Copa do Mundo trouxeram à tona um modo bem brasileiro de lidar com os próprios
problemas: atribuí-los a terceiros. Jorge Forbes, em longa entrevista – três encontros
em seu consultório – conversou com a reportagem de VEJA sobre as transformações
do papel de governantes, da polícia e até dos sentimentos num mundo globalizado
em que ainda nos debatemos para tentar compreender (*)
Geni somos todos nós – Entrevista de Jorge Forbes para a revista VEJA*
Há uma sucessão de greves e protestos em várias cidades
brasileiras. Ao mesmo tempo, crimes bárbaros tornaram-se mais frequentes. O que
está havendo?*
O sistema inteiro está doente, berrando e produzindo excrescências. Sejam os
casos horrorosos de linchamento ou greves feitas ao deus-dará, em que há o
minigrupo, o subgrupo, o contra grupo, sem nenhum tipo de legitimidade dentro
das normas estabelecidas pela sociedade civil e que param cidades na maior
tranquilidade. Nossa vida virou um bingo. Saímos de manhã e não sabemos se
seremos escolhidos. Estamos num momento em que as pessoas estão indiferentes.
Quando uma pessoa quer roubar um celular e para isso decide matar sua vítima,
não mata por raiva, mas por indiferença. Não há mais uma competição entre o
bandido e o não bandido, não existe mais essa divisão. O que existem são mundos
que não se tocam, mundos à parte, mundos que o futebol não une mais. Nem o
apelo da Copa do Mundo está funcionando. Sob a ditadura, o povo brasileiro
uniu-se em torno do futebol, mas agora, sob um governo democrático, não se une.
Estamos em crise?
Sem dúvida. Sigmund Freud [1856-1939] dizia que um analista não deve atender
pessoas em crise, porque na crise não é possível analisar ninguém, mas apenas
remediar, no sentido de tapar buracos. Só que quando todos os dias surgem novos
fatores de crise, há a premência de uma resposta imediata. Não será possível
evitar medidas do tipo tapa-buracos, mas o governo tem de adequar-se e ser
muito mais rápido, flexível e enérgico nas suas intervenções. Os líderes
brasileiros hoje são todos de um tempo ultrapassado. Lideranças atuais devem
tocar na vergonha de cada um, não no orgulho. Na vergonha de dizer “eu sou
brasileiro e este outro brasileiro linchou esta mulher”, para lembrar o recente
caso do linchamento daquela moça no Guarujá, entre tantos outros crimes
horrendos que ocorrem. Hoje, o líder tem de fazer com que cada um se engate nas
suas escolhas, e não que todos escolham a mesma coisa. Falta uma liderança
capaz de tocar na vergonha de cada um, e não no orgulho. Se não nos envergonharmos,
continuaremos dizendo “não sou eu, é o outro”. Comumente afirmamos que aquele
brasileiro que faz coisas horrorosas, que estoura prazo, que não é simpático é
o outro, e nunca nós mesmos. Temos de, por exemplo, parar com essa brincadeira
de dizer “Imagine na Copa”. Imagine quem? O brasileiro continua numa posição
externa ao seu próprio país e à sua gente. É uma separação irresponsável. Temos
de lançar o movimento do “Eu sim”. Senão vai haver um seccionamento cada vez
maior da sociedade e daqui a pouco seremos 200 milhões de grupos do eu sozinho.
Por que essa coisa do Brasil Geni? O brasileiro faz do país sua Geni e com isso
fica sem cidadania. Geni somos todos nós.
Nesse cenário, que papel cabe aos governantes?
Os países costumavam ser liderados por grandes homens, De Gaulle, Churchill,
Getúlio Vargas. Eram grandes personagens, que concentravam neles a
representação do país. Quando Charles de Gaulle morreu, ficou célebre a frase
“A França ficou viúva”. Diga-me se hoje a França poderia ficar viúva do
François Hollande. Se amanhã Barack Obama morrer, não será possível dizer que a
América ficou viúva – mas com Keneddy era possível. Hoje, pode até haver a
pessoa, mas não há o trono para ela ocupar. Então acho que os líderes atuais
deveriam primeiro parar de consultar o marqueteiro que os elegeu, mas que não
os mantêm no poder. O marketing da eleição é uma esperança, o do governo é uma
presença. Uma coisa é esperar a viagem e a outra é estar na viagem. Ninguém
viaja pensando na próxima viagem. Precisamos de um governo já, estamos sem
governo. É preciso mudar. Não estou dizendo depor, estou dizendo mudar. O
governo de um país moderno não governa um país que é pós-moderno.
Quem o senhor apontaria como exemplo de liderança?
Vou citar alguém que não vejo como um modelo propriamente, mas como um novo
tipo de líder, que é o presidente do Uruguai José Mujica. Sua postura leva cada
cidadão a se perguntar sobre qual sua cota de responsabilidade no laço social.
Independentemente da minha apreciação ou não da sua política, é uma nova forma
de liderança.
E qual a função da polícia nesse contexto de crise?
A população espera da polícia algo que ela não pode dar. Pedimos a proteção
policial e, quando ela entra em cena, é criticada pela forma como nos protege.
Nem nossos pais conseguiram nos proteger completamente, por que a polícia
conseguiria? Se insistirmos nas coisas como estão, a população vai continuar
sendo infantilizada, e a polícia massacrada. A proteção do homem não pode ser
feita externamente. Essa obrigação tem que ser dada a cada um. O Bope e a Rota
[polícias de elite do Rio e de São Paulo, respectivamente] reiteram a figura
arcaica do pai protetor, aquele que vai resolver no meu lugar. Não vai. Não há
contingente policial que vá dá conta da barbárie atual.
Há uma sensação de complexidade crescente. Como a
psicanálise explica isso?
Cunhei um termo para explicar isso, que é o homem desbussolado, ou seja, sem
norte. Vivemos a pós-modernidade, que é muito diferente da modernidade. Antes
havia uma sociedade piramidal. Na família, as pessoas se orientavam pelo pai.
Nas empresas, pelo chefe. Na sociedade civil, pela pátria. Esses três elementos
foram deslocados na passagem dessas duas eras, que é marcada pela globalização.
O pai não representa mais o caminho disciplinar a ser seguido. Nas empresas, há
líderes de projeto que se alternam conforme a tarefa. Na sociedade civil, os
mercados comuns sacudiram a noção de pátria. Saímos do vertical e entramos num
mundo horizontal, em rede. Isso está acontecendo no mundo todo. O curioso é
que, entre os povos ocidentais, quem melhor tem suportado essa transição é o
brasileiro.
Por quê?
Sérgio Buarque de Holanda já dizia que a raiz do Brasil é a cordialidade. Nós
damos crédito à amizade, por exemplo. Até para brigar. No Brasil, você só briga
com os seus amigos, senão fica indiferente. E o grande afeto do mundo
horizontal é a amizade. Nós não tememos a exposição nas redes sociais, não
achamos que porque alguém sabe quem são meus pais eu vou ter minha intimidade
invadida e me sentir péssimo. O brasileiro não se sente péssimo, ele acha
graça. Sabe que mesmo que o outro saiba tudo isso sobre ele, na verdade não
sabe nada dele. Ele pode se deixar viver a pós-modernidade mais facilmente.
Como fica a cordialidade quando há tantos crimes horrendos
ocorrendo no país?
Ser cordial não é ser bonzinho. É não ser formal. Pense no uso que fazemos dos
diminutivos: “Se eu me atrasar um pouquinho, você vai tomando um chopinho e
comendo alguma coisinha ou então você me dá uma ligadinha” (risos). É a
maneira de fazer tudo mais acessível, menor, próximo, uma vida que caiba na
palma da mão. O que eu quero extrair dessa cordialidade não é a marcação que se
faz de que somos legais, e sim dizer que este é o cimento do laço social
brasileiro. Até mesmo a facção criminosa PCC é cordial. É uma fratria.
Experimente trair os princípios dessa fratria.
Quanto aos crimes, são ações de pessoas doentes?
Esses fatos todos mostram que o ser humano é muito perigoso. Somos muito
esquisitos e muito perigosos a nós mesmos. Não há mais explicações de causa e
efeito. Mas já devíamos saber disso, afinal o filósofo Friedrich Nietzsche
[1844-1900] explicou isso em 1870. Freud acompanhou esse pensamento, mas em
dado momento pôs o pé no freio. O psicanalista Jacques Lacan [1901-1981] acelerou-o,
dizendo que o real teria uma posição de supremacia sobre o simbólico
imaginário. Bom, estamos nesse momento. E o real não é exatamente a realidade,
mas aquilo que não tem nome nem nunca terá. O futuro não é uma projeção do
presente, como foi para as gerações anteriores, o futuro é uma invenção do
presente. Houve uma flexibilização da disciplina de modo geral e ainda não há
uma resposta àquilo que foi desmontado. Só que, motivados pela angústia de não
saber o que fazer, utilizamos respostas que não servem mais. E o problema
continua e estoura de maneiras assustadoras: meninas que cortam os braços, pais
que matam os filhos, filhos que matam os pais, sempre nessa característica de
curto-circuito, como se fossem atos cometidos durante ataques epiléticos. Nesse
sentido, todo mundo precisa saber que é epilético. Em vez de dizer “você é e eu
não sou”, saiba que você também é e todos nós somos. E, portanto, todos
deveriam se precaver porque também são capazes de fazer. As ameaças têm de ser
tratadas de maneira mais séria. Se em vez de tentarmos descobrir qual a doença
que levou fulano a fazer tal coisa pensarmos que não há uma doença que explique
aquilo, as pessoas aumentarão sua responsabilidade frente a todas as coisas.
Mas as pessoas parecem seguir o caminho oposto, de tentar
desvencilhar-se cada vez mais das responsabilidades.
Sim, das responsabilidades padronizadas, da norma e do código. Mas há um tipo
de responsabilidade da qual ninguém escapa. Veja o amor, que passou por uma
mudança muito grande. Antes, o amor era intermediado: estou com você porque
prometi na igreja, ou prometi para o seu pai, ou por causa dos nossos filhos,
enfim, sempre uma terceira razão. O que existe hoje é um amor direto: estou com
você porque eu quero estar com você. Esse novo amor, não explicado, direto, é o
principal elemento que vai legitimar um novo laço social que vai levar a
modificações importantes tais como racismo. A nova geração é muito mais
responsável nesse sentido do que as anteriores -embora as anteriores fossem muito
mais responsáveis sob o ponto de vista do cumprimento das normas. A questão é
que as pessoas precisam ter uma responsabilidade maior frente ao seu desejo. Na
medida em que diminuímos a expectativa de explicar o amor, aumentamos a
responsabilidade frente a esse sentimento. É um novo amor. A globalização
chegou, criou uma bagunça monumental e estamos correndo atrás para tentar
ocupar esse novo mundo. Isso significa rever todos os nossos critérios: de
amor, de educação, de justiça. Não se trata de reformar o Judiciário, e sim de
reinventá-lo. A psicanálise foi reinventada.
Como assim?
Antigamente, o paciente vinha se tratar para tentar saber mais de si, para ter
uma ação mais garantida, fazer menos besteiras. Só que a subjetividade da
pós-modernidade é diferente. Hoje, eu tenho de dar condições ao meu analisando
para que ele tome decisões baseadas no não saber, e não na expectativa de saber
mais. Vou mexer no botão da angústia e transformar a angústia paralisante em
angústia criativa, como se transformasse o colesterol ruim em bom. Mas a
angústia não deixa de existir.
O senhor diz que o mundo olha para o brasileiro como
modelo de pós-modernidade. O que temos para mostrar?
Todos estão apavorados, numa sensação de salve-se quem puder. Pais me procuram
dizendo que não entendem seus filhos, pessoas de cinquenta anos sofrem revezes
profissionais e não sabem mais o que fazer, casais querem ter filhos, mas não
sabem quando nem como… E o brasileiro é alguém que historicamente sabe
conviver com a variação de padrão. O tal do jeitinho significa que por meio da
amizade é possível encontrar uma outra forma de fazer as coisas. Isso era
malvisto até pouco tempo atrás, mas hoje tornou-se fundamental. Suponha que
você trabalhe em uma empresa e fique sabendo de uma vaga. Há dez anos você
diria: “Olha, conheço um cara incrível para essa vaga e estou falando isso não
é porque ele é meu amigo”. Hoje você diz: “E além de tudo o cara é meu amigo”.
A amizade virou uma chancela.
Isso quer dizer que a meritocracia ficou em segundo plano?
Não exatamente. O mérito é o óbvio, é genérico. A amizade é um algo a mais que
só o afeto dá. Entre duas pessoas de nota oito, eu vou contratar o amigo do
fulano. E o cara que contratou o seu amigo sabe que você será a primeira a
falar caso ele pise na bola. Sabe aquela coisa “Vê se te manca, eu te trouxe
nesta festa, não vá tomar porre”? Isso conta muito.
As pessoas se vigiam umas às outras?
Não, as pessoas não se vigiam, elas se necessitam. Vigiar é seguir um conjunto
de normas do que é certo e do que é errado, algo de uma sociedade moralista. O
que eu entendo é que temos necessidade uns dos outros porque o ser humano se
inventa a partir do contato com o outro. “Eu necessito do outro para saber de
mim”. Por exemplo, antes mesmo de nascermos, nossos pais já haviam formado uma
imagem a nosso respeito. Quando crescemos um pouco, tornamo-nos escravos da
expectativa do outro, que tem origem nessa expectativa de nossos pais. Será que
fui bem? Será que deu certo? Será que estou legal? Você me ama? Cheguei na hora
certa? Não estou incomodando? Você está bem? São infinitas formas que nós temos
de saber se estamos correspondendo ao que foi esperado de nós. O problema é que
a gente nunca corresponde, e não só porque não sabemos corresponder, mas também
porque aquele que espera algo da gente também não sabe bem o que quer. No
processo de análise, descobre-se que o outro de quem você ficou escravo
tentando dar uma resposta não sabe de você. Isso significa que você não pode
mais pedir desculpas e, portanto, tem de se responsabilizar pelos seus atos.
Isso deve ser libertador.
Não é. Porque no dia em que você descobre isso, percebe que está sozinho.
Quando a gente descobre que o outro não sabe nada a nosso respeito, não podemos
mais pedir desculpas. Temos, portanto, de nos responsabilizar por nossos atos,
não estamos mais em função do outro. Há um paradoxo que ilustra isso. Quando
alguém que eu amo está longe, então não me falta nada, porque eu preencho o que
falta com a fantasia. Por isso os homens se fascinam com o olhar feminino vago.
Ele permite que exista um encontro com aquilo que lhes falta. Por outro lado,
quando estamos junto de quem amamos é quando mais notamos esse algo que nos
falta. E sempre irá faltar. É o que Roberto Carlos canta em Outra Vez:
“Você é a saudade que eu gosto de ter”.
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(*) Entrevista – por Mariana Barros – publicada no site da Revista
VEJA em 11/06/2014
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