ARGUMENTO
Apesar dos desencontros provocados pelas diferenças entre os idiomas, deixemos essa sentença em francês. Deixá-la como está, em sua edição original, é uma oportunidade, pois ela ecoa os caminhos que queremos percorrer em nossas XXV Jornadas da Seção Minas Gerais da EBP, Acontecimento de Corpo: da contingência à escrita.
Na leitura desse pequeno fragmento, presente no escrito “Joyce, o Sintoma”1, podemos experimentar certo estranhamento. Este se dá pois, ali, explicita-se o esforço de Lacan em seu último ensino, o qual pretendemos que norteie nossos trabalhos.
Há um movimento em busca de um sentido no real2 que escape da profusão imaginária e infinita da articulação significante que até então operava na psicanálise. Curiosamente, a questão fundamental nessa orientação toca a especificidade da relação que o humano tem com o corpo. Se, para o animal, podemos cogitar que um indivíduo é aquele que é um corpo, no humano, afetado que é pela linguagem, nos encontramos diante de uma disjunção estrutural entre o ser e o corpo, sendo que, este último, o homem apenas o tem.
Tal divisão, delineada pela construção cartesiana, marca, em suas origens, a psicanálise. Contudo, a separação estabelecida por Descartes entre corpo e saber, conforme nos lembra Miller3 , deixa o corpo apenas como extensão, deslocado da relação ao saber.
Num trabalho distinto da lógica cartesiana, essa divisão mobiliza as primeiras elaborações de Lacan, tais como o sujeito na sua articulação significante como falta-a-ser e a função do outro especular, denotada particularmente no Estádio do Espelho, assim como a possibilidade de constituir um Eu a partir da representação. Restaria ao humano tentar ser com o que tem.
Podemos localizar, no Seminário II4 , o trabalho nessa direção, quando ele demarca a especificidade humana ao afirmar que, para nós, não há co-nascimento, como acontece com os filhos diretos da natureza. Se, por efeito da linguagem sobre o corpo, nos vimos por nossa condição dele separados, seu ensino se envereda em seu início exatamente pela articulação desse corpo com o saber. Sendo assim, o corpo é afetado pelos efeitos de sentido, pelo imaginário do narcisismo, pelas formações do inconsciente.
Nesse primeiro momento, o Inconsciente de Lacan é ético e, portanto, não é da ordem do real5. É um vir a ser que está em jogo, logo, uma suposição.
Em consequência dessa disjunção que nos constitui, a elaboração lacaniana, desde seus primórdios, sustenta a presença de uma hiância, assim como a afirmação de que é exatamente essa hiância o lugar da psicanálise. Nesse topos, que já indicava o que viria posteriormente com a formalização do objeto a, cabe ao analista se fazer valer com sua presença. De tal maneira que, se o analista, desde então, já é tomado como parte do inconsciente, ele o é como suposto saber, saber de um devir, correspondente estrutural da falta-a-ser do sujeito. O Sujeito Suposto Saber é a ilusão do que já estaria desde sempre escrito.
Quando retomamos a frase presente no texto “Joyce, o Sintoma”, agora em português, deparamo-nos com os esforços dos tradutores em não somente traduzir algo do sentido da frase de Lacan, mas também algo da trama de palavras, fora do sentido, numa escrita que, deslocada de seu contexto, se mostra assemântica. Pois, na verdade, nesse escrito de inspiração Joyceana, naquilo que Lacan escreve, aí sim, num singular “lacanês”, precipita-se a materialidade das palavras e suas ressonâncias. “UOM, UOM de base, kitemum corpo e só-só Teium”6. Conseguimos acompanhar o sentido, mas não há tradução para a dimensão sonora da frase. Ela ressoa um sentido que, numa primeira leitura, aparentemente não quer dizer nada.
O último ensino de Lacan revela certa inversão de paradigma. No Seminario XX 7, em poucas palavras, desmonta-se a estrutura que era sustentada até então. Essa história de inconsciente estruturado como linguagem é linguisteria, lembrando que a histérica faz sintoma a partir do sintoma do outro e que o inconsciente é um saber fazer com o encontro contingente da língua e o corpo, a saber, com lalangue8. A linguagem seria, assim, uma elucubração de saber sobre lalangue.
Desse modo, desloca-se a noção de inconsciente da articulação de saber para um saber fazer que toca fundamentalmente a ideia de corpo e sua satisfação. O corpo passa a ser tomado mais além do sentido, ou da representação. Lacan trabalha então com um estatuto real da língua, não mais articulada ao saber, mas que afeta o corpo e que, ao afetá-lo, produz um acontecimento, um acontecimento de corpo.
A princípio, um corpo é pensado como o que goza de si mesmo9. Para LOM, utilizemos a literalidade de Lacan: esse corpo que ele tem, e não mais que um, sofre a incidência da palavra, sendo um sintoma o que testemunha
um acontecimento que marcou seu gozo, no sentido freudiano de Anzeichen, e que introduz um Ersatz10, um gozo que não faria falta, um gozo que transtorna o gozo que faria falta, quer dizer, o gozo de sua natureza de corpo (…) é precisamente esta incidência significante o que faz do gozo do sintoma, um acontecimento, não apenas um fenômeno. O gozo do sintoma testemunha que houve um acontecimento, um acontecimento de corpo depois do qual, o gozo natural, entre aspas, que podemos imaginar como o gozo natural do corpo vivo, transtornou-se e se desviou. Este gozo não é primário, mas é primeiro em relação ao sentido que o sujeito lhe dá e que lhe dá por seu sintoma enquanto interpretável11.
Ao comentar o ultimíssimo Lacan, Miller discorre sobre a mudança de rumos por ele efetuada deslocando-se da noção de simbólico e, portanto, do sentido, na medida em que este se articula na cadeia significante para valorizar o que seria da materialidade da palavra. Tal moterialité pode, a princípio, parecer estranha, pois, ao afastar o sentido, Lacan parece aproximar o real da psicanálise do real da ciência ao nos apresentar algo que retorna sempre ao mesmo lugar, um contraponto à contingência com a qual lidamos em nossa prática. Essa aparência se desfaz na medida em que o que está em jogo nesse “mesmo”, designado por Lacan como lalangue, incide sobre Um corpo. Essa incidência produz ressonâncias, acontecimentos contingentes de corpo. Passamos, assim, do sujeito enquanto articulação da cadeia significante e com o qual operamos no campo semântico aberto ao infinito, ao Um do gozo que se apresenta em um corpo, um corpo que se tem e que é sempre Outro, e que nos interessa tocá-lo na singularidade desse gozo. Ficam separadas as noções de corpo entendido como corpo-Um do indivíduo, uma representação com a qual este se identifica imaginariamente e o corpo como superfície de inscrição de gozo. Passamos, assim, do sujeito ao falasser, ao parlêtre.
Entra em cena o que Lacan ressalta como a dimensão autística do gozo do sintoma, na medida em que este se fecha sobre si mesmo e somente se liga ao corpo por um acontecimento. Esse acontecimento, é preciso arejá-lo.
O sintoma… é um acontecimento de corpo ligado ao que: l’on l’a, l’on l’a de l’air, l’on l’aire, de l’on l’a12.
A linguagem, assim, está mais próxima da poética, na qual, mais que a informação, interessa-nos a ressonância.
Isso traz consequências para o analista e seu ato. No seminário sobre a lógica do fantasma, Lacan nos apresenta uma nova versão para a associação livre: o discurso livre. Ressalta-se essa mudança exatamente como demarcação de um outro lugar para a interpretação, não mais na infinitização do sentido e das associações. O discurso livre tem como função criar um lugar para a verdade, um furo, sendo aqui que a interpretação acontece, pois o analista ocupa esse lugar da verdade, o que dá um outro estatuto ao Sujeito Suposto Saber13.
O analista, como já vimos, faz parte do inconsciente. Ele se constitui naquilo a que este se dirige. Contudo, na medida em que a linguagem não é informação, mas ressonância, cabe ao analista favorecer, pela contigência de sua presença, a matéria que nasce entre o sentido e o som, deixando a descoberto o “moterialismo”, pois este, em seu centro, conserva o vazio.
Isso leva Lacan a pensar a interpretação, a partir da leitura, como um híbrido entre o significante e a letra. Dessa forma, a interpretação se acopla à noção de sintoma como acontecimento de corpo, pois a interpretação se faz um acontecimento de dizer.
Enquanto jaculação, entre a expressão oral e o escrito, pode ser tomada como uma realização subjetiva de um vazio14. Ressalte-se que a jaculação é uma presença vocal, e a produção do vazio se dá pela separação que ela produz entre significante e significado.
É preciso interromper essa pura reiteração de gozo, esse monólogo autista que leva Lacan a perguntar se a psicanálise não seria um autismo a dois. O encontro com o impossível, o que aqui podemos assinalar como o encontro com a não relação sexual, interrompe esse fluxo interminável do gozo, e é aí que algo, a partir da letra, se escreve.
A letra não diz nada, não quer dizer nada. Ela apenas é. Ela é um modo distinto do funcionamento do S1, pois localiza o gozo que reitera a partir do impacto de lalangue no corpo. Podemos tomar lalangue como o início do gozo como um enxame de S1, enquanto a letra é sua marca, o recorte de um S1 sintomático e que se escreve de maneira selvagem.
O acontecimento é “tudo o que chega”, o que revela sua presença contingente, o sintoma é como acontecimento de corpo à afetação desse corpo, o que resulta num gozo opaco ao sentido e que reitera. A letra, por sua vez, se inscreve como sintoma, assinalando esse indizível, fazendo borda ao furo do saber.
As mudanças presentes em seu último ensino convocam Lacan a reformular os termos com os quais operava. Inconsciente, transferência e interpretação dão lugar a parlêtre, ato e jaculação15. Tais mudanças demarcam novidades na leitura do trajeto de uma experiência analítica.
Essas torções e diferenças iluminam o caminho que buscaremos percorrer em nossas XXV jornadas: “O acontecimento de corpo: entre contingência e escrita”, entre aquilo que afeta um corpo e aquilo que se faz uma marca capaz de ser lida.