Tradução: Vera Avellar Ribeiro
Os congressos da AMP são momentos decisivos para realizar uma comunidade de trabalho entre Escolas, entre psicanalistas de línguas e de horizontes diversos, em uma palavra, para fazer existir a Escola Una. Esta Escola Una, em seus encontros bianuais, tenta responder à pergunta: « O que há de novo na psicanálise? », referente a um certo número de pontos precisos na prática de seus membros [1]. Este « O que há de novo na psicanálise? » é, a um só tempoe a cada vez, uma maneira de realizar um Retorno a Freud e de afirmar nossa heresia em relação a Freud.
A heresia lacaniana incitou uma renovação radical da prática freudiana e esse elã deve ser sempre aprofundado. Cada congresso, de certa forma, é herético. O último congresso « As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência » teve um tema que se afastava explicitamente das proibições introduzidas por Freud sobre o manejo da transferência nas psicoses como, por exemplo, em « Esboço dePsicanálise ». Melanie Klein e seus alunos foram os primeiros que ousaram ir além do interdito e mostraram que era possível fundar uma prática psicanalítica com psicóticos. Lacan construiu, sobre outras bases, um « retorno a Freud » que também permitiu desenvolver um tratamento possível das psicoses. Em nosso último congresso, exploramos como essa abordagem incluía as psicoses ordinárias, uma nova categoria.
Nosso próximo congresso abordará um ponto tão crucial quanto o da transferência. Vamos nos perguntar : o que há de novo na interpretação do sonho? No excelente texto apresentado por Fabian Naparstek e Silvia Baudinia questão crucial é colocada de saída, desde a epígrafe. Lacan propõe uma abordagem anti-freudiana do sonho: « Mesmo assim tenho o direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. Contrariamente aos de Freud, eles não sãoinspirados pelo desejo de dormir.É sobretudo o desejo de acordar que me agita [2]».
Foi a partir do Seminário, livro 20 : mais, ainda, em 13 de fevereiro de 1973, que Lacan generalizou a ideia de que o sonho deve ser abordado como um instrumento de despertar[3]. Isso supõe tocar no que Freud chamou de Princípio de prazer, comolimite e temperança do gozo. É a isso que o Seminário: mais, ainda se dedica, de múltiplas formas. Dizer que o sonho é um instrumento de despertar supõe também tocar no que chamamos de despertar. Freud partiu da oposição entre sono e despertar como uma oposição natural, quase biológica. Dormimos, nos despertamos. Sua prática o levou a considerar os fenômenos do despertar no sonho. Foi a partir daí que Lacan subverteu a evidência do limite entre a vigília e o sono a fim de nos despertar, nós seus leitores, para outra coisa. Ele assim produziu uma série de enunciados, por vezes contraditórios, tais como: « o inconsciente é muito precisamente a hipótese de que não se sonha somente quando se dorme »[4] ; « eles acordam, quer dizer, continuam a sonhar »[5] ; « entro, como todo mundo, neste sonho que se chama realidade »[6] ; « nunca nos despertamos»[7], « o despertar absoluto é a morte »[8]. Esses enunciados definem bem um avesso da abordagem freudiana do sonho, que se inscreve no horizonte de « o Outro Lacan », que Jacques-Alain Miller havia regatado desde o final dos anos 1970 [9].
Cada uma dessas citações mereceria ser comentada por si mesma, uma por uma, cada uma delas em seu contexto. Se as enunciamos ao mesmo tempo, em uma mesma cadeia significante, precisaremos de uma certa flexibilidade dialética para poder ligá-las e fazê-las ressoar da boa maneira. « O desejo de despertar é um desejo particular » ; « despertamo-nos para continuar a sonhar » ; « nunca nos despertamos » ; « o despertar absoluto é a morte », a aproximação é delicada, mas o conjunto define uma nova perspectiva. Essa novaabordagem do despertar é consoante com a iluminação budista. Se dizemos que Buda é « o iluminado », ele que, em geral, é representado dormindo, é pelo fato de ele ser totalmente liberado do desejo. Ele sabe que o desejo não é senão semblante[10].
O despertar, para o qual Lacan nos convida, faz do sonho um instrumento do despertar. Isso quer dizer que ele permite articular, de uma nova maneira, o desejo e o que lhe é incompatível, o gozo. O sonho torna-se uma nova introdução à oposição desejo-gozo. Nesse sentido, o gozo não é a realização do desejo. Ele é o que não pode ser articulado nos caminhos do desejo.
Assim, é despertar tudo o que é ultrapassagem, alteração, dano à homeostase do princípio do prazer que garante a vida. Nesse sentido, a perturbação absoluta da vida é a morte. O desarranjo absoluto da vida, nesse sentido, é a morte. O despertar absoluto é a morte. Enquanto isso, os pequenos despertares, parciais, despertam para o fato de que eles são ultrapassagens da homeostase. O princípio do prazer é também o princípio do sentido.
Os despertares parciais se produzem quando a barreira do sentido é transposta. Pode-se conceber o despertar final como uma mostração do gozo em uma espécie de curto-circuito fora do sentido? Devemos primeiro passar pelo caminho da lógica lacaniana do manejo do sentido. É preciso, primeiro, servir-se dele para, finalmente, prescindir dele.Primeiro, será preciso decifrar os sonhos, será necessário atravessar as orgias de interpretação de sentido, acompanhar o analisando, autorizá-lo a transbordar todas as associações possíveis sobre um sonho para, por fim, chegar, num segundo tempo – uma vez que nos servimos e que nos servimos bem delas – a um pontofora do sentido.
Chega-se, assim, ao final de uma análise -tal como Marie-Hélène Brousse pôde mostrar na série de sonhos de final de análise dos AE -ao encontro com um fora de sentido no sonho. É então que o sonho se torna instrumento do despertar, quando mostra um ponto em que isso não se pode dizer. Alguma coisa cessa de não se escrever. Não se trata de uma inscrição definitiva, como já se pôde observarquanto aos nomes de gozo que se revelam ao final da análise.
O importante é o acontecimentodo adventodesse espaço fora do sentido. É o esp d’um desp. Esses significantes separados do seu sentido, essas onomatopeias respondem umas às outras. O Kekkek de uma vai ao encontro do craque,do bum e do uhde outras. Esta não é uma inscrição no mármore, isso vem mostrar, isso mostra. Se prestarmos muita atenção nisso, issose apaga e não mostra mais nada.
Aproximemos este isso mostra da lógica da mostração, segundo Wittgenstein. Para ele, é claro, o problema não é o gozo e o desejo, mas a linguagem, composta de tudo o que se pode dizer, do conjunto de proposições e do mundo para o qual ela remete. Ele sustenta que a linguagem pode apenas mostrar o mundo. A linguagem, do ponto de vista lógico é, afinal, uma tautologia. Ocorre-nos dizer que A=A. Mas o que A quer dizer? São outros discursos, como a ética, a religião, a arte que conseguem mostrá-lo. Transponhamos o problema de Wittgenstein. Como, com um instrumento estruturado como uma linguagem, se poderá mostrar o gozo? Eis aqui o nosso despertar.
Iremos, pouco a pouco, rumo a esse congresso, rumo a esse despertar. Precisaremos manter o fôlego durante dois anos, ter a ideia de que avançamos rumo à abertura para as novas perspectivas do último ensino de Lacan, sem esquecer o comentário sobre a injeção de Irma do Seminário 2.Teremos de comer o livro o suficiente para compreendermos o que essas mudanças de perspectiva implicam na prática da interpretação do sonho. Teremos de mostrar que sabemos nos servir do que Freud nos deixou, das ficções freudianas, do sentido sexual e da ficção do Nome-do-Pai dos quais é preciso fazer uso. E se medirmos a dificuldade, a distância, a tensão entre a prática freudiana e a prática lacaniana aberta pelo último ensino, pelo menos aquela para a qual Lacan tenta nos despertar, então poderemos, talvez, chegar ao congresso suficientemente disponíveis para, durante um momento, fazermos uma verdadeira comunidade de trabalho da Escola Una e respondermos,juntos, à bela pergunta formulada, tanto no texto de Silvia Baudini quanto no que Marie-Hélène Brousse nos trouxe: o que há de novo na prática do sonho, 120 anos depois? O encontro decisivo será no congresso. Enquanto isso, diremos tudo o que pudermos a fim de nos prepararmos para o encontro.
Janeiro de 2019.
NOTAS
- T.: Le Réveil du rêve ou l’esp d’un rev, no original.
- Jacques Lacan, « A terceira » (1974), em Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, 62, São Paulo, Ed. Eolia, dezembro de 2011, p. 25.
- Jacques Lacan, O Seminário, livro 20 : mais,ainda, Rio de Janeiro, JZE, 2008, p. 62
- Jacques Lacan, le Séminaire, livre XXV, Le moment de conclure, Ornicar ?, n°19, Paris, Lyse, 1979, p.5
- Jacques Lacan, O Seminário, livro 20 : mais,ainda, Rio de Janeiro, JZE, 2008, p. 62
- Jacques Lacan, O Seminário, livro 22, « R.S.I. », lição de 11 de fevereiro de1975, inédito.
- Jacques Lacan, Improvisation: désir de mort, rêve et réveil, l’Ane n°3, 1974.
- Jacques-Alain Miller, Réveil, Ornicar ? n°20/21, verãode 1980.
- Frank Rollier apresentou o conjunto dessas citações em um artigo disponível online : « Puis-je espérer me réveiller un jour» ?