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Em direção a um « Livro negro » do behaviorismo, por Luc Miller
« Você sabe que o exército americano contém equipes especializadas de behavioristas, designados pela sigla BSCT, que operam em Guantanamo como Abou Ghraib? », escreveu outrora Jacques-Alain Miller em Le Point (2005). Ele acrescentou: “Teríamos nisso matéria para um verdadeiro “Livro negro”, se alguém quisesse se interessar. »
Pois bem, desde o último mês, a Associação de Psicologia Americana dá algum tipo de satisfação sobre isto! Presta-se enfim a uma investigação concernente às « Behavioral Science Consultation Teams », equipes de consultores em ciências comportamentais, familiarmente chamados de « Biscuits » ( Biscoitos), que ajudam os militares americanos a proceder aos interrogatórios dos seus prisioneiros.
Em episódios anteriores a APA foi acusada de praticar a defesa Nuremberg : « Following orders was an acceptable reason to violate professional ethics. »( Seguir ordens era uma razão aceitável para violar a ética profissional.) Em seguida, um candidato à presidência da associação, Steven Reisner, pôs a questão em seu programa, com a ambição de restaurar a ética da psicologia – isso encalhou um pouco antes dele se fazer eleger em 2013.
A associação agora decidiu investigar a participação de psicólogos na prática de tortura sob a presidência de G. W. Bush.
Aqui estão algumas referências recentes, assim como uma lição do Departamento de Defesa americano (2006), quanto à distinção entre um psiquiatra e um psicólogo : ela merece ser incluída nos manuais.
1.- Nov. 13, 2014. Psychologists to Review Role in Detainee Interrogations.(Psicólogos Revisam o propósito dos Interrogatórios nos Detentos)
«A Associação de Psicologia Americana (A.P.A) conduz uma revisão independente para verificar se houve conivência ou apoio dos psicólogos no uso da tortura de prisioneiros nos interrogatórios do governo durante a administração Bush.
Durante anos, as questões sobre o papel dos psicólogos americanos e cientistas comportamentais no desenvolvimento e implementação do programa de interrogatórios da era Bush têm sido levantadas por defensores dos direitos humanos, bem como por críticos dentro da própria profissão de psicologia. Psicólogos foram implicados no desenvolvimento das técnicas avançadas de interrogatório usadas em suspeitos de terrorismo pela Agência Central de Inteligência. Mais tarde, verificou-se que um número de psicólogos, nas forças armadas e na comunidade de inteligência, estavam envolvidos na execução e no monitoramento dos interrogatórios.
Por um longo tempo críticos elogiaram o movimento desse grupo. “A ação da A.P.A. é um passo muito necessário para uma revisão independente de suas atividades depois do 11/9”, disse Stephen Soldz, um professor da The Boston Graduate School of Psychoanalysis. “É vital que essa revisão seja totalmente independente e abrangente em sua natureza.” “é triste que a A.P.A., ao em vez de proteger os seus membros de se engajarem nas atividades de interrogatórios, tenha ao contrário reforçado as suas regras para permitir as suas participações naqueles interrogatórios, “disse Mr. Soldz . »
2.- Jan 22, 2014. Nos EUA a organização dos psicólogos declinou repreender um membro envolvido num caso de tortura em Guantánamo. Uma queixa foi protocolada contra John Leso, envolvido num interrogatório brutal de Mohammed al-Qahtani suspeito de sequestro no 11/9,
« O movimento da A.P.A conclui vários anos de esforço dentro da organização para obter na associação a condenação dos membros que participaram da tortura. Aqueles que argumentaram censurando Leso disseram que a organização abriu a porta para futuras violações no tempo de guerra no cerne do ethos do não-causar-danos.
“No caso de Leso, a evidência de sua participação é tão explícita quanto incontestável, tanto que a A.P.A tive que se esforçar para ignorar as evidências”, disse Steven Reisner, um psicólogo clínico de Nova York que, sem sucesso, concorreu para a presidência da A.P.A no ano passado. “A A.P.A criou um precedente ao livrar-se de atuar para impedir a responsabilização de qualquer psicólogo em qualquer circunstância”. »
3.- Junho 06, 2006. Military Alters the Makeup of Interrogation Advisers( Militares alteram a composição do interrogatório dos conselheiros do governo )
« [Após uma votação esmagadora na Associação Americana de Psiquiatria ela desencorajou os seus membros de ajudar nos interrogadores e traçar estratégias para obter informações dos detidos em lugares como Guantánamo Bay e Cuba, funcionários do Pentágono, disseram nesta terça-feira que eles iriam tentar usar somente os psicólogos e não mais, os psiquiatras.]
Dr. William Winkenwerder Jr., secretário assistente da defesa para assuntos de saúde, disse a jornalistas que a nova política favorecendo um maior uso dos psicólogos do que dos psiquiatras foi um reconhecimento das diferentes posições tomadas pelos respectivos grupos de profissionais.
Os militares estavam usando os psiquiatras e os psicólogos nas equipes comportamentalistas de consulta científica, chamadas de “biscoito”, equipes que em decorrência da sigla, aconselham os interrogadores sobre a melhor forma de obter informações de prisioneiros.
Mas o Dr. Steven S. Sharfstein, o ultimo ex-presidente da Associação Americana de Psiquiatria, observou em uma entrevista que o grupo adotou equivocadamente “a política de Maio”, que contêm normas que determinam que os seus membros não possam participar dessas equipes.
Em contrapartida o grupo de psicólogos, da Associação de Psicologia Americana aprovou uma política diferente. Tanto que, em julho passado determinaram que os seus membros ao servirem como consultores para os interrogatórios que envolvam a segurança nacional devem “saber dos fatores exclusivos desses propósitos e de seus contextos, pois eles requerem uma consideração ética especial.” »
Para uma informação mais completa :
– Jean Maria Arrigo (« American psychology really grew up with the military ») :
– Psychology Under Fire: Adversarial Operational Psychology and Psychological Ethics
– A Lesson for World Psychology: Denunciation and Accommodation of Abusive Interrogations by the American Psychological Association. Disponível no site www.ethicalpsychology.org
– Brad Olson, Stephen Soldz & Martha Davis: The ethics of interrogation and the American Psychological Association: A critique of policy and process
Traduzido do Inglês por Zelma Galesi
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« Rúgbi quântico » ? por Nicole Lagache
Retrato de um jogador
Maio 2014. O ícone internacional do rúgbi do XV[1] Inglaterra, Jonathan Peter, conhecido como Jonny Wilkinson, trinta e quatro anos, anuncia a sua aposentadoria no auge da sua forma. Em suas Mémoires d’un perfectionniste1, concebida como um documento, ele se apresenta como um obcecado desde muito cedo pelo controle e pela perfeição. Sendo-lhe familiares também as incertezas: elas o assaltavam e, em sua paixão esportiva confrontou-se com isso permanentemente (saltos perigosos da bala oval, corridas imprevisíveis tanto dos seus adversários quanto dos seus parceiros.).
Esta personalidade discreta ao extremo, virtuoso e atormentado pelo seu talento, esse jogador perpetuamente insatisfeito, até conseguir a vitória. Ele leva até os trinta anos uma existência exclusivamente regrada pelo rúgbi e se define como « uma máquina de marcar », um « viciado no pontapé ».
Génio precoce, artilheiro de elite, certo do dever de controlar o jogo num treinamento frenético e repetitivo que pode ser comprovado, mesmo assim, continua permanentemente desorientado frente ao azar. Suas vitórias permanecem impotentes para afastar a angústia que fere o seu corpo até o sentimento de perda de identidade. Wilkinson encadeia as lesões que o deixam um tempo na inatividade e as incertezas pela retomada de sua paixão esportiva.
Desorientado pelo aleatório, reorientado pela física quântica
Assombrado desde muito cedo pela eliminação causada pelo azar, Jonny Wilkinson conhece a depressão. Após ter conseguido um título mundial para a equipe do Newcastle Falcons, se distância da Inglaterra instalando-se na França e integra o clube de Rúgbi de Toulon (RCT). Aniquilado e desorientado, ele coloca-se à procura de uma compreensão do mundo, cuja perfeição não cessa de lhe escapar.
No auge de sua procura por um sentido que pudesse instaurar aquilo que lhe falta e que seria capaz de barrar a sua angústia, ele encontra os escritos científicos da jornalista americana Lynne Mac Taggart2 que o orientam em direção da física quântica, da qual ele faz uma leitura pessoal sem possuir as noções científicas necessárias. Ele entende que a questão do azar encontra-se no centro da física quântica, Wilkinson está mesmo convencido que as interrogações dos físicos se cruzam com as perpétuas interrogações sobre o que é o aleatório. Do temor de « passar-se por um iluminado », guarda o silêncio sobre a sua explicação que é mais de ordem espiritual do que científica, sobre a forma na qual as partículas interagem entre elas. Essa abordagem lhe oferece um primeiro apaziguamento.
« Rúgbi quântico »
Sob esse título numa primeira abordagem um pouco estranha, Rúgbi quântico, aparecem os atos em relação a uma mesa redonda organizada pela ENSTA3, que convida anualmente seus estudantes a um debate original entre os cientistas e uma personalidade de outro campo do conhecimento. Este é um artigo do Le Monde intitulado « Jonny Wilkinson, partícula elementar »4, que dá a ideia ao ENSTA de convidar o jogador de rúgbi recém apaixonado pela física quântica e um físico de partículas, filósofo das ciências, amador do rúgbi, Étienne Klein.
Wilkinson encontra uma maneira pessoal de reexaminar a realidade do mundo do rúgbi, ao dar-se conta de que a física quântica rompe com a física clássica e, colide com o senso comum por sua descrição de um mundo microscópico radicalmente novo que se apoia sobre o postulado do invisível. Por este desvio, ele prevê que pode se apropriar das questões filosóficas colocadas pela teoria quântica. Neste novo mundo, nada de predição com certeza de um resultado e, em seu lugar um campo de probabilidades, de frequências, ou seja, nada de novo. Mas também, encontra a explicação de que os objetos que vemos separados ao nosso redor não são separados na escala microscópica do mundo quântico. Wilkinson tem, ai, o sentimento de estar no cerne da sua questão e de obtê-la. Atormentado pelo que escapa, é certamente a sua face real que ele aborda no sintoma.
Um semblante paradoxal
O título, Rugby quântico, é o nome de que? Os organizadores do ENSTA parecem ter tido uma feliz intuição intitulando o debate de um semblante paradoxal. Talvez, o homem do rúgbi teve uma intuição, em que desde um ponto de real só um significante novo podia localizar. Porque se a física quântica interpreta as interações aparentemente caóticas das partículas, para o físico É. Klein o rúgbi não é um esporte quântico: o rúgbi e o quântico são dois termos contraditórios. Portanto, Wilkinson realiza, para si mesmo, uma aproximação improvável e eficaz, mas cuja chave não se entrega. A física quântica o conduziu a uma crítica de sua posição, isso que ele retrata muito bem no epílogo de sua obra : « Ao controlar a sua reputação e ao indexar o seu desenvolvimento sobre os resultados perfeitos, isso equivaleria a cair do céu, tentando agarrar-se às nuvens ».
Parece que se por sua interpretação da física quântica Wilkinson visar o sentido, o que ele encontra, para o seu conhecimento é o ab-sentido próprio a fazer surgir uma perda. A saber, para ele, a perda de um pouco da perfeição que tentava até ai juntar numa busca mórbida. O sentido cobiçado esta ausente. A investigação dos recordes cessa, mas para tanto, o sucesso permanece no encontro: é após ter oferecido ao RC Toulon um lugar ao nível nacional, depois mundial que ele decidirá serenamente colocar um fim na sua carreira. Com a descoberta da física quântica seu corpo descomposto condenado até então a servir o fora-de-sentido do desempenho, ao preço de graves ferimentos, encontrará o apaziguamento numa tentativa de recolhimento do enigma do corpo.
Da perfeição à intenção
Wilkinson subverteu o seu próprio projeto. Questionado sobre a mudança operada ele declarou: « Que o balão caia aqui ou ali não tem importância. A intenção é a única forma de perfeição que está ao nosso alcance ». « Eu agora penso que é possível atingir permanentemente a perfeição na intenção ». Esta interpretação muda tudo. E para este sujeito, parece bem valer o desvio pela física quântica. Este uso da ciência torna-se possível, porque do alto da sua glória Wilkinson se interessa por isso que prova e não pelo cálculo do seu desempenho. A concepção da perfeição é conservada, mas, alterada. « Desenvolver as possibilidades, dirá o físico Etienne Klein, depois fazer as coisas, se dispersar depois se reduzir: a vida é assim »5. Quantifica Wilkinson ? Este sujeito ai tocou o seu impossível.
Ensaio transformado !
1 Wilkinson J., Mémoires d’un perfectionniste, Paris, J.C. Lattès, 2012.
2 Lynne Mac Taggart, The Field, Ed. Ariane, 2003.
3 Lliopoutos J., Klein E. & Wilkinson J., Rugby quantique, Paris, Presses de l’ENSTA (Ecole nationale de techniques avancées), coll. les actes, 2011.
4 Fenoglio J., « Jonny Wilkinson, particule élémentaire », Le Monde, 6 février 2010.
5 « La physique quantique a sauvé Wilkinson de la dépression », interview d’Etienne Klein par A. Pécout, Le Monde, 23 mai 2014. http://www.lemonde.fr/sport/article/2014/05/23/la-physique-quantique-a-sauve-wilkinson-de-la-depression_4424298_3242.html
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Atenção corpo intoxicado!, por Éric Taillandier
Oslo, 31 de agosto, filme de carreira discreta, passou relativamente despercebido em nosso campo,mas no entanto, de uma toxicidade toda lacaniana – e deve ser lido na perspectiva do corpo tal como o destaca Jaques-Alain Miller em relação à experiência analítica. Artista e psicanalista se encontram aqui para (de-)mostrar como o corpo, apesar de sua tomada no e pelo Outro, é uma instância essencialmente da dimensão do objeto que « se goza »1.
Lúcido, demasiado lúcido
Mesmo que o tenha descoberto tarde, esse filme merece toda a nossa atenção 2. Alem disso, os críticos não se enganaram. A partir do seu lançamento em 2011, Oslo, 31 de agosto é recompensado largamente : melhor longa metragem européia em Angers, prêmio Jean Carmet de melhor intérprete masculino para o ator principal Anders Danielsen Lie, competindo pelo César de melhor filme estrangeiro em 2013, para não citar os sucessos franceses. Joachim Trier, jovem diretor norueguês, sabe certamente manejar a câmera à ponto de nos fazer cair adictos sem aviso prévio! É preciso dizer que o sujeito empresta-se bem.
Anders, o personagem principal, internado numa clínica de desintoxicação do álcool e das drogas, é autorizado, pela primeira vez, a sair de licença para ir a uma entrevista de emprego em Oslo. Um modo de testar a sua vontade de realmente sair do seu gozo solitário, aqui colocado à prova pelo Outro. Ele passa então da instituição regrada que o protege das tentações, para os riscos do mundo real lá fora. Os encontros que fará neste dia será que o levará a decidir renunciar definitivamente a sua escolha de gozo, modificando a tonalidade de sua relação com o mundo? É toda a intriga do filme. Se a droga está em jogo, ela não está jamais em primeiro plano. Assim, Oslo, 31de agosto não tem nada a ver com o tratamento trash ou psicodélico que se lhe reserva habitualmente. Aqui, tudo está matizado pela encenação, pelos diálogos, pela fotografia. Do início ao fim, o filme procede pela economia das imagens e das palavras.
A verdadeira « heroína » do filme, é antes a pergunta sobre a que o consumo das drogas responde, ou seja, qual a perspectiva de um homem demasiado lúcido a respeito do seu ser e, como suportar a existência. Joachim Trier se inspirou vagamente no romance de Pierre Drieu La Rochelle Le feu follet, lançado em 1931, que esboça a fase final de um homem desiludido cujos excessos não asseguram mais « o ersatz do sentimento da vida »3 que ele tinha até então. « O mundo era tão inconsistente que não lhe oferecia nenhum apoio […]. Sendo que, um homem não pode se manter continuamente na lucidez »4. O filme é uma versão hipermoderna, feito com uma câmera de mão e músicas eletrônicas.
Com Oslo, 31de agosto, J. Trier disse se interessar pelo trajeto deste genro de pessoas, como um dos amigos que se sente « fundamentalmente excluído »5, independentemente das possíveis oportunidades. Em seu filme anterior, Nouvelle donne (2007), ele já estava interessado na loucura, onde o enorme sucesso de um primeiro livro desencadeia a psicose do seu autor, sendo que, na procura de uma « linguagem absoluta » que permitia apreender « todos os matizes das coisas », ele naufragava no buraco da vacuidade do sentido sem conseguir mais sustentar a sua existência.
A insustentável leveza do corpo
Em Oslo, 31 de agosto, desde os primeiros minutos, se apreende que se há o ser, o corpo ai é tomado inteiramente. O filme se abre sobre uma cena, livre de interpretação, mas que, se pode apreender como um desejo que abandona o corpo: « Eu não senti nada », dirá Anders depois do amor. O corpo parecia desafetado. Como este dia de verão com sua luz declinando, qualquer coisa da consistência fálica de Anders é atingida. A surpresa, é que o diretor não trata o corpo do lado de um peso morto, mas ao contrário do lado de sua insustentável leveza. O que inspira o diretor é o corpo demasiado fluido, como a imagem do fogo fátuo. Ele não é suficientemente estabilizado pelos significantes do desejo e do amor… enquanto que Anders procura perdidamente o que poderia dar peso ao Outro.
Os amigos que encontra estão todos mais ou menos estabilizados após uma juventude de excesso, se tornam encorajadores. Eles o incitam a encontrar a sua força vital acomodando-se ao programa de gozo que eles mesmos escolheram ao longo do tempo e das necessidades da vida: entre os sonhos que renunciaram e também, algumas alegrias cotidianas. Mas, Anders não consegue se decidir. Ele não se deixa enganar pelos semblantes ready-made que a vida em sociedade veicula pois, não acredita nisso. « Isso passará tudo vai dar certo…embora isso, não seja verdadeiro ».
No fundo, todo o filme é construído a partir desta questão: como arrumar o programa do Outro, sem renunciar ao gozo do corpo? Para Anders, a articulação desses dois planos parece ser impossível. « Eu estou clean agora, totalmente clean ». A tal ponto desmamado, desintoxicado da droga, que agora se sente invadido por um incomensurável « sentimento de vazio » e « se pergunta como […] viver com isso ».
Amor ou intoxicação ?
Ao longo de todo o filme, espera-se o sobressalto, a surpresa do lado do amor e do desejo. Porque como tela de fundo, Anders está numa tentativa desesperada de restabelecer uma antiga relação amorosa, devastada pela droga. Em algum lugar do outro lado do telefone está uma mulher que o amava, mas que não quer mais lhe responder. « Quando estava com ela comecei a me injetar ». E ela se desapegou. Outra garota o convidou e o que se reproduziu magnificamente foi a cena da partida. Com toda insolência juvenil o corpo desta mulher se oferece a ele. Diríamos que a flama do desejo poderia ser encontrada e reviver… mas, é ainda muito frágil . Como para todos é preciso para Anders um aditivo mais potente. E ele o tinha encontrado num objeto real, a droga. Que funciona em « curto-circuito do gozo fálico »6. O acesso ao Outro, pelo artifício do gozo do seu corpo só é possível com a ajuda da droga no corpo. Sem droga, Anders não tem mais o manual do usuário. « Meu corpo está aqui, mas tento me lembrar porque retornei ». Nada o detém.
Ele recusa qualquer ajuda: para o trabalho, para a afeição, o amor e a amizade. Ele interpreta: « O quê! Eu sou um toxicômano para você? » Não, o outro não lhe diz isso, mas Anders o escutou assim. O desejo do Outro se manifesta aqui na tela de fundo sobre sua vertente mais temível, conduzindo Anders a curto-circuitar o Outro, encurtando o caminho sobre o objeto do seu gozo, o que se sente ser para o Outro, um Intox (abreviação de intoxicação).
Fogo fátuo
Alguns raros anúncios numa voz em off, literalmente desencarnado, fazem entender as razões do desencantamento de Anders. Ele retém dos seus pais uma tão grande abertura de espírito que confinava um « excesso de liberdade ». Algo para deixar um plano se desenhar ai, diante do desejo do Outro, do qual teria podido se engatar, mas que ele apreendeu de modo diferente. Os pontos de impacto do significante sobre o corpo são diferentes para cada um. A psicanálise se ocupa dos corpos, neste sentido em que o corpo é sempre afetado, embora sob o título da angústia que domina o parlêtre, pelo significante e sua marca indelével. Na psicanálise, com efeito, o corpo está sempre em perspectiva, temos a tendência a esquecer disso. A ideia me surgiu com a experiência analítica que de qualquer modo é uma tentativa de desmamar o corpo das palavras que o estão intoxicando. « O corpo, isso deveria nos embasbacar mais », diz Lacan no final do seu Seminário Mais, Ainda em 1973. Pois bem, eu acho que esse filme dá uma interpretação extraordinária disso que é um corpo intoxicado pela linguagem. O recurso à palavra nunca é suficientemente capaz de aliviar os ferimentos infligidos. Permanece as marcas do real. No âmbito da toxicomania, sem minimizar os riscos ligados a consumação das drogas, não é a droga em si mesmo que é a mais tóxica para o corpo do sujeito, mas antes o que determina esse corpo na ordem do significante e condiciona posteriormente o seu gozo toxicômano.
Neste filme, Anders está como « o analista é o fogo fátuo; está é uma metáfora que não faz fiat lux. O fogo fátuo não ilumina nada; ele resulta mesmo ordinariamente de alguma pestilência; essa é a sua força »7. É o convite que faz Lacan ao psicanalista de tomar sobre ele o que do corpo emerge desta pestilência, ao fazer a aposta de tratar de outra forma isso que poderíamos chamar, dos restos, desviando às vezes o sujeito de uma palavra que, ao se aproximar demasiado perto do real, torna-se, às vezes ligeiramente lúcida demais. Como se diz de certos vinhos, este filme tem corpo.
1Miller J.-A., « L’orientation lacanienne. L’être et l’Un », cours du 23 mars 11, inédit.
2Joachim Trier, son réalisateur, prépare un nouveau long métrage pour 2015 avec, notamment, Isabelle Huppert.
3 Josson J.-M., La fonction de la drogue, Accès n° 3, bulletin de l’ACF-VLB, 2012.
4 Drieu La Rochelle P., Le feu follet, Paris, Gallimard, 1931, p. 34.
5 Interview de Canal+ au Festival de Cannes, 2012.
6 Miller J.-A., Clôture, « Le toxicomane et ses thérapeutes », Analytica n° 57, 1989, p. 133.
7 Lacan J., Séminaire XXI, « Les non-dupes errent », leçon du 23 avril 1973, inédit.
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«Sade. Atacar o sol», por Bernadette Colombel
O museu d’Orsay expõe «Sade. Atacar o sol », até o dia 25 de janeiro de 2015. O percurso da exposição é ornamentado por numerosos extratos dos escritos de Sade sobre a sua concepção do prazer, da paixão, da violência, das leis, etc., e sobre a proclamação em erigir uma regra absoluta ao exercício do gozo individual, tão necessário, a expensas do outro. Na concepção de Sade, respondem em eco as representações do corpo fragmentado, cortado, tatuado, eroticamente ornado… Os quadros, litografias, desenhos e esculturas afixam um gozo e um desejo fora dos limites sociais que confinam a violência. Outras obras, não menos eróticas, licenciosas no seu tempo, podem hoje suscitar o sorriso. A este respeito eu citaria uma fotografia de Man Ray, La Prière1: a posição da pessoa, nua, em oração é tal que isso que atrai o olhar, são as mãos colocadas perto do ânus e do sexo. Os curadores da exposição, Laurence des Cars et Annie le Brun, não consideraram um modo histórico de apresentação, mas « um embate voluntário e separado, visando provocar os efeitos de contraponto entre a pintura antiga, aquela do século XIX e aquela do século XX »2. Sua visada é de mostrar que, ao enviar em forma de questão as normas e as regras sociais , Sade introduziu no domínio da arte, uma representação do gozo do corpo sem fazê-lo repousar sobre os pretextos religiosos. Assim, mesmo se a idealização do mártir tenha justificado as representações, os quadros do santo Sebastião, transpassado pelas flechas, ou da santa Agathe3, cujos seios estão seccionados, são antes de tudo uma expressão de gozo.
Signo dos tempos, a exposição exibe os corpos. Mesmo que, em nossa sociedade o véu da censura e da interdição seja levantado, isso não muda nada no fato de que as representações eróticas afetam mesmo, o corpo do visitante. Portanto, não há descanso, para aquele que vagueia pelas salas.
A exposição testemunha a força do desejo e do gozo que podem conduzir a morte. O direito ao gozo é preconizado; do mesmo modo, aquele de usar o corpo do outro para satisfazer-se. O espectador é solicitado pela multiplicidade de representações de corpos gozantes, associados ao discurso do Marques de Sade que orienta a abordagem das obras. Os escritos deste último tornam legítimos em certa medida o gozo do corpo do outro e a realização da violência. Com os quadros, como aquele de Francisco José de Goya Y Lucientes, L’exécution4 , onde um homem tem uma faca sobre o pescoço de uma mulher, enquanto que um congênere vira as costas e um terceiro, morto por decapitação, cai por terra, ou aquele de Franz von Stuck, Judith et Holopherne, onde uma mulher com uma espada olha um homem deitado 5, o visitante vacila entre a representação do mito, ou de um fantasma, e aquela que coloca em cena o horror que a realidade contemporânea pode conhecer.
Gozo do corpo, certamente, a exposição insiste sobre isso que não deixa de se escrever. Mas nessa multidão de obras cuja expansão reenvia à obscenidade, ainda é necessário parar e aproximar os quadros um a um para apreender a especificidade do desafio subjetivo que as une. Assim vai-se do quadro intitulado Le Désir de Evard Munch6 onde os olhos esbugalhados em três rostos fixam um corpo de mulher; a direita desses rostos há uma mão, que talvez, esteja pronta para pegar ou para tocar? Gozo de olhares ávidos ? A forma sem particularidades deste corpo não significaria que esta mulher seja o objeto do desejo, mas sim, um real do qual o corpo é o envelope ? Qual o efeito desta obra sobre o espectador? O quadro não lhe retorna em espelho « o olhar » que vê7?
A exposição colocaria em evidência que um corpo que goza atinge o outro no seu gozo? « Isso fala » àquele que olha, interpelando mesmo o corpo na encruzilhada da pulsão e do que esta inscrito de real nele.
Circular entre as obras, é fazer a constatação que num corpo, isso goza e, isso goza mesmo violentamente, fora da moral, na transgressão. Com Sade, não se pode recuar sobre a ideia do gozo, como diz Jacques Lacan, ele é mortífero e pode conduzir a morte. O que confirma, então, a ideia de que é o sujeito habitado pelo gozo, que coloca na vida os atos que o dividem e o orientam segundo a sua ética.
1 Man Ray, « La Prière », 1930, épreuve gélatino-argentique retouchée au crayon noir, 5 x 3,8 cm.
2 Guillaume F. et Schlesser T., “Quand l’histoire de l’art devient Sadique”, Beaux Arts magazine, octobre 2014, pp. 92-99.
3 Lafréni A., « Martyre de Sainte-Agathe, d’après Giullo Clovis », 1567, estampe, 30,4 x 21 cm.
4 Francisco de Goya y Lucientes, « L’exécution », 1808-1812, Huile sur toile, 29 X 41 cm.
5 Franz von Stuck, « Judith et Holopherne », 1927, huile sur bois, 82 x 72 cm, Coll. particulière
6 Edvard Munch, « Le Désir », 1898, Lithographie
7 Lacan, J., O Seminário, Livro 11, 1964, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988, p. 91.
Tradução: Zelma A. Galesi
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandes
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