Sexta-feira, 27 de dezembro de 2013 – 12 h 48 [GMT + 1]
NÚMERO 364
Eu não teria faltado a um Seminário por nada no mundo — Philippe Sollers
Venceremos porque não temos outra escolha — AGNÈS AFLALO
– Paredes –
O louco, essa besta magnífica 1
por Aurélie Pfauwadel
«Um ano junto aos loucos mais perigosos»
«Medicamentos. Esquizofrênico. Internados. Alienados. Psicose. Furiosos. Demência. Assassinato. Psiquiatra. LOUCURA. Loucos paranoicos. Obsessão. Cuidar. Fobia. Camisa de força. Confusão. Loucura ordinária. Delirium. Bizarro. Manicômio». Estas palavras inquietantes do universo psiquiátrico aparecem no televisor enquanto uma voz em off nos adverte: «Eles são loucos! Perigosos! Às vezes incontroláveis!» O programa é desaconselhado para menores de 12 anos, e o fundo sonoro e musical, que bascula entre choque e suspense, promete arrepios na espinha e sensações fortes.
Está decidido, nesta noite (domingo, 8 de dezembro de 2013), vamos passar um pouco de medo e assistir Zone interdite! A chamada «revista de informação» da M6, no ar em horário de grande audiência, nos propõe ficar «Um ano na casa dos loucos mais perigosos». Evidentemente, um título conciso e descritivo que a «Reportagem sobre a UMD (Unidade para doentes difíceis) de Albi» não teria sido muito comercial.
Os diretores do programa sabem como fazer para criar, por todos os meios audiovisuais possíveis, um ambiente de angústia ligeiramente transgressivo, próprio para manter o telespectador fascinado frente à tela. Além do filão da angústia, passeiam igualmente pela veia cômica: o «louco» horroriza ou faz rir, como aquele que balança os braços em todas as direções, marionete de um «assim, faz, faz, faz» absurdo. Essa «mecânica aplicada no vivo» (2), denominada «bizarria comportamental» ou «agitação psicomotora permanente», produz seu efeito engraçado.
Nada de ouvidos apropriados para a UMD
Desde o genérico, o todo é de tal maneira caricatural que, de início, é difícil acreditar em nossos próprios olhos. Les Inconnus não fariam um sketch melhor e mais sinistro. Os realizadores se defendem: « Está longe dos clichês sobre os manicômios! » Por que? Porque, precisam eles, « atrás dos muros » há « o silêncio ». Gritos e outros grunhidos não nos são poupados. Se os gritos vêm rasgar o silêncio frio, é porque, em nenhum momento, a palavra destes pacientes, « os mais difíceis », é realmente levada em consideração. Entretanto, « as pessoas que estão entre os muros são totalmente capazes de se fazer ouvir, com a condição de que haja ouvidos apropriados » (3), lembra Lacan por ocasião de seu Seminário oferecido em Sainte Anne. Mas os muros da UMD não têm ouvidos. Eles fazem pura e simplesmente a « exclusão da loucura e do que quer que isto queira dizer » (4).
Zona interdita não nos dá tanto a ouvir quanto a ver: uma fauna estranha e heterogênea feita em parte por bestas ferozes. cujo andar selvagem só pode ser interrompido pelas barras dessa gaiola de loucos. A impressão é reduplicada por uma contingência clínica: Samir, um dos pacientes filmados, em seus delírios se toma por um animal. Ele se faz golfinho, quebra tudo quando é pantera, « e morde como um cão ». Nestas condições, há necessidade de nos dizer com uma insistência exagerada, que compreender « esses seres humanos » para conseguir tratá-los, é « um imenso desafio ».
A clínica do Self-Defense
O que se vê, sobretudo, é o « poder psiquiátrico » em seu insolente esplendor. Nesse caso, as análises elaboradas por Michel Foucault no Collège de France não foram levadas em consideração. Tudo está aí. O hospital-prisão é concebido, em sua arquitetura mesma, como uma « máquina de curar » (5). A imponente silhueta da UMD de Albi, com seus muros de quatro metros de concreto armado, suas grades e fechaduras, é um verdadeiro « aparelho panóptico ». Vinte e uma câmeras de vigilância submetem os pacientes a uma visibilidade permanente. Pergunta-se como Clément, um paciente que passa ao ato após um « episódio delirante agudo » (ele era espiado e queriam matá-lo), encara esta situação. Quando ele diz à terapeuta ocupacional « estamos cercados de muralhas », ela lhe retruca: « São as barreiras que o senhor se coloca ». « Não, elas são reais! », ele responde. Sim, Clément, temos vontade de lhe dizer, elas são bem reais.
Certamente, os muros do quarto de isolamento e do hospital podem revelar-se positivamente continentes para determinados pacientes. Com a condição de oferecer-lhes um lugar de asilo e de hospitalidade, um corpo artificial ou um limite salutar, em face dos transbordamentos invasivos do gozo. O problema é que os muros são construídos apenas para fazer barreira a um perigo e a comportamentos, que a vídeo-vigilância permitirá observar e estudar. «O isolamento», indica o médico, «não é totalmente punitivo!», «de modo algum! é de terapia intensiva!» – insistência exagerada, de novo, em forma de denegação.
Onde as palavras faltam, é o corpo a corpo e a relação de força cuidadores-cuidados, que prevalecem. Quando Samir chegou à UMD, « o comitê de acolhimento foi impressionante »: seis ajudantes cuidadores, enfermeiros e agentes de segurança, com uniformes brancos, a fim de mostrar-lhe « que a força está do lado deles ». Enquanto Lacan define a clínica pelo real e os diferentes modos de defesa que este engendra, a única formação preparatória. oferecida aos cuidadores, é um estágio prático de Auto-defesa … Aprende-se um método impossível de reagir, para bloquear um paciente deitado, de tal modo que ele se estrangula a « si-mesmo », caso esteja agitado. Esta técnica de corpo teria seu lugar na história dos sistemas de repressão e dos instrumentos de contenção física (argolas de ferro, algemas, camisa-de-força,) descritas por Foucault.
Último objeto segregado
A segurança é a obsessão deles, porque o medo reina em todos os estágios. Simpatizamos com a ajuda-cuidadora que, de início muito motivada, acaba por se quebrar devido ao stress, a insônias e angústia. Acontece que o nível de passagem ao ato é raramente ultrapassado para que se interessem pela questão das causas. Entretanto, é preciso fazer justiça àqueles cuidadores que, «por trás deste desencadeamento de cólera» «entrevêem o imenso sofrimento dos doentes mentais», e nos explicam que, antes de serem agressores, eles são vítimas de violência, de abandono ou de rejeição.
As UMD constituem o último elo na cadeia dos sistemas de segregação, a «última chance» para pacientes que nem mesmo as prisões ou os serviços psiquiátricos hospitalares querem mais. Eles são os resíduos dos resíduos, os objetos a últimos de nossa sociedade.
Nesse momento de desmantelamento do setor de psiquiatria, é de se temer que as UMD constituam o futuro de nossa psiquiatria. A primeira instituição similar que viu a luz do dia, foi a de Villejuif em 1910. Destas existem atualmente uma dezena por toda a França, das quais cinco foram abertas a partir de novembro de 2011, passando de 450 para 650 leitos. Lembremo-nos que esta multiplicação foi iniciada por Nicolas Sarkozy, que lançou um plano de segurança para os hospitais, e a criação dessas novas unidades especiais « para proteger a sociedade desses doentes perigosos », depois de uma notícia de Grenoble.
Foucault e Lacan ao pé do muro
Em Je parle aux murs, Lacan liquida suas contas com os muros do hospital, porque « de qualquer maneira, esses muros, diz ele, eu guardei alguma coisa no coração » (6). Sua proposta é muito clara : « na segregação da doença mental » trata-se do « discurso do mestre » (7). As análises de Lacan e de Foucault se unem neste ponto. Para Foucault, o uso que se faz da psiquiatria na URSS « não é o acoplamento monstruoso de uma função médica e de uma função policial, que nada teriam a ver uma com a outra », « não é um desvio do uso da psiquiatria: é seu projeto fundamental » (8). Lacan não diz outra coisa : os doentes dos quais se ocupa a psiquiatria não são nada mais do que aqueles definidos « pela lei de 30 de junho de 1838, a saber alguém perigoso para si mesmo e para os outros », traçando esse mesmo paralelo com a psiquiatria soviética (9). O que « os especifica como psiquiatras », é o serem servos do perigo, sentinelas especialistas de um perigo geral para a ordem social (10).
Entretanto, o próprio Foucault dirá que manter « discursos duramente esquerdistas, liricamente anti-psiquiátricos, ou meticulosamente históricos, são maneiras imperfeitas para abordar essa lareira incandescente » (11), que é a loucura. Foucault e Lacan dão, cada um a seu modo, a « razão dos muros » (12) – o método genealógico foucaltiano reintroduz a contingência histórica sobre a suposta necessidade dos muros, enquanto Lacan apreende a lógica de sua existência a partir de sua teoria dos quatro discursos. Mas ali onde Foucault acredita que a psicanálise, no fundo, procede da mesma lógica que a psiquiatria, Lacan distingue radicalmente o discurso da psicanálise do da psiquiatria, enquanto este é o discurso do mestre.
Não é indiferente que Lacan tenha o cuidado de lembrar, em algumas páginas endereçadas aos muros, que, segundo a lógica dos discurso analítico, não é certamente o paciente que é o objeto a segregado, mas « o psicanalista [é quem] faz o objeto a em pessoa » (13) e tenta a façanha de se fazer mais rebotalho do que aquele. É com esta única condição que pode ser posta em função uma outra « razão de ser » dos muros e do vazio que eles encerram: para quem sabe ouvir a voz dos internados que repercute sobre os muros, pode vir « uma ideia justa disso que é o objeto a » (14). « O muro, isso pode fazer sempre muroir (espelhar) » (15), se aí nos refletirmos – sem o que, eles serão apenas muros para palavras que ficam à espera, em sofrimento.
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1: O título alude ao artigo de Michel Foucault, «Le pouvoir, une bête magnifique» (1977), Dits et écrits, Paris, Gallimard, Quarto, 2001, p. 368.
2: Bergson H., Le rire. Essai sur la signification du comique [1900], Paris, Payot, 2012. [Nota da Tradutora:Bergson, H. O Riso, Ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.]
3: Lacan J., Je parle aux murs, Paris, Seuil, 2011, p. 91.
4: Ibid., p. 95.
5: Foucault M., Le pouvoir psychiatrique, Cours au Collège de France, 1973-1974, Paris, Gallimard, Seuil, 2003, p. 331.
6: Lacan J., Je parle aux murs, op. cit., p. 108.
7: Ibid., p. 95.
8: Foucault M., « Enfermement, psychiatrie, prison », Dits et écrits, op. cit., p. 334-335.
9: Lacan J., Je parle aux murs, op. cit., p. 106-107.
10: Ibid., p. 107 & Foucault M., «L’asile illimité», Dits et écrits, op. cit., p. 272.
11: Foucault M., «L’extension sociale de la norme», Dits et écrits, op. cit., p. 77.
12: Lacan J., Je parle aux murs, op. cit., p. 94.
13: Ibid., p. 97.
14: Ibid., p. 108.
15: Ibid.
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« Asilo para Idosos » de Sun Yuan & Peng Yu
na Conciergerie
por Michèle Dufour
A Conciergerie acolhe até 6 de janeiro de 2014 uma exposição intitulada « A Triple Tour ». Cinquenta obras da Collection Pinault foram reunidas em torno do tema do confinamento. O tema entra, naturalmente, em ressonância com o lugar, ao mesmo tempo palácio e prisão e o tema das 43ª Journées da ECF recentemente concluídas.
Dois artistas chineses, controversos em seu pais, Sun Yuan & Peng Yu propõem “Old Persons Home”. Treze estátuas de cera, muito realistas, figuram velhos em cadeiras de rodas. Eles são representados, seja dormitando, seja em estado de extrema letargia, numa indiferença exacerbada, num abandono ou num excesso de reserva, um embotamento, um isolamento. As cadeiras em movimento, aqui essencial, como autênticos robôs controlados por sensores que os impedem de esbarrarem ou se chocarem com os obstáculos encontrados, fazem a singularidade desta obra.
O artista nos antecipa para dizer o real do insuportável da morte, do declínio, do sofrimento. « Como todas essas obras, na diversidade de seus formatos e de seus suportes (instalações vídeo, pinturas, esculturas, fotografias …), “Old persons home” envia a todas as formas de encarceramento: penal, político, psicológico e mental, até mesmo afetivo. Elas tratam o assunto de maneira séria ou humorística. Essas obras testemunham, mais uma vez, a capacidade dos artistas para reagir e tomar partido.»1.
Sun Yuan & Peng Yu denunciam o estado de degradação e de solidão no qual vivem numerosos velhos, na indiferença quase geral da sociedade chinesa. Vem daí a astúcia da mobilidade das estátuas entre os visitantes, que capturam e reforçam o olhar dirigido a elas, nesta cena estranhamente viva e nesta situação absurda, para nos interrogar: eles estão vivos e reais? Esses corpos podem nos enganar : “Mas … não são verdadeiros?!” Clamores, estupores, sobressaltos : um choque nos revela que esses personagens que se acreditava reais, em sua forma animada, característica do vivente, são apenas silicone e cera. Esse hiperrealismo permite aos dois artistas chineses concentrar a atenção do espectador intrigado.
Com old persons, os dois artistas querem nos acordar. Assim, no público ao redor, o sorriso se transmite de rosto a rosto, depois de um primeiro sobressalto, ligado à ilusão e seu deciframento. Palavras são trocadas.
Essas marionetes caricaturais se deslocam à mercê dos caprichos dos sensores. Elas vão numa direção; alguém passa diante delas, elas param bruscamente; elas saem na direção oposta, de maneira inesperada: uma aparência de vida desencadeada aleatoriamente ou em função dos passos do visitante. « … um mecanismo que funciona automaticamente. Já não é mais a vida, mas automatismo instalado na vida e imitando a vida », dizia Bergson2. Essas old persons são transformadas em máquinas, na rigidez mecânica, « … onde deveria haver maleabilidade atenta e a flexibilidade viva de uma pessoa»3. Mas onde está o vivente? « Alguma coisa continuará a faltar àquele que for aparelhado sobre uma máquina. Uma máquina completa não faz um sujeito. O que escapa ao sujeito continuará a lhe faltar: suas dúvidas, seus erros, seus fracassos, mas também suas faltas e seus desejos […] Cada um pode configurar um padrão criador em relação ao uso forçado que as tecnologias impõem, além de suas perspectivas promissoras e de suas certezas prescritas.»4
As old persons nos interpelam: ex-militares, religiosos ou ditadores, encontram-se desajeitadamente sentados, caídos, a boca aberta para o céu, aliviados da presença ligada à sua posição social anterior. Contrariamente à situação na qual encarnavam o poder e decidiam sobre o encarceramento de outros, estão reduzidos a seu ser de dejeto. A ironia e o cômico da sorte que lhes toca suscitam no espectador um questionamento: e se esses velhos fossem nossos próprios reflexos? Aquilo que se teme? O mal estar é palpável. Cada qual é despachado para a parte obscura de si mesmo, tão difícil de reconhecer e aceitar, à sua inquietante estranheza e à do outro.
Os dois artistas se levantam contra a condição imposta aos homens e às mulheres, esse encarceramento ao qual estão condenados na sociedade chinesa moderna, na qual a pressão política e social torna-se cada vez mais pesada sobre os cidadãos.
Na China, a obra provocou escândalo. Tradicionalmente, com efeito, a velhice é vista como a idade mais respeitável da vida, a idade na qual se tem o conhecimento mais perfeito do mundo e de seu corpo. A velhice lá é delimitada como o mais belo período da vida. Ora, segundo Sun Yuan & Peng Yu, esta visão idealizada está muito longe da realidade. Eles quiseram desconstruir a imagem e mostrar o real, o real da condição das pessoas idosas. Na China sim, mas alhures também … nenhuma das estátuas representa precisamente um indivíduo de origem asiática, sem dúvida para evitar uma contestação muito pesada, e uma possível censura.
Essa obra faz eco, admiravelmente, com aquelas em torno da Conciergerie: a velhice como estado de aprisionamento final, mesmo sendo numa casa de repouso -“Old persons home”– bem como na vida de todos os dias. Em referência a M. Foucault, a sala onde eles se deslocam evoca a prisão. Suas celas são suas cadeiras e se erigem entre eles como muros: as limitações físicas revelam seus limites, exacerbam sua solidão, sua decadência. Casas de repouso e cadeiras de rodas constituem um estreitamento da vida: a lacuna se abre entre os visitantes, com seus movimentos livres e os « prisoneiros » condenados a um deslocamento mecânico sobre o qual não têm qualquer controle. De fato, essas old persons já estão mortas antes mesmo de sê-lo: a vida já lhes foi tirada. A disciplina implacável das funções que ocupavam lhes foi favorável? Militares, religiosos, altos dirigentes, … todas essas funções e seu rigor acabaram por restringir as personalidades individuais, por desumanizá-las pela enorme redução funcional de seus corpos? «Uma « anatomia política », que também é uma « mecânica do poder », está nascendo; ela define como se pode tomar o corpo dos outros, não simplesmente para que eles façam o que se deseja, mas para que eles operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se determine. Assim, « a disciplina fabrica desse modo corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. »5
Essas estátuas de cera, vestidas com uniformes ou costumes, figuras do poder (político, religioso, militar, médico) mostram, graças ao hiperrealismo e à ironia trágica e cômica, o efêmero dessas situações. Elas denunciam, ao cativar os visitantes, um mundo onde o encarceramento físico se junta ao encarceramento psicológico. Ausência de palavras, de fala, de desejo: como tornar-se humano se o encontro é impossível? O automaton do encontro no coração da experiência nos lembra que lidamos com um real que se furta, é nisso que a descoberta dessa obra prende a nossa sensibilidade. « O humano está […] sempre além do programa, marcado pela unicidade, a diferença, a descontinuidade, o imprevisível, a mudança permanente. »6
A obra de Sun Yuan & Peng Yu presentifica uma metáfora artística da montagem pulsional freudiana na qual o silêncio da pulsão de morte reina como mestre, caso se lhe dê livre curso. Para contrariar esta inclinação, fica a referência à ética da psicanálise, aquela que « implica propriamente falando, a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida ». Lacan precisa que « a relação da ação com o desejo que a habita na dimensão trágica se exerce no sentido de um triunfo da morte … triunfo do ser-para-a-morte … »7
Rápido para a Conciergerie onde são esperados por essa exposição tão particular e comovente, muito próxima de nossa atualidade.
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1- cf. catálogo de apresentação da exposição
2- 3- Bergson H., Le Rire, Essai sur la signification du comique, Editions PUF, p. 25 et p. 8, [Nota da Tradutora:Bergson, H. O Riso, Ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987, p. 25 e 15.]
4 – Ansermet F., revue « Mental » n° 30 – Nouveaux appareillages du corps, p. 22.
5 – Foucault M., Surveiller et punir, chapitre « les corps dociles », Editions TEL – Gallimard, p 162.
6 – Ansermet F., ibidem, p. 24.
7 – Lacan J., Séminaire VII, L’éthique de la psychanalyse, Editions du Seuil, p. 361. [Nota da Tradutora: Lacan, O Seminário 7. A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,. 1997, p. 376.]
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– Contos de Natal: ADN, selfie –
Do sexo dos anjos à lua
ou do saber ao ter
por Ariane Giacobino *
De modo recorrente nesse período do ano, os médicos pensam nos enigmas e nos segredos dos corpos humanos ou divinos: no sexo dos anjos, na imaculada concepção, na perseverança dos Reis Magos. E os geneticistas, eles, no que pensam? No DNA de Adão e Eva, saído das células somáticas de Adão, em sua consaguinidade e filiação ao Espírito Santo, no RNA que precedeu o DNA nas primeiras formas da vida terrestre. E mais recentemente, nas questões das patentes sobre os vivos, sobre as porções do DNA humano decodificado, sobre as mutações de determinados genes, como BRCA1 e BRCA2, e até mesmo na descoberta do DNA fetal em circulação no sangue materno humano, fora da gravidez, objeto de uma última patente.
Saber e ter interessam à ciência, à pesquisa e aos pesquisadores. Um negócio estranho, além da posse da vida e de seus derivados, ocupa esse final de ano: a posse do território lunar. A revista Science consagrou a isso um artigo apaixonante sobre « A cooperação internacional sobre a herança lunar »1. O homem foi na lua, em particular o homem americano: são as missões Apollo e seus seis sítios de pouso histórico que estão em questão, assim como o material deixado no local pelas missões americanas, mas também, ulteriormente, soviéticas. O contexto atual é o seguinte: a China desenvolve um programa ativo de exploração lunar e prevê, para os próximos anos, missões que poderiam alunissar nas proximidades dos sítios históricos Apollo. O risco: destruir os traços de um passado glorioso, dos primeiros passos do homem nesse planeta (*satélite, NT). Um patrimônio, uma lembrança com gosto de conquista, e traços.
Dois anos antes do primeiro passo na lua, « pequeno para o homem, mas grande para a humanidade », o United Nations Outer Space Treaty (OST) foi ratificado por 126 países, entre os quais os USA e a Rússia, interditando a apropriação da lua ou de outros corpos celestes por nações ou por indivíduos.
Levado ao Congresso Americano em julho de 2013, o Apollo Lunar Landing Legacy Act propõe, paradoxalmente, designar os sítios de alunissagem Apollo e o material (entre os quais uma bandeira) deixado por essas missões como Park National. Ora, os National Parks pertencem a uma jurisdição dependente do Departamento americano do interior. Trata-se, portanto, do controle de um pais de uma parte da lua. Proteção ou possessão? Um debate está aberto, e felizmente ainda não encerrado: se a lua é de qualquer um, pode-se, ao contrário, considerar os traços deixados como pertencentes a alguém (um astronauta, um diretor de missão), até mesmo de um pais? Se esses traços e esse Parque Nacional pudessem um dia – quando as missões comerciais ou de lazer forem rotineiras – tornar-se um local turístico, a quem beneficiará? E a China teria então direito a seu sítio também, a seu Parque Nacional e aos rendimentos deste ?
E a respeito de Marte então, não teve, a aterrizagem de objetos que se movimentam, portanto, traços? Traços de robôs mas não humanos, seriam comparáveis?
Tentemos refletir.
Se as pessoas que vêm festejar o novo ano são livres e vocês não as possuem, o DNA que elas poderiam deixar sob a forma de traços, em suas casas, pertenceriam a vocês? Vocês podem fazer disto o que quiserem? Empurrando ainda este raciocínio, pode-se também colocar a questão: o traço mnésico de um outro que vocês poderiam ter como bem comum, o presente de Natal de um outro, significa que o presente pertence a vocês? O traço está em sua memória, este está em sua casa.
Em resumo, no final deste ano, seria preciso talvez redefinir o saber e o ter em questão, e através desse fato, a si mesmo também. É-se verdadeiramente si? Nosso DNA é mesmo nosso ou de nossos descendentes a quem o transmitimos ?
«Nossa herança não é precedida de qualquer testamento», escreveu René Char, como citou Hannah Arendt.
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1 Hertzfeld H. R., Pace S. N., « International Cooperation on Human Lunar Heritage », Science, 29 de novembro de 2013.
* Ariane Giacobino, pesquisadora em epigenética – co-autora com François Ansermet de Autisme. À chacun son génome (Navarin/Le Champ freudien, 2012) – foi convidada do programa CQFD da Radio Télévision Suisse sobre o tema « Déterminisme et liberté » sexta-feira, 20 de dezembro. Ouçam: http://www.rts.ch/audio/la-1ere/programmes/cqfd/5433287-rencontre-avec-ariane-giacobino-20-12-2013.html?p=0
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Pequena vacilação em Soweto
por Dominique-Paul Rousseau
A fotografia foi tirada terça-feira, 10 de dezembro de 2013 em Soweto, local da homenagem internacional a Nelson Mandela, na presença de uma centena de chefes de Estado, ou de governo. Esta imagem, pequeno « tropeço » na digna cerimônia, nos ensina algo sobre o Pai no XXIº século.
Identifica-se imediatamente as duas cabeças masculinas, à esquerda David Cameron, primeiro ministro do Reino Unido, à direita Barack Obama, presidente dos Estados-Unidos da América. Os franceses, segundo o diário dinamarquês Politiken, demoraram duas horas para saber quem era o personagem feminino do centro que « selfie » (tira um auto-retrato com o celular). Trata-se de Helle Thorning-Schmidt, primeira ministra dinamarquesa social-democrata, levada ao poder pelas eleições legislativas de 2011.
A ficção (Borgen (1), série televisiva na qual uma mulher toma o poder) precede a realidade política do reino; Helle Thorning-Schmidt é o primeiro chefe de estado do governo mulher de toda a história da Dinamarca. A foto foi tirada para nos lembrar. Com efeito, é um verdadeiro vaudeville: Helle Thorning-Schmidt no papel da « amante », Cameron e Obama os « maridos », e Michelle Obama « a mulher ». O bom humor reina do lado da « amante » e dos maridos maliciosos, enquanto a esposa negligenciada permanece serena e digna.
Seria preciso lembrar que estamos numa celebração planetária para homenagear « uma personalidade mundialmente acatada sobre os direitos do homem e […] saudado como o pai [eu sublinho] de uma Africa do Sul multiracial e plenamente democrática », diz Wikipédia? Não no momento de um « selfier » ! Alguns qualificaram a atitude de Thorning-Shmidt como incorreta.
A cronista Andrea Peyser do New York Post intitula: « Flirty Obama owes us an apology » (2) (« O galanteador Obama nos deve um pedido de desculpas »). O Americano, puritano e cínico, feliz com a desgraça alheia: o presidente comportou-se « como um garoto imaturo devastado por seus hormônios, a caminho de um bar de strip-tease » (3) ; « O presidente flerta, gargalha, murmura como um menino rebelde, e transformou-se num idiota ao ver a Primeira ministra da Dinamarca, mulher voluptuosa e cheia de curvas, casada, Helle Thorning-Shmidt » (4) ; « A ardente gata dinamarquesa puxa a saia para expor suas longas pernas escandinavas, cobertas por nada mais do que meias pretas » (5) ; « garota sedutora que não sabe se cobrir e manter-se corretamente » (6).
A isso Ditte Giese, a jornalista dinamarquesa de Politiken (7), luterana e pragmática da cultura, lhe responde: uma mulher casada não deve falar com nenhum outro homem que não o seu marido? Se uma saia e meias pretas são indecentes, seria necessário que Helle vestisse uma burka? E conclui pelo absurdo e irônico eufemismo: « As mulheres dirigentes não podem ter pernas. Sobretudo as escandinavas. Elas não devem tirar fotos com celular. Elas não podem se distrair. Elas não podem falar com homens cujas esposas estejam nas proximidades » (8).
No Século XX, Lacan afirmou que o Pai Simbólico só existe como morto (9). Foi por esta razão. aliás. que Freud criou um mito: Totem et Tabu.
Depois do Holocausto, a segunda parte do século XX só encontrou com muito esforço seus heróis e seus «grandes homens». Nelson Mandela, por seu extraordinário modo de não ceder em seu desejo de quebrar o apartheid, encarna ainda alguma coisa desse Pai Simbólico.
O que indica esse «selfie (auto-retrato com celular)», não é uma falta de respeito ou uma inconveniência de parte dos poderosos de nosso mundo hiper-moderno. Mas demonstra sobretudo que, no século XXI, mesmo morto, o Pai Simbólico não mais existe.
1 : Borgen, une femme au pouvoir, uma série de Adam Price, difundida em Arte com sucesso desde 2012, Arte Editions
2 : Andrea Peyser, « Flirty Obama owes us an apology », New York Post, 12 de dezembro de 2013.
3 : « like a hormone-ravaged frat boy on a road trip to a strip bar »
4 : « The president flirted, giggled, whispered like a recalcitrant child and made a damn fool of himself at first sight of Denmark’s voluptuously curvy and married prime minister, Helle Thorning-Schmidt »
5 : « The Danish hellcat hiked up her skirt to expose long Scandinavian legs covered by nothing more substantial than sheer black stockings »
6 : « a blonde bimbo who hadn’t the sense to cover up and keep it clean »
7 : Ditte Giese, « Således slutshames en statsminister », Politiken.dk, 16 décembre 2013.
8 : « Kvindelige statsledere må ikke have ben. Især ikke skandinaviske. De må ikke tage selfies. De må ikke hygge sig. De må ikke snakke med mænd, der har deres koner med »
9 : Cf . Lacan J., Le Séminaire, texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Seuil, livro IV : « (…) o pai simbólico é, falando-se estritamente falando, impensável », p. 210 ; livro VII : «A única função do pai, em nossa articulação, é a de ser um mito, sempre e unicamente o Nome-do-Pai, quer dizer, nada mais do que o pai morto (…)», p. 356-357 ; livro XVII: «(…) o pai, desde sua origem, é castrado», p. 115.
Lacan Cotidiano
publicado por navarin éditeur
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