspeita. Por ora, basta ver como ela fervilha. É absolutamente fabuloso. […] E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais. […] e a religião vai dar um sentido às coisas mais curiosas, aquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar para isso sentidos truculentos”[6].
Voltando à psicanálise: o que falta para que se torne mais uma religião? Muito se vocifera quanto à tendência sectarista dos psicanalistas. Miller adverte que falta apenas um passo para que ela se torne uma igreja. Há um ato de fé no princípio do ato analítico, o qual Lacan procurou laicizar com o conceito de sujeito suposto saber. “Mas no ponto em que se encontram as coisas, nada impede que o sujeito suposto saber não seja, por sua vez, religiosizado”[7].
A dissolução da religião pelo avanço da ciência, desejo de Freud, certamente está longe de se tornar realidade. A ideia de ciência de O futuro de uma ilusãoé de força aclaradora, de elucidação, pacificadora das perturbações geradas pela civilização. Contudo, em O mal-estar na civilização[8],profetizou que nosso tempo traria avanços, possibilitando ao homem tornar-se um “deus protético”, mas não o tornando necessariamente mais feliz. Em Moral sexual “civilizada” e doença nervosa moderna[9], afirmou que a cultura produz um resto não apreendido pela ação humana. A concepção alinha-se com a de Lacan, para quem a ciência, em sua dimensão técnica, de incessante busca investigativa, seria produtora de angústia.
Não à toa os governantes evangélicos do momento, no Brasil, atacam ferozmente a ciência, cortando investimentos, desprezando ou até censurando pesquisas, como aconteceu recentemente com pesquisa financiada pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), realizada pela Fiocruz, que constatou não haver uma epidemia do uso de drogas no Brasil. É assim que a religião se coloca como “guardiã incondicional da vida” e faz parecer que a ciência está a serviço da pulsão de morte. O real da natureza, do qual a ciência se propõe extrair as leis, perturba ainda mais nesse processo investigativo. A religião, ao colocar barreiras aos avanços científicos, faz submergir o real mediante a produção incessante de sentido.
À psicanálise cabe não fazê-lo, sob pena, aí sim, de se tornar mais uma religião. Ao contrário, a psicanálise trata de acolher esse real – já não mais o real da natureza, certamente, mas aquele oriundo do discurso da ciência. Acolhê-lo diz respeito a abrir-se ao novo e cuidar para não recair no engano nostálgico de reintegrar antigos preceitos, restabelecendo leis anteriores à “modernidade líquida” – incumbência assumida com afinco pela religião.
Muitos continuam confiando seus sintomas à psicanálise e, nesse sentido, ela sobrevive. Aos psicanalistas é necessário manterem-se advertidos de que as irrupções do real não podem ser reabsorvidas por nenhuma construção discursiva, único meio de preservar o veio “subversivo” da psicanálise e permanecer numa posição êxtimaem relação à cultura. Sua única promessa é “você não será comparado”[10], numa espécie de ética do singular. Mas, atenção! Não confundir com a prática, atualmente muito difundida, da “customização”, aquela que “personaliza” de acordo com o “gosto do cliente”, esta sim inteiramente absorvida pelo universo neoliberal da autorreferência, da autossuperação e da autorrealização. Mas isso é assunto para uma próxima ocasião.
[1]Freud, S. “O futuro de uma ilusão”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
[2]Miller, J.-A. Punto cenit: política, religión y el psicoanálisis. Buenos Aires: Colección Diva, 2012.