Em meio às modificações na paisagem urbana, cada vez mais frequentes, a mudança climática tem expresso relevante destaque[1]. Os efeitos de rápidos avanços tecnológicos conciliados com um processo irracional que ilimitadamente visa o acúmulo de capital, contribuem para a evolução de um cenário caótico. Uma versão contemporânea das consequências que “A máquina do mundo”, tão bem descrita por Carlos Drummond de Andrade, na década de 50.
“ … os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,…”
Dentre os variados acontecimentos que favorecem uma reflexão a partir da poesia, estão as ondas de incêndio, a exploração agropecuária e de mineradoras, que favorecem índices assustadores de desmatamento na floresta Amazônica e numa rapidez sem precedentes. Um fato com repercussões mundiais, quando leva-se em conta que a Amazônia é responsável por “até um quarto de tudo o que florestas absorvem de carbono a cada ano”[2] e que hoje ela dá sinais da emissão de um alto índice de CO2 decorrente das queimadas.
Para tornar ainda mais preocupante a situação, “os atuais modelos climáticos sugerem que as árvores têm capacidade de remover grande parte das emissões de gases de efeito estufa causadas pelo homem, da atmosfera. No entanto, uma nova pesquisa indica que a capacidade de absorção da floresta é limitada pelo conteúdo de fósforo no solo.”[3]
E o que cabe aos analistas, senão fazer uso da palavra, este instrumento cada vez mais utilizado para veicular ações desmedidas de autoritarismo e luta pelo poder?
Então, se a poesia de Drummond referencia um movimento de exploração, submissão e repetição, não há como desconsiderar a hipótese de que hoje “A máquina do mundo” é regida por uma urgência que aumenta a expressão da revolta, tornando seu funcionamento ainda mais nocivo.
Mas por que vias focar a urgência? E por que viés ela poderá se articular à revolta?
Para abordar uma primeira vertente, torna-se pertinente resgatar o momento que a civilização da agricultura, que tinha seus norteadores nas estações e nos céus, cedeu a dominância para a civilização da indústria.[4] Eis a elevação dos gadgets, considerados como bússolas promovedoras de satisfação, comandando o discurso da civilização. Por esta lógica, “o sujeito trabalha, as identificações caem substituídas pela avaliação homogênea das capacidades, enquanto o saber se ativa em mentir assim como em progredir, sem dúvida.”[5] Tais elementos, conduzem a outra hipótese: o movimento está em adquirir objetos da cultura que produzam satisfação. Assim, a urgência para obter o capital e o poder, a qualquer preço, vem como promessa para tamponar a falha, que não fica mais recalcada pelos significantes mestres. O que está em jogo é a predominância de um imperativo de gozo, impulsionado pelo mestre moderno.
Mas este posicionamento que pressupõe atingir a felicidade, vem acompanhado do sacrifício. E é neste ponto que é possível pensar a articulação com revolta. “Se a revolta visa ao Outro, o privador, a trajetória de sua flecha atinge e perfura o próprio sujeito, uma vez que se trata de sua vida, da qual ele faz o desafio, que se sacrifica e que se arranca do que constitui a raiz da existência. Nisto, a revolta é uma estrutura em espelho: só atinjo o outro sacrificando a mim mesmo.”[6] Assim, nessa empreitada que se pauta no sacrifício, não se tem o retorno visado. A felicidade não chega conforme o esperado e a revolta pode ser inevitável. Só que ela retorna ao sujeito, porque algo de sua subjetividade é tocada, apesar de nem sempre ser escutada.
Em meio a este movimento regido pelo capitalismo, foi possível resgatar o título de uma exposição da artista Juliana Stein[7]: “Não está claro até que a noite caia”. Seria esta a via para que outra urgência se inscreva? E até onde os efeitos da “noite” precisam chegar para que a urgência subjetiva favoreça o rumo a uma análise?
Lacan, em 1966, ressaltou que enquanto houver um traço do que tem sido instaurado pela psicanálise, “haverá um psicanalista para responder a certas urgências subjetivas, se qualificá-las como artigo definido seria dizer demais, ou até mesmo desejar demais.”[8]
Por este direcionamento, que envolve a urgência subjetiva e a presença de um analista, é viável registrar outra possibilidade de conceber a revolta. Uma vertente que requer um percurso e pressupõe ter “isolado o seu impossível de suportar como sujeito e tendo tomado alguma distância desse intolerável. Para revoltar-se da boa maneira, convém ser avisado da reversão da revolta e de sua relatividade.”[9]
O início do percurso depende de cada um, bem como sua sustentação.
Obra de Juliana Stein, da exposição “ Não está claro até que a noite caia ”
[1] Referência ao dia 19 de agosto, quando na cidade de São Paulo o dia virou noite, por conta da fumaça vinda de queimadas na região da Amazônia.
[2] INPE. In: http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5186
[3] INPE. In: http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_Noticia=5186 São Paulo, 07/08/19.
[4] MILLER, J.-A. Uma fantasia In: Opção Lacaniana N. 42 Revista Brasileira Internacional de Psicanálise São Paulo: EBP, 2005.
[5] MILLER, J.-A. Uma fantasia In: Opção Lacaniana N. 42 Revista Brasileira Internacional de Psicanálise São Paulo: EBP, 2005.
[6] MILLER, J.-A. Como se revoltar? In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise N. 80/81. São Paulo: Eolia, p. 15.
[7] Juliana Stein, artista visual brasileira, trouxe este título pra a exposição que fez no Museu Oscar Niemeyer, em 2018.
[8] LACAN, J. Do sujeito enfim em questão. In: Escritos Rio de Janeiro: J.Z.E., p.237.
[9] MILLER, J.-A. Como se revoltar? In: Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise N. 80/81. São Paulo: Eolia, p. 16.