ANO 2 Nº 09
São Luís, 03 de julho de 2008.
Estamos já realizando nossos trabalhos em nossa nova sede e queremos participar aos colegas as conquistas da nossa Delegação. Neste boletim teremos a colaboração da nossa colega Thais num apanhado sobre a presença da conselheira da EBP, Sônia Vicente, sobre “O que é a Psicanálise” e um texto de Oscar Raymundo membro da Escola, membro do conselho da Escola e membro da seção Santa Catarina sobre “O direito da Infância á Psicanálise”, assim como a nossa Agenda de trabalho.
Ecos sobre a palestra “O que é a Psicanálise”
A conferência « O que é a Psicanálise? », ministrada por Sônia Vicente, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Bahia, na UNDB, promovida pela Delegação Geral /MA em 21 de junho último, foi assistida por muitos profissionais de diferentes áreas que ouviram interessadamente sobre a clínica, via escolhida e privilegiada por Sônia para iniciar a palestra. Afinal, o que faz com que determinada prática seja considerada lacaniana? A Psicanálise não é uma técnica padronizada, mas sim, uma experiência de discurso, na qual cada um produz sua singularidade. É uma experiência que permite a cada sujeito assumir sua responsabilidade frente ao desejo. Na atualidade vemos cada vez mais isso não se realizar, pois o discurso capitalista favorece a produção de uma « chuva de objetos » que não deixa os sujeitos desejarem. Enquanto o discurso da era globalizada tenta dar conta do mal-estar via padronização, a Psicanálise segue o caminho de tratar cada um como único. A globalização mata a subjetividade, enquanto a Psicanálise com sua ética, a do desejo, introduz a diferença. Dessa forma, torna-se premente que ela esteja em todos os lugares da cidade: hospitais, universidades, etc.
Freud estipulou algumas regras porque precisava de parâmetros para que uma prática fosse qualificada de Psicanálise. Tais regras, por conta de equívocos e desvios se cristalizaram, produzindo um efeito desastroso: a inibição do ato analítico. Ao se utilizar as regras como uma série de prescrições, o que era para preservar a identidade da psicanálise, tornou-se standard e dessa forma abriu-se mão do mais importante: da indagação dos seus princípios, deixando de lado a fonte de sua eficácia, a surpresa, que quando se dá, faz surgir a possibilidade de algo poder se modificar. Na clínica, cabe ao analista, pontuar algumas palavras especiais – os significantes – para « cortar », suspender o sentido, para que o novo possa surgir, tirando o paciente da repetição. A análise causa o sujeito a procurar suas respostas, mas somente quando o analista é colocado pelo analisando no lugar do saber suposto, no lugar de Sujeito suposto Saber através do qual a transferência é estabelecida, uma análise tem possibilidade de acontecer. De que trata a Psicanálise? A psicanálise dá um tratamento ao sintoma a fim de transformar a economia de gozo do sujeito. No final de um percurso analítico o sujeito é confrontado com o que lhe causa, deve saber fazer aí, saber lidar com seu modo de gozar, com o seu sintoma; enfim, a orientação lacaniana é ao real e trata de um gozo particular nascido de um encontro contingente com o significante, nos diz Sônia Vicente com clareza e estilo singular na transmissão do saber psicanalítico
O Direito da Infância à Psicanálise
Oscar Reymundo *
Devemos à psicanálise uma ruptura, que é da ordem de uma subversão, em relação ao sujeito. Assim, o sujeito do inconsciente, esse sujeito que é posto ao trabalho no laço social que uma análise propõe, vamos dizê-lo sem voltas, esse sujeito não tem idade. Isto é, o sujeito do inconsciente não é o resultado de um desenvolvimento, mesmo que ele possa modificar, ao longo do tempo de uma análise, o uso que ele faz de sua fantasia. De todos os modos, e ainda que o sujeito do inconsciente não tenha idade, no campo psicanalítico, marcamos, contudo, uma diferença ao falarmos de “psicanálise com crianças”. Neste sentido, considero esclarecedor um pensamento de Éric Laurent que nos ajuda a situar essa diferença. Ele disse: “Tem algo que separa a criança do adulto; com certeza não é a idade, certamente não é o desenvolvimento e também não é a puberdade. No fundo, o que separa a criança do adulto é a ética que cada um se faz do seu gozo” (1). Como vemos, cabe à psicanálise pensar a criança como um sujeito que não somente tem a ver com o desejo, enquanto sujeito à falta-em-ser, mas também como um sujeito que goza. Nessa perspectiva, então, é que podemos dizer que a sexualidade se apresenta muito cedo na vida do ser falante, e se apresenta com suas questões fundamentais que exigem respostas que adquirem a forma de sintomas. Portanto, falar em psicanálise com crianças tem para nós o significado de que pode-se, muito bem, dar conta da análise de uma criança sem que essa análise seja considerada como a ante-sala da análise de um adulto. Esta afirmação adquire especial ressonância nos tempos atuais, que são tempos caracterizados pela emergência generalizada de um regime de gozo ilimitado, descentralizado, ligado ao recuo da exceção paterna, ou, se Vs. quiserem, da função paterna. Lembremos que a exceção paterna é fundadora do universal e que é a partir desta exceção que se organiza o contrato social que, mesmo falho, segura a existência e o funcionamento do conjunto, uma vez que a exceção funda a regra, isto é, a regra que organiza a relação entre saber e gozo. É por isso que, do ponto de vista da pragmática da psicanálise, podemos dizer que o pai serve como uma orientação para se estabelecer uma relação confiável entre o sujeito e seu gozo. Uma relação confiável quer dizer uma relação com a satisfação que permita o sujeito se manter afastado da devastação subjetiva e do culto à morte.
Mas os tempos atuais também se caracterizam pela busca e elaboração, em diferentes áreas da cultura, de explicações e de soluções que possam dar conta do suposto caos que tem se tornado a vida com os outros. Digo suposto caos porque, hoje, é freqüente nos depararmos com um discurso que faz das manifestações contemporâneas do gozo um motivo para alimentar um saudosismo do tipo “éramos felizes e não sabíamos”. É complexo e difícil, sem sombra de dúvidas, pensarmos a contemporaneidade por fora do dualismo ordem vs caos que servia de orientação aos laços sociais, segundo a lógica do Todo. Este pensar por fora dos dualismos é o desafio que, também, nos coloca a Orientação lacaniana. O Outro-naotodo feminino, que hoje vemos avançar na civilização, não é o oposto da ordem própria do Outro-todo paterno, da lógica masculina. Dizer que hoje o mundo está de pernas para o ar é fazer consistir a dimensão imaginária pela qual sempre é possível declarar uma guerra que deixe o mundo na posição certa. Pensar em termos de oposição entre Todo e Nãotodo é dar consistência à relação sexual que não existe e cuja inexistência, hoje, se faz mais clara e se torna mais perturbadora do que nunca.
Acredito, também, que não seja uma novidade dizer que os psicanalistas não somos os únicos que percebemos os efeitos subjetivos, em particular os efeitos subjetivos na infância, desse avanço da suspensão da exceção reguladora do gozo. Talvez, a grande divisória de águas que permite nos diferenciarmos de outras práticas que também tentam dar conta dos excessos que, hoje, afetam a existência do sujeito desde os primeiros momentos da vida; talvez, essa divisória consista no fato dos psicanalistas da Orientação lacaniana não acreditarmos no retorno do pai disciplinador ao lugar central da cena, nem acreditarmos que as tecnologias de controle, que não levam em consideração o sujeito da palavra, seja o tratamento adequado para esse tipo de gozo ilimitado que se caracteriza, precisamente, por lançar o sujeito numa ação sem pensamento. Definitivamente, não se podem tratar os efeitos de segregação do sujeito da palavra com mais segregação, ainda. Decididamente, não se pode, como pretendem algumas abordagens terapêuticas, reduzir a experiência da linguagem à comunicação, nem reduzir os afetos à sinapse.
Há muito tempo que os psicanalistas lacanianos não somos os únicos a perceber a fragilidade que tomou conta dos laços sociais e familiares. Também não somos os únicos a perceber a constituição de comunidades instáveis, articuladas por opiniões transitórias e inconsistentes, nas quais vemos proliferar o que podemos chamar de déficit de atenção generalizado(2). Mas, mesmo não sendo os psicanalistas os únicos a percebermos a instabilidade contemporânea das identificações, com seus efeitos de deriva subjetiva e com seus efeitos de “sujeitos a curto prazo”, mesmo não sendo os únicos a percebermos as conseqüências destes fenômenos na infância, os psicanalistas nos diferenciamos das abordagens terapêuticas adaptativas pelo fato de não oferecermos identificações e, muito menos, ainda, identificações compensatórias, rígidas e pretensiosas do tipo “criança hiperativa, criança-fracasso escolar, criança deficitária, perturbada, criança depressiva…”.Não só não oferecemos identificações prontas que, baseadas na evidência comportamental, congelam o sujeito numa posição de gozo, quanto que acreditamos que toda criança que sofre tem o pleno direito de aceder a uma análise desde o inicio até o fim do processo.
Todos sabemos que o sofrimento não é uma experiência alheia à infância, mas hoje se impõem modos de tratamento do sofrimento infantil que acabam fazendo com que as crianças fiquem muito sozinhas com seu padecimento. Os sintomas neuróticos, os estados de angústia difusos, os transtornos de conduta, as inibições e as dificuldades na aquisição da linguagem, a psicose infantil, assinalam que alguma coisa acontece, ainda quando as crianças não saibam ou não possam dirigir um pedido de ajuda. É por isso que devemos encontrar a maneira de nos aproximarmos da intimidade da criança, e a psicanálise nos ensina que essa aproximação nunca poderá se efetivar se não dermos a palavra para que o sujeito fale o que tem para dizer sobre seu sofrimento e nomeá-lo. “Quando se dá à criança a oportunidade de uma entrevista analítica, ela rapidamente oferece as razões de um sofrimento com o qual o tratamento analítico permite operar” (3) .
A psicanálise da Orientação lacaniana não responde a fórmulas unificadas aplicadas em série, mas tem princípios. Um deles nos alerta acerca de que a criança da qual se ocupa a psicanálise não pode ser pensada como um sujeito em processo de evolução nem de amadurecimento, muito embora, às vezes, possamos diferenciar e, até, localizar a passagem entre a infância e outra posição subjetiva. Contudo, a criança psicanalítica sempre retorna, se impõe e, às vezes, irrompe nos laços sociais, laborais e amorosos que costumam marcar a diferença entre o mundo infantil e o mundo adulto.
Os analistas sabemos, apoiados num outro princípio que orienta nossa operação, que seja qual for o caso, quando incentivada a fazê-lo, a criança começa a falar e começa a desdobrar a suposição de que, talvez, ela tenha nascido em razão de um desejo desconhecido. Então, nos aproximarmos da intimidade da criança que sofre significa proporcionar a oportunidade para ela formular sua pergunta acerca de quem foi o desejo dela estar neste mundo, acerca de com quem ela tem contraído essa dívida pela sua existência. Chegarmos perto da intimidade de uma criança também quer dizer que saibamos escutá-la na sua função de pólo de atração e condensação das palavras dos outros e que, também, saibamos escutar que, ainda antes de nascer, ela já foi nomeada, ela já foi alvo de expectativas, e ela já era aguardada pela aceitação ou pela rejeição com as quais, agora, terá de virar-se na vida.
Chegarmos a entrar na intimidade do sofrimento de uma criança é, também, sabermos escutar que junto àquele amor experimentado, que junto àquela certeza dela ter oferecido satisfação, um dia, sem aviso prévio, ela começou a sentir que podia ser devorada. O paraíso ruiu e a angústia perante o desejo do outro irrompeu e, transformada em medo, acabou desenhando o mapa singular do mundo da criança . Então, o parquinho já não é mais aquele lugar confiável; ou a escola perdeu aquele halo de aconchego; ou o cachorro amado ganhou uma boca insuportável; ou da casa do vô só dá vontade de sair correndo e nunca mais voltar. O prazer do familiar e a satisfação obtida daquilo que sempre se apresentou da mesma forma, de repente, dá lugar a uma inquietação e a um sofrimento singulares. Junto à mãe que sabe dos tempos do prazer e do desprazer, dos tempos da ternura e da raiva, se perfila uma mulher cujo desejo faz enigma para a criança. Sabemos que o Nome-do-Pai, esse significante entre outros, estabelece uma versão e um uso particular do gozo que permite o filho orientar-se perante o enigma do desejo do Outro, na medida em que inscreve uma pergunta que lança o sujeito na busca de uma solução singular. Mas, quando o pai-autoridade já não consegue funcionar como exceção organizadora, o filho deve inventar com o que ele tem ao alcance da mão, criando sua própria versão, tentando reconstruir um laço a partir dos discursos sociais à sua disposição ou, então, inventando um discurso próprio que lhe sirva de apoio para localizar-se na civilização, uma vez que não pode contar com os discursos estabelecidos.
O direito da infância à psicanálise é, em definitivo, o direito à possibilidade que toda criança que sofre tem de localizar um significante que lhe permita tornar-se uma criança inventora. “A criança inventa a norma social, chama a norma sexual, interpreta, simboliza, mistifica um real sem lei” (4) . O direito de todo mundo à psicanálise é o direito que todo mundo tem de lhe fazer um lugar ao discurso.
*Psicanalista, Membro da EBP e Diretor da Seção SC
Referencias bibliográficas
(1) LAURENT, E. Hay un fin de análisis para los niños. Buenos Aires. Colección Diva, 2003.
(2) LAURENT,E. “Patologías de la identificación en los lazos familiares y sociales” in Patologias de la identificación en los lazos familiares y sociales. Buenos Aires. Grama Ediciones, 2007.
(3) TENDLARZ, S. De que sufren los niños. Buenos Aires. Lugar Editorial S.A., 1996.
(4) COTTET, S. “El padre pulverizado” in Virtualia nº 15. Publicación virtual de la EOL, Buenos Aires, julio-agosto 2006.