O autismo tem a particularidade de surgir em crianças pequenas. Também existem adolescentes e adultos autistas que — embora, na maior parte das vezes, varie a forma de apresentação que tinham na infância, sobretudo pela ampliação do uso da linguagem — mantêm certas características que não se modificam, sem pressagiar com isso um destino trágico, que devemos aceitar com resignação.
Antes de tudo, é necessário distinguir o autismo do conceito de “gozo autista”. O autismo não é uma enfermidade da ruptura do laço como expressão de nosso mundo moderno, ainda que prevaleça o “todos autistas” em nossa linguagem corrente. O gozo é sempre autoerótico, autista, nesse sentido, mais além do tipo de laço que prevalece em nossa contemporaneidade. A expressão “autismo generalizado” nomeia o gozo, supõe o laço com o outro, mas sem que essa generalização implique um diagnóstico. Jacques-Alain Miller indica que o autismo, no sentido amplo, é uma categoria transclínica: é o estado nativo do sujeito a quem se acrescenta o laço social.
A partir de um breve percurso sobre a história desse quadro, poderemos examinar a abordagem psicanalítica tanto conceitual como clínica.
Diagnósticos
O autismo infantil tem sua história. Leo Kanner introduziu, em 1943, o conceito de “autismo infantil precoce”. Poucos meses depois, em 1944, e em outro contexto, Hans Asperger introduziu as premissas do que será chamado “síndrome de Asperger”. O primeiro ficará como uma interface entre a psiquiatria e a psicanálise. O segundo segue um caminho educativo, já que Asperger propõe desde o início uma “pedagogia curativa”.
O conceito mesmo de autismo é particular. Ele é o grande sobrevivente do colapso diagnóstico que propõe o DSM-IV. Tanto o “Autismo infantil precoce” de Kanner como a “Síndrome de Asperger” fazem parte dos “transtornos generalizados do desenvolvimento” (TGD), que acentuam a perturbação evolutiva.
Segundo a descrição de Kanner, as crianças autistas apresentam transtornos em sua relação com o outro (rechaço do olhar, ausência de condutas espontâneas como apontar objetos de interesse, falta de reciprocidade social ou emocional), na comunicação (atraso ou ausência na linguagem oral, uso estereotipado ou incapacidade de estabelecer conversações) e no comportamento (falta de flexibilidade, rituais, ausência do jogo simbólico). Aloneness e sameness, solidão e fixidez, são características essenciais do quadro clínico. O adjetivo “precoce” indica que pode se manifestar desde o nascimento, nos primeiros meses ou antes dos três anos. Esse início precoce determina sua modalidade de apresentação.
O que distingue o autismo infantil de Kanner da síndrome de Asperger é o fato de que falta a esse último o atraso da linguagem, e, ainda, de que seja diagnosticado ou se inicie após os três anos. Asperger situa entre os elementos de seu diagnóstico traços que perduram durante toda a vida, sem evolução notável.
Nos Manuais Diagnósticos, os dois quadros são diferenciados da esquizofrenia infantil pela ausência de alucinações, ainda que, na realidade, como assinala Lacan, as crianças autistas também tenham alucinações, que devem ser examinadas em suas particularidades.
O DSM V elimina essa distinção e introduz uma nova categoria clínica com a qual será examinada toda a infância: “transtornos do espectro autista” (TEA), com sua graduação: leve, moderado e severo (LAURENT, 2011). Os critérios utilizados para esse diagnóstico são: déficits sociais e de comunicação, assim como interesses fixos e comportamentos repetitivos. Dessa maneira, o autismo torna-se, hoje, um diagnóstico ampliado, que inclui uma tipologia variada.
Nesse contexto, a pergunta sobre se as crianças com diagnósticos de autismo infantil precoce podem evoluir para a síndrome de Asperger , na idade adulta, eventualmente, desaparecerá nesse contexto, já que ambos formam parte do TEA. Não obstante, a sutileza clínica dessa questão permanece, na medida em que se pode observar uma mudança da infância para a idade adulta, que demonstra que nem todas as crianças autistas permanecem necessariamente toda sua vida com sua apresentação inicial, nem persistem os chamados “transtornos cognitivos” com os quais foram avaliados na infância. Como disse Ian Hacking (2001), se os nomes das classes interagem com as pessoas que eles afetam, entretanto, tornam-se insuficientes para alojar os sujeitos com suas diferenças. Assim, para além do destino dos diagnósticos, permanece aquilo que torna a cada um único e refratário a diluir-se na “norma”.
As teorias cognitivas introduziram a noção de “espectro autista” que engloba tanto a criança como os adultos; um estudo de Lorna Wing e Judy Gould, do ano de 1979, está na base desse conceito. Esse estudo postula que toda criança que apresenta uma deficiência social severa também tem os sintomas principais do autismo. Ou seja, as crianças que estão afetadas por dificuldades na reciprocidade social, na comunicação e apresentam restrições em suas condutas necessitam dos mesmos tratamentos cognitivos que os autistas. Dessa forma, todas elas ficam incluídas no espectro autista, aumentando, assim, enormemente, a incidência do autismo (LAURENT, 2011).
Esse aumento está vinculado ao diagnóstico de “Transtorno generalizado do desenvolvimento inespecífico” – TGD, que, ao carecer de critérios definidos, incluía mais casos de espectro autista que de autismo propriamente dito. Esse é um dos pontos de discussão dentro do projeto do DSM V.
Em nome de uma suposta “normalidade”, busca-se incluir as crianças em programas que as tornem iguais às outras. Desconhece-se, assim, que não há uma norma que valha para todos por igual, já que não existe um critério de saúde universal. Todos diferentes, todos “normalmente” fora da norma no ponto em que se encontra a singularidade. Cada criança autista tem seu modo próprio de “funcionar” dentro de sua estrutura. Numa perspectiva exterior à psicanálise, o neurologista Oliver Sacks, em seu texto Um antropólogo em Marte, afirma que não há dois indivíduos autistas iguais: “seu estilo individual ou expressão são diferentes em cada caso” (SACKS, 2003). O que nos leva a reafirmar que não há dois sujeitos iguais, autistas ou não.
Epidemia de autismo
O diagnóstico de autismo na infância multiplicou-se nos últimos tempos. Esse incremento tem repercussões tanto nos tratamentos como nas políticas de saúde pública. Mas, realmente, há um aumento de crianças autistas, ou esse fenômeno é induzido pelas leituras classificatórias em uso no nosso mundo atual?
Ante a emergência do aumento de crianças autistas, um rumor inquietou a opinião pública. Em 1998, The Lancet publicou um estudo do Dr. Wakefield do Royal Free Hospital, do norte de Londres, no qual colocava a hipótese da relação entre a vacina contra rubéola e o autismo. Os meios de comunicação contribuíram para retransmitir a notícia e, assim, criar um grande escândalo, e o rumor expandiu-se pela internet.
Como resposta a esse rumor, François Ansermet (2008) expressou, também por internet, que uma investigação, realizada em 2004, revela que uma equipe de advogados pagou ao Dr. Wakefield para publicar essa nota, e, imediatamente depois, surgiram processos contra os produtores da vacina. The Lancet publicou, em março de 2004, uma pequena nota editorial em que se retratava, mas o rumor continuou circulando.(2) O que esse rumor demonstra é que pensar o autismo como um déficit ligado à carga genética, que é constitucional, ou, inclusive, como efeito secundário de uma vacina, geralmente, alivia os pais, já que lhes retira dos penosos sentimentos que experimentam.
A busca de uma genética defeituosa chegou a tal ponto, que, ante a dificuldade de encontrar um “gene autista”, os cientistas começaram a falar de “mutações genéticas espontâneas” ligadas ao meio ambiente. A decodificação do genoma humano introduziu a crença de que, finalmente, será possível estabelecer uma sequência genética que permita isolar o autismo. Em junho de 2010, o Consórcio do Projeto Genoma publicou um artigo na revista Nature sobre a descoberta de repetições e perdas de fragmentos de DNA em 20% dos casos de autismo examinados. Trata-se de “variantes raras”, mutações únicas, com um gene diferente em cada criança. O que se destaca é que se trata de mutações congênitas, que nada têm a ver com a herança e que são todas diferentes. Não sendo possível estabelecer a causa dessas mudanças genéticas, o “meio ambiente” permanece como uma hipótese. A abordagem genética, assim colocada, aponta a reeducação como única solução viável. Ainda veremos se esse “meio ambiente” incluirá ou não a relação do sujeito com o significante.
O descrédito quanto à psicanálise é correlativo ao recurso crescente a tratamentos cognitivo-comportamentais para a abordagem de crianças autistas, que tendem a difundir a crença de que os psicanalistas culpabilizam os pais pela enfermidade de seus filhos. O próprio Ian Hacking, em A construção social de quê?, retoma essa perspectiva e considera que, na verdade, a ciência cognitiva é a única que, na atualidade, pode explicar o autismo através da “teoria da mente”, dados os déficits linguísticos e outros.
Mas o que é uma “teoria” — baseada na suposta capacidade de atribuir estados mentais a si mesmo e ao outro — senão uma versão imaginária do Outro? Portanto, o autismo não é uma fatalidade, diz Jaqueline Berger, jornalista, autora do livro Sortir de l’autisme, e mãe de crianças autistas. A má reputação da psicanálise corresponde ao fato de que os resultados obtidos não são avaliáveis de acordo com os critérios quantitativos e estatísticos cognitivo-comportamentalistas utilizados nas publicações científicas.
Do lado da psicanálise
Jean-Claude Maleval (2011) destaca a diversidade de casos envolvidos no diagnóstico de autismo, que vão desde os casos que necessitam de uma atenção institucional por toda vida aos de autistas de alto nível. Algumas crianças apresentam “ilhas de competência” que, às vezes, as tornam eruditas em domínios muito especializados, inclusive com habilidades excepcionais. O. Sacks (2003) examina as características que as tornam “prodígios”, também chamados “autistas sábios”, cujas proezas técnicas, diz Laurent (2011), têm deslocado o interesse que antes recaía sobre o delírio.
No entanto, não se pode apreender o autismo pela soma dos sintomas, já que não se trata de uma enfermidade, mas de um “funcionamento subjetivo singular”. Enquanto um tipo clínico particular, por detrás de sua “carapaça”, não se esconde nenhuma criança “normal”. A concepção deficitária do autismo inclui essas crianças inevitavelmente em tratamentos exclusivamente educativos e ignora a possibilidade de participação do sujeito num funcionamento que não fixa um destino.
Maleval (2011) concebe o autismo como uma estrutura que se caracteriza por um rechaço da alienação significante e de um retorno do gozo sobre uma borda. Essa expressão, tomada de Éric Laurent, dá conta de como o objeto se encontra pregado ao corpo, de tal modo que constrói uma “carapaça autista” em sua particular dinâmica libidinal. O transtorno simbólico gera uma enunciação morta, defasada, apagada ou técnica. Não se trata de um déficit cognitivo, mas de uma relação particular com o significante. Esse rechaço impede que o gozo se conecte com a palavra, e, em vez disso, ele retorna sobre uma borda, com um objeto ao qual o autista encontra-se ligado: constrói-se, assim, uma carapaça, dentro da dinâmica libidinal. A borda autista é uma formação protetora frente a um Outro ameaçador e dispõe de três componentes essenciais: a imagem do duplo, as ilhotas de competência e o objeto autista.
A hipótese central de Maleval é a do rechaço do autista ao gozo associado ao objeto voz, que determina as perturbações da linguagem: não se trata aqui tanto da sonoridade, mas da enunciação de seu dizer. “Nada angustia mais ao autista”, diz Maleval (2011) “que ceder seu gozo vocal alienando-se ao significante”. Protege-se, então, da presença angustiante da voz através da falação ou do mutismo, evitando a interlocução com o Outro. E, mesmo quando falam com fluidez, como no caso dos autistas de alto nível, protegem-se do gozo vocal através da falta de enunciação. Daí deriva a solidão do autista em relação a tomar uma posição de enunciação; assim como também sua fixidez no esforço de manter uma ordem estática frente ao seu mundo caótico.
Maleval (2011) destaca dois tipos de saída possíveis, que vão da criação de um duplo na infância, à de um Outro de síntese na idade adulta, através da memorização de signos e, finalmente, do uso de objetos autistas muito complexos. Assim, da solidão e do mutismo do autismo precoce, em um segundo tempo, é possível encontrar o trabalho sobre o retorno do gozo sobre a borda na síndrome de Asperger da idade adulta. Esses desenvolvimentos são linhas de investigação para refletir sobre seu funcionamento dentro do dispositivo analítico.
Éric Laurent (2011) indica que a inclusão do sujeito no autismo implica o funcionamento de um significante sozinho no real, sem deslocamento, “peça solta”, que busca encontrar uma ordem fixa e realizar um simbólico sem equívocos possíveis, verdadeira “cifra do autismo”. O não sentir empatia, na realidade, não é necessariamente um déficit, mas o que os leva a funcionar sem os obstáculos imaginários próprios da vida cotidiana. Por outro lado, acrescenta que “há que se renunciar a pensar a criança-máquina” — alusão ao caso Joey de Bettelheim — e falar da “criança-órgão”, pois se trata de uma montagem do corpo com um objeto de fora do corpo que inclui, às vezes, um “objeto autista” colado a seu corpo.
Quanto às particularidades do tratamento, Éric Laurent (2011) assinala que o encapsulamento autista é uma bolha de proteção fechada de um sujeito sem corpo. O problema que se coloca, então, não é tanto como se constitui uma borda, como na esquizofrenia, mas como se desloca essa neoborda, que, em si mesma, está muito bem constituída.
Ao chegar à consulta, a criança autista tende a rejeitar todo contato com o outro, na medida em que este é experimentado como intrusivo frente a essa borda encapsulada, quase colada na superfície de seu corpo. O deslocamento dessa carapaça se produz através de intercâmbios articulados com um outro percebido como menos ameaçador . Busca-se construir um espaço que não seja nem do sujeito nem do outro, um espaço que permita uma aproximação, que remova a criança de sua indiferença e da repetição exata de sua relação com o outro, articulando, assim, um “espaço de jogo” — ainda que reste precisar qual é o estatuto desse jogo. Essas trocas no real, não puramente imaginárias, nas quais intervém a metonímia de objetos, permitem a construção de um espaço de deslocamento da borda e a emergência de significantes que passam a tomar parte de sua língua privada.
Em algumas ocasiões, inclui-se o “objeto autista”, com o qual a criança se desloca e entra também no circuito dos objetos. Esse objeto é parte da invenção pessoal, por isso a orientação psicanalítica que aponta para a operação de “separação”, sem inscrevê-la, não indicando, de modo algum, que se retire esse objeto da criança.
Na medida em que os tratamentos apontam para as singularidades, é possível prestar atenção às manifestações do significante sozinho no real, escutar o sujeito sem objetivá-lo e aprender sua língua, de acordo com a expressão de Jean Rabanel (2011). O fora do laço do autista, seu rechaço ao outro, que é percebido como intrusivo, torna ainda mais importante possibilitar as invenções através das quais o analista se torna o partenaire da criança autista, de modo tal que sua palavra possa ser escutada.
Éric Laurent (2011) indica que, para aplicar a psicanálise ao autismo, é necessário permitir ao sujeito separar-se de seu estado de refúgio homeostático no corpo encapsulado e passar a um modo de subjetividade da ordem de um “autismo a dois”. Há que se tornar o novo partenaire do sujeito, fora de toda reciprocidade imaginária e sem a função de interlocução simbólica.
A invenção é convocada não só do lado da criança, mas também do analista. Dessa forma, pode-se afirmar que há transferência na direção da cura da criança autista, todavia, devem-se determinar, em cada caso, suas particularidades e suas consequências na cura.
Quanto às entrevistas com os pais, não se trata de desampará-los, culpabilizando-os, mas de contribuir para encaminhá-los a tratamentos possíveis. A simples entrevista, ao lado das questões ali colocadas, pode produzir um sentimento de estar em falta, mesmo sem uma teoria que aponte os pais como causa do autismo. Esse é um elemento essencial para levar em conta na consulta da criança, de tal modo a não deixar os pais sem recursos, o que pode levá-los a uma suposta solução
rápida via reeducação.
Para concluir
A psicanálise é uma alternativa legítima de tratamento para o autista, tanto no seu trabalho individual junto a um dispositivo de trabalho criado em seu entorno, como na prática institucional “entre muitos”. E seus tratamentos nos deixam como ensinamento que o sujeito nunca pode reduzir-se a ser um objeto de diagnóstico e que, ao nos aproximarmos da criança, como um analista pode fazer, as portas abrem-se para um universo singular que nenhum manual diagnóstico poderia antecipar.
Para uma criança autista, como para qualquer outra criança com um diagnóstico diferente, não há outra “normalidade” que o modo de funcionamento que lhe seja próprio.
Dirigir-se à criança autista como sujeito, não como objeto educável, introduz possibilidades de encontros inesperados, com soluções que lhe permite reinserir-se no
Outro de um modo original, sem ser encerrada na incapacidade ou em protocolos preestabelecidos. É um tratamento de um a um, mas com outros.
Referências
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-IV.
BERGER, J. Sortir de l’autisme. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 2007. (Coll. Essais et documents).
HACKING, I. Entre science et realité: la construction sociale de quoi? Paris: La Decouverte, 2001.
LAURENT, É. “Spectres de l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.53-63, 2011.
MALEVAL, J.-C. “Langue verbeuse, langue factuelle et phrases spontanées chez l’autisme”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.77-92, 2011.
RABANEL, J.-R. “Une Clinique de l’objet a em institution”, La Cause Freudienne, Paris, n.78, p.64-76, 2011.
SACKS, O. Un anthropologue sur mars. Paris: Seuil, 2003.
Notas:
2-. The Lancet, London, v.363, n.9411, p.823-824, mars 2004.