Big BigData
A revista da imprensa dos EUA.
«Sintoma Unido», por Jean-Charles Troadec
A revista da imprensa dos EUA.
«Sintoma Unido», por Jean-Charles Troadec
Os sintomas da civilização devem primeiro ser decifrados nos Estados Unidos da América ». Éric Laurent et Jacques-Alain Miller, O Outro que não existe e seus comitês de ética
Em 09 de abril último, The New England Journal of Medicine reportou que os Centros de Cuidados Médicos e Serviços (CMS), instituição que agrega mais de 100 milhões de pessoas sob sua cobertura de saúde, liberaram o acesso a seus dados médicos relativos ao pagamento e à utilização do sistema americano de atendimento a mais de 800.000 praticantes. O objetivo é informar sobre o uso da organização de tratamento pelos pacientes e médicos a fim de otimizar as despesas.(1)
Se esta novidade é uma première, já que uma lei de 1979 interditava qualquer divulgação de ordem médica, ela não ficará como uma anedota. A transparência na troca de dados da saúde está em todos os discursos. Barack Obama pediu uma regulamentação sobre a interatividade dos dados informáticos em cada estado da federação, desejando, assim, uma maior colaboração dos poderes públicos a fim de antecipar sobre o que se anuncia como uma revolução. É assim que, em 1 de setembro de 2014, o Instituto Nacional de Saúde acaba de mudar suas leis em matéria de troca de dados. De agora em diante, qualquer registro clínico será postado na Web com a intenção de poder ser transmitido.(2)
No entanto, um paradoxo subsiste. Ao mesmo tempo a revista Nature revelava que apenas a metade dos estudos clínicos médicos e testes medicamentosos dos laboratórios é publicada nas revistas especializadas. A outra metade fica, por sua vez, estocada no site clinicaltrials.gov/ (Testes Clínicos), de acordo com a lei, mas sob a forma de dados brutos, sem interpretação nem crítica à diferença das versões publicadas. Além do mais, nas revistas, os testes clínicos que comparam a eficácia de uma molécula a um placebo, geralmente, só são difundidos quando eles mostram resultados positivos.(3)
Qual interpretação dar a esse desejo de comunicação de dados médicos?
E-medicina
A medicina tornou-se inseparável da Internet. O New York Times de 10 de junho de 2014 (4) nos informa que um médico americano passa mais tempo atrás de um PC a inserir os dados pedidos pelas administrações de saúde e a nutrir o dossiê médico de seus pacientes que à mesa de exame. O paciente é um doente, mas também portador de um grande número de dados que atualmente dormem nos servidores.
A psiquiatria se coloca nesse nicho. O Centro Médico Beth Israel Deaconess, em Boston, lançou um experimento abrindo aos seus pacientes os relatórios das sessões de psis, disponíveis no computador e no smartphone. O ministério americano dedicado aos veteranos de guerra tem experimentado este novo serviço desde o ano passado e começa a estudar os efeitos de uma revolução como essa na relação médico-paciente.
Pode-se comparar este movimento de liberação com aquele da «medicina pessoal» ou «personalizada» (personal medicine) que se desenvolve além do Atlântico frente ao fracasso da Evidence Based Medicine (EBM) concernente aos transtornos mentais. Não se dá mais acesso aos resultados de pesquisas padronizadas a fim de que vocês se conformem às provas, dá-se a vocês acesso aos seus resultados personalizados. Não se compara mais vocês a um grupo de controle, centra-se unicamente nos seus dados, que se quer compartilhar.
Medicina Personalizada vs Medicina Baseada em Evidências
Leroy Hood, presidente do Instituto de Biologia de Sistemas de Seatle, lançou em março último uma vasta operação de medicina personalizada com o que ele chama de «a medicina P4»: preditiva, preventiva, personalizada e participativa. Uma centena de indivíduos saudáveis distribuídos no território americano serão controlados de perto e aconselhados posteriormente sobre seus hábitos alimentares e de sono, etc. O estudo viola um grande número de regras da EBM: sem duplo-cego, nem randomização dos dados, nem grupo-controle. É uma medicina que tem por objetivo não esperar pela doença, e por consequência pelos medicamentos que a acompanham(6). Isso vai trazer problemas para os laboratórios e a psiquiatria.
A psiquiatria americana, na verdade, foca-se apenas no sintoma mórbido e na molécula medicamentosa a que ele responde. Como vai dar a volta neste contexto de declínio da EBM e da abertura à medicina personalizada?
A psiquiatria, menos dinâmica, já há muito tempo busca debruçar-se sobre a genética a fim de propor uma abordagem mais rigorosa e personalizada. As iniciativas, tanto privadas quanto públicas, se multiplicam nesta direção. Neste verão a revista Nature publicava os resultados sobre a localização de genes da esquizofrenia, considerados como uma première: 108 genes estariam ligados à esta doença, «mais do que jamais se encontrou até agora».
Thomas Insel, atual diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental, cumprimentou a publicação deste artigo: «Este é um momento particularmente palpitante para a história desse segmento».(7) Essa abordagem permite à psiquiatria americana se situar na esfera de influência atual sobre o genoma e a Big Data.
World Wide Genoma
No ano passado, de fato, a revista Nature, assinalava que um consórcio de sessenta e nove instituições em treze países estava pronto para compartilhar gratuitamente as informações que detinha sobre o genoma de seus pacientes. Esta aliança toma por modelo o consórcio World Wide Web de 1990 que tinha por missão estabelecer padrões universais de programação das páginas na rede. É um verdadeiro desafio, porque, como o lembra Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde, não há padrões de estocagem de dados genéticos, também não para a avaliação de sua exatidão.(8) É o problema que encontra igualmente o Manual de Diagnósticos e Estatísticas de Doenças Mentais (DSM).
Mas, frente à magnitude do sucesso da troca dos dados, o homem vai ser capaz de sintetizá-los?
Watson
A medicina se volta à máquina, não mais como ferramenta para-clínica, mas como sistema de interpretação. A IBM acaba de elaborar Watson, um supercomputador cognitivo capaz de aprender. Ele pode relacionar as informações, verificar sua exatidão, produzir um raciocínio graças… ao compartilhamento de dados. Ele parece com Samantha, a voz de exploração do sistema do filme Her, capaz de criar uma personalidade quase humana, recolhendo no enorme saco de dados que todo internauta produz a cada dia sobre si mesmo (redes sociais, correspondências, etc.) Watson se gaba de poder verificar as informações que ele estoca e de poder, assim, dar um resposta sempre exata. É aqui que ele interessa à medicina. «O desenvolvedor Biovídeo» (San Antonio, Texas) propõe transformar Watson num especialista neonatal e de bebês, expondo-o a diversas fontes de dados – revistas médicas, relatórios da Academia americana de pediatria…»(9). Ele poderá igualmente ajudar os médicos a encontrarem o melhor tratamento para um paciente atingido por um câncer, cruzando um grande número de parâmetros biológicos e genéticos na linha da medicina personalizada.
Como o campo psi aí se introduzirá?
O campo psi envolvido
A empresa Azoft deseja desenvolver um avatar inteligente capaz de aconselhar os utilizadores de smartphones com base nas obras de Freud e Einstein. Ela vai inserir no Watson o conjunto de textos dos dois autores,
assim como sua célebre correspondência para responder às questões ontológicas dos usuários. Em suma, uma espécie de retorno a Freud.
É um programa sedutor para a psiquiatria. Quando um App (aplicativo de software) para ajudar os psiquiatras modernos a se encontrarem na terminologia sempre em movimento e em superprodução do DSM e pela qual a genética não é nenhum socorro? Quando um outro para sintetizar esse mais-de-informação?
Mas como Watson se viraria com a língua de Lacan?
Notas:
1Brennan N. ,Conway P., Tavenner M., « The Medicare Physician-Data Release — Context and Rationale », The New England Journal of Medecine, July 10, 2014.
2. Van Noorden R., « US agency updates rules on sharing genomic data », Nature, Sept 1st, 2014, disponible sur internet : http://www.nature.com/news/us-agency-updates-rules-on-sharing-genomic-data-1.15800
3. Jones N., « Half of US clinical trials go unpublished Results are reported more thoroughly in government database than in journals », Nature, Dec 3, 2013, disponible sur internet : http://www.nature.com/news/half-of-us-clinical-trials-go-unpublished-1.14286
4. Ofri D., « The Physical Exam as Refuge », The New York Times, July 10, 2014, disponible sur internet : http://well.blogs.nytimes.com/author/danielle-ofri-md/
5. Hoffman J., « What the therapist thinks about you », The New York Times, July 7, 2014, disponible sur internet :http://well.blogs.nytimes.com/2014/07/07/what-the-therapist-thinks-about-you/?_php=true&_type=blogs&_r=0
6. Gibbs, W., W., « Medicine gets up close and personal », Nature, February 11, 2014, disponible sur internet : http://www.nature.com/news/medicine-gets-up-close-and-personal-1.14702
7. Reardon S., « Gene-hunt gain for mental health », Nature, July 22, 2014, disponible sur internet : http://www.nature.com/news/gene-hunt-gain-for-mental-health-1.15602
8. Hayden E., « Geneticists push for global data-sharing ». Nature, June 5, 2013, disponible sur internet : http://www.nature.com/news/geneticists-push-for-global-data-sharing-1.13133
9. Marks P., « Watson l’omniscience dans la poche », The New Scientist, April 28, 2014, trad. de Jean-Clément Nau, Les dossiers de la Recherche, août-sept 2014.
Marseille
A primeira parte dessa entrevista encontra-se no Lacan Cotidiano 421. Acrescentemos que, depois de Before we go, do qual se trata aqui, Jorge León, hoje, está engajado num novo filme a partir das trocas de emails entre Mitra Kadivar e Jacques-Alain Miller. O filme será uma interpretação lírica e cantada dessa troca: os emails trocados tornar-se-ão libreto de ópera. H.C.
Hervé Castanet: Os personagens – aqueles do lugar de cuidados – se encontram pela primeira vez no mesmo espaço, mas há o silêncio…
Jorge León: Há o vazio, há a música…
H. C.: Você concordaria em dizer que, no fundo, você preservou o enigma ao invés de fazer disso um segredo, de mantê-lo como o mais íntimo de cada um, aqui onde não se tem que colocar nossos gordos dedos gordurosos…? Uma delicadeza da sua parte.
J. L.: O que você formula me parece mais justo, até porque esta cena do filme é precisamente a sequência destes momentos de conversa, quando, num momento, literalmente se diz: «Vamos tomar um ar!». Ou seja, mesmo temporariamente; estamos nesta lógica.
H. C.: Em certos momentos sobrevive a questão, não a da sedução mas dos corpos que se tocam, não sem erotismo. Entre o personagem de Noël, o dandy e Simone, a dançarina vestida de esqueleto, alguma coisa pode passar da presença do desejo sem, no entanto, que ele se manifeste. Da mesma forma quando as duas mulheres se encontram sobre a esteira e se abraçam, além da ternura, e sem falar de um desejo sexual, aparece esta dimensão que, quando os corpos se encontram, não é neutra.
J. L.: Não somente não é neutra, mas aqui você evoca os casais, e se entramos um pouco mais no interior desses casais, nos damos conta de que são sempre casais atípicos. Há duas mulheres com um beijo muito desconcertante no momento do encontro, que eu não direcionei absolutamente: em momento algum tinha imaginado que isso viria e, entretanto, isso colore a relação do casal. Diante de Noël, Simone, que desempenha o papel da morte, está consciente de sua dimensão andrógina que deixa pairar uma dúvida antes que ela se desnude. E o terceiro casal são dois homens. Claramente, parecia-me importante poder brincar com a plasticidade desses casais: não há um só que entra na formação de um casal, eu diria… estereotipado.
H. C.: Ainda assim, você não fez a assepsia dos corpos a ponto de anular o desejo…
J. L.: Não, absolutamente ; ao contrário, eu penso que o desejo circula à sua maneira, que é extremamente tênue. Para mim, realmente, havia o desejo de jamais forçar as interpretações. Desde que as configurações me pareciam evidentes demais, legíveis demais, isso me parecia menos interessante ; permanece-se na fronteira, na borda / orla dos gêneros, entre os corpos e na forma mesma do filme : É teatro ? É dança ? É cinema ? Estamos na ficção ? No documentário ?
H. C.: A experiência analítica nos demonstra que o desejo nos abre à uma definição muito mais ampla do sexual do que se pode crer. Quando se criticava Freud sobre uma espécie de pansexualismo de sua doutrina, ele insistia dizendo : minha definição do desejo é mais o Eros platônico, não simplesmente no sentido etéreo, mas não o reduza ao sentido sexual banal como se ouve. Seu filme faz ouvir, sem esta dimensão sexual do sentido banal do termo, a dimensão do desejo. Estes corpos estragados, estes corpos que sofrem, estes corpos com as sondas – que você não hesita em mostrar, mas sem insistir -, eles são afrontados desde o encontro nesta dimensão do corpo vivo, sempre vivo, e portanto desejante.
J. L.: É essencial esta dimensão da vida mobilizada assim. Nestes momentos de fragilidade de sofrimento físico, eu tenho a impressão que a vida está bem mais presente ainda que dentro de qualquer ser. Permanecer na vida mobiliza tanta energia : pra mim, de uma certa maneira, o desejo está aqui, ele está no sopro ; ele está na expressão de si, nas coisas extremamente finas, alguma coisa que, de repente, emerge e vai embora. Vai embora e também encontra seu caminho. Um caminho singular : não é alguma coisa que pode ser petrificada ou imediatamente cernida. Eu não queira cernir estas pessoas ; eu queria mais acolher alguma coisa delas, estar aqui com… servir de relé.
H. C.: Ao contrário do realismo médico, de uma frieza distanciada onde o corpo se reduz à operações puramente orgânicas, você preserva sobre estes corpos frágeis – e não somente frágeis subjetivamente : a dificuldade de andar, o câncer da língua, etc -, uma dimensão do vivo: o que não pode se colocar numa divisória nem se reduzir à uma instrumentação dos corpos. No final de seu ensinamento, Lacan diz: «Não se sabe o que é um corpo, um corpo vivo, se apenas é aquele que se goza». Mas ele não diz o que é, no fundo, esse ponto mais íntimo onde, apesar de tudo, resiste-se ainda. Resiste-se ainda e é isso… você não sabe o que os faz resistir. A personagem mulher lhe diz durante a projeção do filme: o presente mais bonito presente que você nos deu, é que você me tornou bonita. Ela é bonita porque, no fundo, você lhe deu dignidade.
J. L.: Sim! Ela não disse nada além de, «tu me tornaste bonita», mas, «Eu me acho bonita». Acho isso até mais bonito, isso que é a relação que ela mantém com a imagem. Quer dizer, ela me exclui disso. De maneira nenhuma negativa, mas «em relação a isso que eu vejo, eu acho muito bonito». Ela não está, com respeito a mim, na sedução, ela está frente à imagem, e eu acho isso muito forte…
H. C.: Você evitou os lugares mais prestigiosos no interior do teatro La Monnaie para filmar dentro dos ateliês, lugares que permitem o espetáculo mas que não fazem parte do espetáculo.
J. L.: … Realmente, há esta dimensão da periferia, ficar na periferia. Um pouco também esta dimensão da sombra que a gente dinamiza. Estes espaços um pouco escondidos mas ao mesmo tempo muito habitados – pela força da criação do que se desenrola aí no cotidiano. E de uma carga emocional extremamente forte e por isso, com efeito, eu não queria cair na fascinação desses espaços grandiosos que, de repente, nos cegariam.
H. C.: Ou que esmagariam, se for o caso, os personagens.
J. L.: Esta dimensão do trabalho é importante para mim; pareceu-me que era aqui também que as coisas podem ainda se tornar uma coisa em evolução. Esses espaços estão aqui para isso, para que uma forma surja; para que, de repente, o silicone se torne um busto ou um rosto ou um olhar, para que um pedaço de madeira se transforme em muro… É aqui onde os tecidos são pintados ; há esse plano muito grande onde se vê um tecido estirado e substituído por um outro. Para mim foi realmente: «Eis aqui, agora um outro espaço se desenrola, mesmo se é em duas dimensões».
H. C.: Em outras palavras, quase os fundos da boutique, os lugares um pouco escondidos onde se elabora e constrói a ficção ?
J. L.: É isso, aqui está. E a gente se inventa… e fracassa, às vezes, e se recupera, e se ajusta.
H. C.: Por que o Édipo de Pasolini, no momento em que ele furou os olhos?
J. L.: (riso) É verdade que se começa com Lacan e se termina com Pasolini e particularmente com Édipo. Pasolini foi muito claro com relação à influência de sua leitura de Freud, no momento no qual realizou Édipo. Ele diz que certamente é o filme mais autobiográfico que realizou. Logo, é um pequeno piscar de olhos; e porque Édipo é esse personagem trágico que eu tinha vontade de reintroduzir na ópera. Num certo momento, hesitei com Medeia, onde fiquei muito impressionado ao descobrir o filme, de ver o quanto La Callas está silenciosa! Ela apenas fala; ela interpreta o papel de Medeia mas… Que força? Esse é o seu gênio…
H. C.: No final de Édipo, no texto clássico, assim que furou seus olhos ele diz basicamente: «É o momento em que eu não sou mais nada, é ali que eu me torno realmente homem». Ao forçar o traço, poder-se-ia dizer que é no momento no qual seus corpos soltam seus personagens de maneira radical que você tenta mostrar o que há de mais singular na sua presença no mundo, como homem ou mulher, no desejo, no corpo vivo – um momento formatado que você chama fragilidade mas que é o mais íntimo de cada um.
J. L.: O ator Pasolini disse esta frase muito linda : «Eis que a vida acaba aqui onde ela começou». E a câmera parte das árvores, então, que se supõe ser, para ele, seu ponto de vista, agora que ele está cego; estamos confrontados com esta natureza e termina-se no sol, no capim. É a razão de ser desta sequência de Pasolini…além do fato que eu tinha vontade – é um herói artístico, para mim -, eu tinha vontade de convidá-lo para esta experiência do filme.
Transcrição realizada por Françoise Biasotto e Patrick Roux, em 10 de julho de 2014