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Novidades da Índia,
Kolkata, fim de outubro : os últimos fogos de artifícios e foguetes das festas de Diwali ressoam, acompanham até o rio as efíges de Kali Durga, a deusa onipresente dessa megalópole de Bengala, cujo nome ressoa menos ricamente em nossos ouvidos que Calcutá (os nacionalistas que passaram por lá rebatizaram as cidades nomeadas pelo colonizador).
É em Kolkata que Santanu Biswas pratica a psicanálise, primeiro e por enquanto o único analista lacaniano (1) da Índia (1,2 milhões de habitantes). Diretor do Departamento de literatura inglesa da Jadavpur University, ele conduz há quinze anos um curso intitulado « Literatura e psicanálise », em que estão inscritos sessenta estudantes master, nos quais ele insufla sua paixão por Lacan e a psicanálise.
« Em que uma psicanálise não é uma psicoterapia ? » foi o tema escolhido para atender ao seu convite para eu falar com seus alunos. Bom humor e questões pertinentes fizeram parte do encontro.
Desinibidos, eles perguntaram sobre a posição de um analista lacaniano na depressão, na perversão, no autismo, a polissemia dos significantes, mas também a psicanálise no contexto cultural indiano, em que o Nome do Pai e a estrutura familiar (a joint family) ainda estão pouco envolvidos pelo discurso capitalista : « Qual função vocês atribuem à religião ? Por que Lacan dizia que os católicos não eram analisáveis ? Como receber um adolescente se sua família opõe-se a isso ? »
Esses estudantes que, após um trimestre de curso, já ouviram falar de RSI, dos cartéis, dos CPCT…, questionaram também o enquadramento analítico : « Os pacientes psicóticos passam ao divã ? Há o risco da transferência conduzir o analista a tornar-se o melhor amigo de seu paciente ? É possível analisar-se com um analista que não faz parte de sua cultura ? »
A sequência foi concluída com uma alegre manipulação de um nó borromeano que foi da viagem, sob a forma de uma obra de Philip Metz. Uma estudante percebeu que aquilo poderia ser um brinquedo muito apreciado por crianças…
Os estudantes mais motivados sem dúvida integrarão o Lacanian Study Circle que S. Biswas instalou há alguns anos para seus Senior students. No quadro de dois ateliês dedicados ao conceito de enodamento sinthomático, a apresentação de um caso clínico de psicose ordinária foi sempre seguida de uma longa discussão com os sete estudantes presentes, reunidos via Skype com dois outros, um situado em Nova Iorque, o outro em Sydney. As questões e as elaborações que eles puderam avançar em ambos os casos não foram indicados para a Seção clínica. Mas, além dos dois estrangeiros nenhum deles tem clínica, nem estão em análise ; alguns dizem desejá-lo, mas eles enfrentam a falta de praticantes.
Lacan, Santa Teresa, e os outros
Em Nova Deli, Savita Singh, professor de teoria política e poeta renomado, nos havia convidado à sua escola de Gender and Developement Studies da Indira Gandhi National University (IGNOU) para falar de « Lacan e a sexualidade feminina: uma abordagem clínica». Enquanto Lacan é na India muitas vezes tomado por um linguista ou um filósofo pertencente ao grupo da French Theory e ignorado como praticante da psicanálise (uma situação encontrada também em outros países), importava dar ênfase ao Lacan psicanalista e sua clínica.
Após a conferência houve uma discussão com S. Singh e suas convidadas (uma socióloga e Anu Aneja, professora de literatura comparada, francófona e tradutora de Hélène Cixous em indi), e em seguida com os ouvintes na sala. Não faltaram questões sobre o Outro gozo, sobre as formas modernas da família (acentuando que para nós mãe e pai são inicialmente funções), sobre a relação da psicanálise com a norma, o acolhimento dado aos gays e lésbicas assim como à histeria (cujo louvor era necessário). Também foram questionadas as relações da linguagens com o inconsciente, a existência de uma divisão entre real, simbólico e imaginário em função do gênero, a influência da psicanálise sobre o grupo, a diferença neurose/psicose (extraordinária e ordinária), a análise como prática de luxo, a escritura e a sublimação artística.
Bem, evidentemente, os professores do departamento de Gender Studies (incluindo um homem) não pararam de comentar e de me interrogar também, sobre as relações de Lacan com as feministas, sobre as críticas feitas à psicanálise por Judith Butler, sobre as posições de Hélène Cixous, Julia Kristeva, Michel Foucault…
Meus interlocutores, muito interessados em ouvir falar de Lacan e da psicanálise, pareceram agradavelmente surpresos por descobrir a lógica lacaniana da sexuação, pela qual cada mulher é uma exceção e não está não-toda orientada para o falo. A ausência de experiência da cura e de toda prática clínica os conduz a privilegiar as elaborações teóricas e as lutas políticas, em um país onde o maltrato das mulheres (estupro, violências feitas às noras recalcitrantes pela família de seu marido), muito tempo relegadas aos faits divers, tornaram-se recentemente uma questão política, especialmente desde a morte de uma estudante estuprada em um ônibus em Deli.
Conferência e debate foram filmadas, diante de uma decoração associando fotografias de Freud e Lacan, separadas pelo êxtase de Santa Teresa de Bernini (eu havia mostrado a capa de Mais, Ainda)e fotos das figuras feministas mais conhecidas dos anos 1980. Os vídeos estarão disponíveis no catálogo da IGNOU, universidade criada há trinta anos, que se denomina « People’s Univerity », sendo essencialmente dedicada ao ensino à distância em várias disciplinas, por meio de vídeos (mais de 3 milhões de estudantes inscritos).
Nas duas cidades, e no meio universitário, se confirma a existência de um interesse pela psicanálise lacaniana e, repetiram-me, uma forte demanda de análise, mas sem oferta. Os poucos analistas existentes, médicos, parecem exercer o que Lacan chamava «uma psicanálise de conforto, de salão […]uma prática restrita ao tratamento do comportamento » (2), e seriam pouco considerados.
Resta a exceção de Kolkata, seu analista lacaniano, que
tem o projeto de organizar um colóquio sobre o simtoma, e seus
estudantes entusiastas.
tem o projeto de organizar um colóquio sobre o simtoma, e seus
estudantes entusiastas.
Notas:
1: S. Biswas publicado The literary Lacan : From Literature to ‘Lituraterre’ and Beyond, Seagull Books, 2013. Ele havia organizado um colóquio homônimo, em Kolkata em 2007, que J.-P. Klotz relatou em Le Nouvel Ane n°8. Ele retraçou seu « Parcours avec Lacan » em Lacan Quotidieno n°4.
2 : « 1974 Jacques Lacan. Entrevista à revista Panorama », La Cause du désir n° 88, ECF-Navarin, novembro 2014, p. 167.
A psicanálise à prova de guerra, por Philippe Hellebois
Não
lhe sendo estranho nada de humano, a psicanálise é evidentemente
afetada pela guerra. Nossa comunidade de trabalho está muito ocupada,
especialmente nos últimos anos quando cartéis, colóquios, publicações
pulularam(1). Marie-Hélène Brousse recentemente publicou um volume
reunindo em torno de trinta trabalhos, La psychanalyse à l‘épreuve de la guerre (2).Quer dizer que nele se aprende um monte de coisas.
lhe sendo estranho nada de humano, a psicanálise é evidentemente
afetada pela guerra. Nossa comunidade de trabalho está muito ocupada,
especialmente nos últimos anos quando cartéis, colóquios, publicações
pulularam(1). Marie-Hélène Brousse recentemente publicou um volume
reunindo em torno de trinta trabalhos, La psychanalyse à l‘épreuve de la guerre (2).Quer dizer que nele se aprende um monte de coisas.
A psicanálise nasceu no século de todas as guerras, porque foi também o da ciência triunfante. Nele, a arte da guerra foi levada a uma intensidade incomparável, a tal ponto que conhecemos, e alguns viveram, uma nova guerra de trinta anos, de 1914 a 1945, seguida logo depois de numerosas réplicas, tanto que a história desse século pode se reduzir a uma longa litania de batalhas, umas mais mortais que as outras. E o que dizer do Shoah ? Este século inventou uma guerra nova, ou seja em sua forma, a guerra dita fria que se sabe passa por um vigor renovado atualmente. O século seguinte, o XXI, não ficará, evidentemente, devendo, visto que as formas clássicas da guerra parecem ter sido substituídas por uma violência generalizada, em que criminalidade e terrorismo se misturam.
Ou seja, a guerra não se desenrola somente nos campos de batalha, durante períodos mais ou menos próximos de eclipse da civilização. Ela acontece em toda a parte e o tempo todo, e pode se dizer infinitamente. Com efeito, este ser bizarro que é o falasser parece estruturalmente em guerra : ele nasce, vive e morre em guerra. A guerra, que Lacan qualifica também de « comércio interhumano »(3), pode ser dito em mais de um sentido : aquilo que o soldado faz e que sofrem as populações civis, mas mais amplamente ainda, aquela entre o homem e sua mulher, aquela do sujeito, ou seja infans, com ele mesmo… Reconhece-se aí as diversas figuras da alteridade – o inimigo, a não-relação sexual, a pulsão, até mesmo o estádio do espelho – com os quais não podemos estar de outra forma senão em conflito, até que um tratado de paz mais ou menos capenga seja concluído sob a forma do sintoma.
A guerra excede portanto, o que se pode dizer dela, é um fato que se constata muito mais do que se define ou se explica. Outra forma ainda de se dizer, a guerra é um modo de gozo, um real de nossa bela civilização, e não o retorno a um hipotético estado de natureza mais ou menos selvagem. Um passo a mais e percebe-se que a paz é um delírio como o atesta o caso do presidente Wilson tornado célebre por Freud.
Como se poderá compreender, esse livro expõe verdadeiramente os contornos de seu objeto. Ele o aborda segundo dois eixos : seu lugar no inconsciente e sua função no laço social contemporâneo. Encontra-se aí ecos, misturando testemunhos e análises, vindo de todos os lados dos campos de batalha : combatentes (alguns de nossos colegas são conduzidos como autênticos heróis), prisioneiros (o horror de constatar que os infelizes sobreviventes de uma prisão desumana tornam-se ainda mais suspeitos, ver Hatufim e Homeland), médicos (a clínica nos campos de refugiados sírios), e last but not least, mulheres que todos somos um pouco visto que se ensina aí também que a guerra feminiza ! Fugazmente passa, também nessas páginas, a figura comovente dos condenados pela guerra, os soldados, eternos esquecidos das comunidades que defendem.
O livro termina, necessariamente, em fogos de artifício, nos capítulos dedicados ao objeto da guerra. Isto não é para se procurar noutro lugar que no significante considerado nas seguintes modalidades: aquela que nos é a mais familiar em que, provedor de sentido, ele se torna por exemplo propaganda, e o outro em que ele entra em função propriamente dita de objeto a para se transformar em verdadeira arma de guerra – podem lembrar-se que é de início como voz, ornamentada por um bigode, que Hitler fascina as multidões ! Mais perto de nós, percebe-se que as redes sociais servem à guerra como todo o resto, Flashmob é também Flashguerilla, e que na época dos drones o poder mortal do olhar tornou-se efetivo.
Não se fiem muito no slogan em voga na nossa juventude sonhadora pós 68, Faça amor não faça a guerra !Não seria finalmente a mesma coisa, o amor como continuação da guerra por outros meios ? Clausewitz revisto por Foucault e por Sade. Até mesmo Lacan : o amor com a guerra como Kant com Sade.
Um esforço a mais…
1 : Citamos principalmente o colóquio da ACF-Belgique à Mons em 11 octobre último La guerre toujours recommencée com M. Belilos, G. Briole, Y. Depelsenaire e J.-Ph. Parchliniak. E tmabém Y. Depelsenaire L’envers du décor ou l’art de la guerre toujours recommencée, Nantes, Cécile Defaut, 2013.
2 : Brousse M.-H. (dir), La psychanalyse à l’épreuve de la guerre, Paris, Berg International, 2015, com contribuições de J.-A. Miller, E. Laurent, G. Briole, G. Wajcman, G. Caroz, G. Dahan, S. Abitbol, M.-H. Blancard, H. Bonnaud, S. Hommel, M. Mitelman, N. Georges-Lambrichs, M.-H. Brousse, A. Vicens, J.-P. Klotz, C. Leduc, B. Lahutte, L. Goder, Y. Arciniega, L. Canedo, A. Delgado, M. Graiver, A. Geudar Delahaye, B. Jullien, Y. Picquart, F. Ratier, L. Sokolowski. Disponível em ecf-echoppe.com.
3 : Lacan J., Le Séminaire, livro V, Les formations de l’inconscient, Paris, Seuil, 1998, p. 111.
Esfomeado pela 44ª Jornadas, por Francesca Biagi-Chai
« Poderia testemunhar uma surpresa ou uma impressão, após as duas jornadas, a 44ª organizada pela ECF sob o título Ser mãe? ». Eis a questão que me foi colocada pelo Hebdo-blog (1) alguns dias antes de nossos encontros. Aceitando o exercício que me foi pedido, entrei este sábado de manhã no Palais des Congrès receptivo ao que iria acontecer. Eu poderia lhes falar da faixa triunfante no frontão do Palais des Congrès, da fluidez do acolhimento, da diversidade e da qualidade das sequências do domingo, do número de pessoas presentes – estivemos mais de 3 mil.
O silêncio dos corredores
Fui surpreendido pelo silêncio dos corredores. Eles estavam vazios, nenhuma agitação, sem vai e vem, deambulação, excitação. E no entanto, as salas estavam cheias, estudiosas. Apresentavam-se como locais onde se declinava de um modo fractal o tema de nossas Jornadas. Verificou-se este efeito durante as sessões plenárias do dia seguinte. Poder-se-ia atribuí-lo à escolha e destino prévio das salas. Quem poderia acreditar que isso bastaria ? Manter todas essas pessoas interessadas, entretidas, inclusive no imenso anfiteatro do domingo, assinala outra coisa que a dimensão puramente formal – necessária entretanto – de toda boa organização. A qualidade das intervenções e dos debates competia amplamente aí, mas, por si mesma não era uma novidade.
Muito ou aperitivo ?
O próprio dessas Jornadas foi que a prepraração se misturou intimamente a sua administração. Através do blog e outros e-instrumentos, nos chegavam todo dia reflexões, fragmentos de casos clínicos, entrevistas de psicanalistas, artistas, escritores, comentários de filmes percutidos sobre o tema, sem esquecer uma atualização constante de um recenseamento bibliográfico consequente.
Alguns poderiam ter dito «é demais!». É preciso constatar que desse « demais » não se está nunca saciado, nunca indiferente. Ao contrário, Tal como as entradas que nos servem como aperitivo, estas Radio-Jem, estes flashes, estas plumas alertas estão abertas ao apetite para além da ECF, a todo mundo, que não deixou de vir.
Esfomear
Esta Jornada colocou a Escola em posição de interpretar o mundo, interpretá-lo no sentido que dá Jacques-Alain Miller à interpretação tomada na dimensão analítica, isto é, que se trata de esfomear (2). Elas são impelidas, estimulado o desejo de saber, o gosto pelo saber-aí. Por outro lado, a Escola foi ela mesma interpretada. Aprendemos o que poderia ser o estatuto do demais no século XXI. Não é acumulação, é discussão nas vastas redes de comunicação ou redes sociais, onde se trocam pitadas de conhecimentos, falsos apoios e entretanto sólidos para construir futuros encontros, aqueles físicos, autênticos, reais. De uma certa maneira não haveria aí laços que se tecem, face ao mal estar na civilização característica de nossa época pelo hiper-ativismo, o imediatismo, movimento browniano dos humanos ?
Para isto, agradecemos Christiane Alberti e sua equipe assim como a Diretoria e o Conselho da Escola.
1 : http://www.ecf-echoppe.com/index.php/catalogue-produits/abonnements/l-hebdo-blog.html
2 : Miller J.-A., « L’interprétation à l’envers », Revue la Cause freudienne n° 32, p. 12
A J44 : mais-além do número de Mach 1, por René Fiori
Fomos aguardados, almejados, desejados, esperados, previstos, solicitados e nos fizeram conhecê-lo. Que nós ? Os ouvintes, o auditório e sua opinião esclarecida. Foi neste sentido que também piscaram para mim os 22 títulos das salas simultâneas do sábado, de manhã e a tarde. Impossível assistir a todas. Eu então sorteei duas nos dados : «Grávidas da ciência » para sábado de manhã e «A mãe perfeita não existe» para a tarde. Cada uma dessas mesas redondas lançou sua alquimia, tão peculiar que se realiza, sem nunca estar garantida, entre os expositores e o presidente da mesa. A clínica apresentada sem jargão, os conceitos – inevitáveis se não se quer vê-la apagada no senso comum – foram mobilizados apenas por necessidade.
A atenção suscitada ao longo de todas as sequências, e as questões não acordadas pelo auditório foram citadas, acolhidas, debatidas.
Para essas Jornadas como um todo, uma travessia ocorreu. Era sensível para cada um de nós nos intervalos de restabelecimento. Não foi a barreira de som, nem da palavra, e muito menos da linguagem – como poderia ser ? – mas então, alguma coisa como o muro da comunicação ?
1 : O número de Mach diz respeito à velocidade de um avião quando ultrapassa a barreira do som.
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