No mês passado, o jornal Folha de São Paulo divulgou estatísticas de um estudo do governo do Estado de São Paulo cujo objetivo era fazer uma radiografia dos assassinatos dolosos (aqueles praticados com intenção de matar). Os números são de assustar: a cada dois dias, ao menos três pessoas são mortas em brigas de família no estado. Os números, segundo a matéria, ainda podem ser maiores, já que a pesquisa analisou somente os boletins de ocorrência no período de janeiro a abril de 2014. Estaria essa instituição fadada ao fracasso? Estaríamos, diariamente, “dormindo com o inimigo”? O medo da próxima tragédia nos impedirá de constituir ou de manter uma família?
O estudo, ao fazer uma radiografia do contexto e da motivação dos crimes no Estado, identificou que pelo menos 12,5% do total de 1.606 vítimas no período analisado tinham sido assassinadas em razão de conflitos entre familiares ou casais. A matéria do jornal ainda relembra os casos que foram divulgados na mídia brasileira nos últimos anos, o de Suzane Richthofen (2002), de Gil Rugai (2004), do casal Nardoni (2008) e do menino Marcelo Pesseghini (2013).
A sociedade busca uma explicação para essas mortes. Como pode haver tanta violência entre aqueles que são unidos pelo sangue? O jornal foi ouvir a opinião de especialistas. Segundo o psicólogo e professor da USP Sérgio Kodato, os motivos variam desde crise econômica a desorganização familiar. Ele atribui esse problema, em parte, à ausência da figura da autoridade paterna que, antigamente, segundo ele, impunha respeito e disciplina aos filhos. Será que o respeito imposto pelo medo impediria que esses conflitos acontecessem?
Não acredito. Penso que os assassinatos não podem ser atribuídos à presença ou à ausência empírica de um pai disciplinador. Não se pode confundir o pai que amedronta com aquele que transmite a castração para seu filho. Concordamos com Jorge Forbes quando ele afirma, no livro Inconsciente e Responsabilidade, que a família, ao invés de representar o lugar onde se ganham coisas (presentes os mais variados, mesadas), é a instituição que pode dar a maior herança que alguém pode ganhar: um limite ao gozo desenfreado.
As histórias de tragédias familiares não vêm de hoje. Remontam, segundo a tradição cristã, desde a criação do mundo. A Bíblia relata que a primeira família humana já foi marcada por um fratricídio: Caim matou Abel. Após esse relato, poderíamos fazer uma lista grande de tragédias familiares. Apenas alguns exemplos: os filhos de Jacó, por inveja do irmão, venderam José como escravo para afastá-lo da família; Abimeleque matou todos os seus irmãos para se tornar líder absoluto do povo; um dos filhos do rei Davi, Amnom, estuprou a própria irmã; Atalia, mãe do finado rei Acazias, mandou matar todos os seus netos para tomar o trono.
Enfim, nem ontem, nem hoje, a família pode ser entendida como um lugar sem conflitos. Freud sabia disso. Em 1930, no texto “O mal-estar da civilização”, já afirmou que “A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem”. Ou seja, não adianta tapar o sol com a peneira, pensando que o natural do ser humano é viver feliz e harmoniosamente com aqueles que estão ao seu redor. O que, talvez, seja diferente nos exemplos bíblicos é que a narrativa é organizada de tal modo que nós entendemos a intencionalidade do criminoso. Em todos os casos, fica claro porque o assassino matou, sabemos o que ele queria obter com o crime.
Em tempos em que as intencionalidades estão cada vez mais opacas, impor um limite para o ser humano é da ordem de uma instância singular. Como afirmado por Forbes, o pai não é mais o herói de sua família, pois todos percebem que ele é mortal, falível e suscetível aos mais diversos erros. Isso não implica que seja descartável e, muito menos, que sua suposta “falência” esteja na fonte dos crimes relatados nos jornais. Juntamente com sua parceira, os homens da contemporaneidade podem organizar modos de dar destinos menos funestos às pulsões de sua prole.
Quem encontrou um anteparo ao gozo leva, para toda a vida, uma transcendência singular que impõe um limite para suas ações. Faz com que alguém pense muitas vezes antes de tomar qualquer decisão. Barrado pelo amor à sua família, cada membro vai procurar se manter em seu lugar, cumprir as funções que foram pactuadas, e, acima de tudo, colocar um freio em si próprio quando a vontade de resolver as coisas pelo modo mais fácil (a violência) ocorre. Para quem sofreu os efeitos da castração, essa possibilidade de freio é possível com ou sem a presença de um pai empírico.
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