Quarta-feira, 05 de fevereiro de 2014 – 19h00 [GMT + 1]
NO 375
Eu não perderia um Seminário por nada do mundo— Philippe Sollers
Nós ganharemos porque não temos outra escolha — Agnès Aflalo
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M’enfin [1]!
A crônica belga de Yves Depelsenaire
Na Bélgica, a divisão não é somente linguística e comunitária : há os incondicionais de Hergé e aqueles de Franquin. Eu reconheço o grande talento do primeiro, mas eu me conto definitivamente entre os admiradores do segundo.
O antagonismo remonta longe. Antes de popularizar as aventuras de Spirou et Fantasio em sua revista Le Moustique, as edições Dupuis, que foram um lugar de resistência na região de Charleroi em 40/45, não queriam os serviços de Hergé na sequência da guerra. É que Tintin, este simpático repórter escoteiro, tinha como modelo duvidoso um certo Léon Degrelle, que se tomava como filho adotivo do Führer.
Em nossos dias, a rejeição ajudando, Hergé é o objeto de um culto quase oficial. Ele tem seu museu em Louvain-la-Neuve, seus comentaristas devotos, seus colecionadores fetichistas. Uma fundação vela, com um cuidado ciumento e um sentido de marketing mais do que agudo, a todo uso de sua obra. Tintin, é o Manneken Pis da HQ[2], « label«gique»[3] ».
Nada comparável para Franquin. Nada de Mausoléu de Spirou. Nenhuma exegeta patenteada. Nenhuma herança colocada sob sequestro pelos guardiães do templo.
No Journal de Spirou o qual, em minha infância, eu não queria perder um número por nada, um personagem enigmático fez um dia sua aparição. Ele se chamava Gaston. Ninguém na redação sabia como, nem porque ele apareceu, versão feliz de Bartleby de Herman Melville, recusando-se a deixar o estudo de Tabelionato onde ele parou todo o trabalho. Um Bartleby sem melancolia e ideias negras, estado sobre o qual Franquin nada ignorava.
Por seus equívocos e suas malícias, Gaston consegue com o truque de se tornar indispensável, inclusive a Fantasio que ele persegue com suas gafes em cascata, e que se volta para seu corpo defendendo o fazer-valer este anti-heroi, inimigo decidido do trabalho, sempre ocupado a adormecer em sobressalto sobre a pilha de correspondência que ele supostamente tinha que classificar. Nada venceria o sintoma de Gaston : uma preguiça terrível de inventividade ; quando Fantasio acredita que a captura de Gastão está assegurada, é seu duplo de látex !
Se recomendaria muito a leitura dos álbuns de Gaston Lagaffe no campo freudiano. Como Joyce o sintoma, Gaston elevou seu nome próprio à altura do sinthome. Por ali ele é uma figura por excelência do escárnio, da impostura paternal, como eu o desenvolverei na próxima entrega desta crônica, que terá por título uma das maiores réplicas de Gaston : M’enfin !
Eu gosto – Médium de Philippe Sollers (1)
por Pierre Naveau
por Pierre Naveau
« A vantagem do Francês, é sua concisão e sua comoção. » (2)
Eu gosto, quando Philippe Sollers escreve que é preciso ir ao mais simples e que isto é o que é mais difícil de fazer. Por isto, é preciso aprender a ler. Eu o cito : « Nós temos, pois, mais do que nunca, de aprender a ler. A verdade, é que nós não lemos ainda. » (3) Ph. S. – é assim que ele assina – sabia ser irônico, quando ele saudava, de sua pena ágil, toda a recente edição de Flaubert na La Pléiade[4]. Ele aprendeu com efeito a encontrar a frase que, por exemplo, disse a mulher adúltera: « Ela despiu-se brutalmente, arrancando o cordão fino de seu espartilho que assobiava em torno de seus quadris como uma cobra que desliza. Ela ia na ponta de seus pés descalços olhar uma vez mais se a porta estava fechada, depois, com um único gesto deixava cair de vez todas as suas roupas ; e pálida, sem falar, séria, ela se encolheu contra seu peito com um longo arrepio. » (4) É Ph. S. que nos assinala – que teria feito em seu lugar ? – a reedição de uma Histoire des Girondins por Alphonse de Lamartine, que ele coloca sob o signo de « faca ensanguentada »[5] (5). A Montanha esmagando a Gironde, eis o quadro, ele escreveu, que pode resumir o grito de Manon Roland subindo no cadafalso: « Oh liberdade, que crimes se comete em teu nome ! ». 8 de novembro de 1793, Manon é guilhotinada. 15 (de novembro), Jean-Marie, seu marido, o aprendiz, se suicida com dois cortes de punhal. Stendhal, precisa Ph. S., adorava Manon Roland. Ela tinha lido Voltaire e Montesquieu. Ela foi também admirada, se poderia acrescentar, por Chateaubriand, Gœthe e Michelet. Em todo caso, o debate de Ph. S. com Danton e Robespierre – ferido no flanco – permanece aberto. Enfim, Emma, Manon, mulheres, então.
1700, baile de mascarado em Marly. Um duque conta. Ele está zangado com M. de Luxembourg. Porém, o duque viu chegar « muita musselina plissada, leve, comprida e esvoaçante, acima um chifre de cervo ao natural sobre um penteado bizarro, tão alto que se embaraça em um lustre ». « Eis que ficamos muito surpreendidos com uma mascarada tão estranha», escreveu o duque. Quem é ? « A máscara se vira e nos mostra M. de Luxembourg. A gargalhada sofrida foi escandalosa ». Rimos dele. Onde ele encontrou esta mascarada ?, perguntou-se a ele. Que ideia de escolher uma tal forma de se mascarar! Eu gosto desta frase : « O bom senhor nunca entendeu de fineza, e a verdade também é que ele era muito longe de ser fino. » Quem escreve então? O duque de Saint-Simon, em suas Memórias (6). O duque, indica Ph. S., escreveu sem uma rasura (7). Que contraste com a época atual!, constata Ph. S. : « A França, com todas suas forças, recusa, agora a História» (8) Ph. S. ama ler Saint-Simon. Ele sabe lê-lo : « Este diabo do século 18 escreve em segredo, ninguém duvida de sua ação obscura. Ele não tem nada a imaginar, toda a comédia acontece sob seus olhos, cada palavra, cada gesto, cada silêncio vale. » (9) Ph. S. diz bem o paradoxo de uma tal maneira de escrever: « o mais surpreendente, nesta aventura, é o frescor de Saint-Simon, sua juventude e sua legitimidade indestrutível, o erotismo de sua intratável virtude. » (10) Ph. S. precisa – Após a morte de sua mulher em 1743, Saint-Simon logo para de escrever (11).
Ah, ler Saint-Simon em Veneza! Eu gosto de Ph. S. confiante ao escrever em um caderno com uma caneta esferográfica. Sem computador. Ele toma suas refeições no terraço de um pequeno, A Riviera. Esta frase que abre o romance de Ph. S. : « São duas horas da tarde, faz calor, eu estou com uma mulher que amo ». (12) Em Veneza, o que é que se tem que fazer de fato : alugar um pequeno apartamento em um bairro popular afastado da praça Saint-Marc. Mas, psiu ! Em Veneza, o narrador, é Il Professore. « Professor » é uma palavra que tem a conotação de ironia. Eu penso em Ysé lançando em Mesa : « Contudo vós falais melhor que meu livro, / Quando quereis. Como vossos olhos brilham, / professor ! / Quando se os faz falar / Filosofia. Vós tendes belos olhos quentes. Eu amo / olhar-vos escutar, todo borbulhante ! / Eu amo / Escutar-vos falar, mesmo não compreendendo. / Sede meu professor ! » (13)
O narrador está jantando. Ele está só. Mas quem é essa jovem? « Esbelta, morena de olhos negros, graciosa ao menor gesto, ela sorri ao professor que vai caminhar por longo tempo na noite. » (14) É Loreta. De manhã, quando ele lê, fora, os jornais, eles falam um pouco juntos. Ela lhe pergunta : « Nunca vai ao Lido ? » Ele lhe responde: « Não, sem tempo ». Esta breve troca diz muito sobre quem é aquele que escreve. Ph. S. gosta de comparar a Francesa à Italiana : « A Francesa faz prosa sem cessar, a outra geralmente canta. » (15) Não é bem assim?
Ph. S. leva a sério o axioma lacaniano que J.-A. Miller ressaltou para nós : « Todo mundo é louco ». A loucura é furiosa ; ela não ama a História. Coisa terrível– ela acredita saber desde já (16). Então Ph. S. inventa, de uma maneira clara e precisa, como ele o diz, a contra-loucura. Ele considera, assim, as Memórias de Saint-Simon como um manual de contra-loucura. Eu gosto quando ele escreve que a inteligência « explode em cada frase de Saint-Simon » (17). Fazendo caminho, Ph. S. evoca Heidegger. É preciso ler, a propósito, as respostas que Ph. S. dá, em Ligne de risque, às questões que lhe colocou François Meyronnis e Yannick Haenel a propósito do comentário, por Heidegger, do Poema de Parmênides (18).
Ph. S. ama zombar. Por exemplo, ele zomba da professora (« Sobretudo sem trocadilhos ! »), da psicanalista (« muito bela, mas desencantada ») e, sobretudo, da puritana – « Aquela a quem você nunca convencerá, é a puritana. (…) Tudo a desagrada em você (…). » (19) Está-se de acordo com a opinião tão viva quanto apressada que Ph. S. coloca sobre as mulheres ? Que elas não seriam curiosas, que elas não se interessariam por sua existência antes dela, em uma palavra : em sua história. Que elas não o deixaria terminar suas frases (20). Mas sim, caro Ph. S., como o disse Lacan no último capítulo de seu Seminário vinte e um (21), para uma mulher, a história começa – estranho acaso – com o encontro. Mas Ph. S. não o disse ele-mesmo? Eu o cito : « A beleza de uma mulher desejada aumenta, a de uma mulher não somente desejada como amada jorra por toda parte como uma aparição além. » (22)
Pois, eu não disse nada ainda. No romance de Ph. S., o que dá ao narrador sua energia, é uma mulher de quarenta anos, Ada, « uma pequena morena de olhos azuis, uma Piemontêsa um pouco forte, risonha, poderosa, ligeira » (23). É ela que duas vezes por semana, vem fazer massagem no narrador e lhe ensina também, com doçura, aquilo que ele ignora – seu corpo. Isto é, escreve Ph. S., a delicadeza: « É profunda, íntima e à flor da pele. » (24) Ada lhe ensina mais precisamente o que é um corpo nu quando ele se põe a « vibrar », quer dizer simplesmente viver. São sessões de duração variáveis, elas podem ser curtas. A gente cessa então, diz Ph. S., de ser surdo ao que é um corpo. Ada, como o indica a alusão, por aí mesmo, ao romance de Nabokov, é uma mestra que, com suas mãos , lhe ensina o ardor.
1 Sollers Ph., Médium, Paris, Gallimard, 2014.
2 Ibid., p. 96.
3 Sollers Ph., « Sur les dieux grecs », Propos recueillis par François Meyronnis et Yannick Haenel, Ligne de risque, n° 27, année 2013, p. 35.
4 Sollers Ph., « Salaud de Flaubert », La guerre du goût, Le Nouvel Observateur, n° 2560, p. 131.
5 Sollers Ph., « Ô temps, suspends ta révolution ! », La guerre du goût, Le Nouvel Observateur, n° 2569, p. 115.
6 Saint-Simon, « Cette pute me fera mourir … », Intrigues et passions à la cour de Louis XIV, Paris, Le Livre de Poche, coll. La lettre et la plume, 2011, p. 83.
7 Sollers Ph., Médium, op. cit., p. 33.
8 Ibid., p. 40.
9 Ibid., p. 35.
10 Ibid., p. 125.
11 Ibid., p. 144.
12 Ibid., p. 11.
13 Claudel P., Partage de midi, Théâtre, tome I, Paris, Gallimard, Bibliothèque de La Pléiade, 1967, p. 1081.
14 Sollers Ph., Médium, op. cit., p. 16.
15 Ibid., p. 42.
16 Ibid., p. 49.
17 Ibid., p. 142.
18 Sollers Ph., « Sur les dieux grecs », op. cit., p. 27 à 37.
19 Sollers Ph., Médium, op. cit., p. 133.
20 Ibid., p. 134.
21 Lacan J., Le Séminaire, livre XX, Encore, texte établi par J.-A. Miller, Paris, Seuil, coll. Champ freudien, 1975, p. 132.
22 Sollers Ph., Médium, op. cit., p. 146.
23 Ibid., p. 15.
24 Ibid., p. 147.
Tal pai, tal filho de Hirokazu Kore-Eda
por Nathalie Georges-Lambrichs
por Nathalie Georges-Lambrichs
Tal pai, tal filho de Hirokazu Kore-Eda os convida a inteirar-se que não é impossível que um dia, uma carta lhes chegue do Hospital que vocês tinham escolhido seis anos antes para por seu filho no mundo, convocando-os para verificar, por um teste de DNA, que vocês são mesmo os pais dele. E concluir que não. Vocês saberão então, pouco a pouco, que sua vida depende de vidas das quais vocês não suspeitariam da existência. Vocês descobrirão de qual ponto de vista uma outra mulher, os considerando, tinha escolhido vocês para acertar as contas com outra pessoa da qual vocês não sabem nem saberão nada jamais. Não sabendo, vocês não viram nada. E, de repente, vocês e seu filho caem em uma outra vida, de encontro com a de outra família, toda outra. Esta outra vida , ela vos esperava então. Ela ressoa dos fantasmas dos quais vocês não desejariam lidar, e que, de repente, são, enquanto devaneios, refutados por uma pretensa verdade vinda de fora. Esta verdade, vocês vão, sob pretexto de que nãolhes é mais possível fazê-la desaparecer, fazê-la sua?
Ademais toda a arte do diretor é de nos mostrar, através seus personagens e suas paisagens estranhamente precárias e solidárias a uns e outros, que este saber é um pseudo-saber, do qual o único interesse é de aumentar a distância irremediável que há entre os homens e as mulheres que compõem os dois casais, pelo fato da ignorância própria e indivisível que caracteriza cada um deles. Acrescente-se que esta ignorância que a gente supunha em Yudai e Yukari, os pais pouco afortunados de Ryusei e de seus pequenos irmãos e irmãs, não tem a ferocidade daquela que anima, apesar deles, Ryoata e Midori dedicados a dar a Kaita, seu único filho, a mais perfeita educação, condição para sobreviver em uma sociedade sem piedade. Resta enfim que seria bem simplista opor os dois casais, onde ninguém tinha rompido com o culto dos ancestrais.
Materializado em cada uma das casas que, fora dele, tudo separa por um altar, fotos, incensos, encarnando a linhagem, o culto dos antepassados é talvez o que nos impressiona e questiona mais. Toda a energia e a densidade do filme não se inicia a partir deste lar sobrevivente de todas as provas infligidas ao país e ao povo, encarnando ali a força, que condensa os sinais de uma outra presença da linhagem ancorada no além da morte, e submete os corpos viventes a atitudes rituais para cumprir em silêncio os gestos imemoriais? É este lugar ainda de todos os ditos e não ditos que faz os personagens se insinuar entre as palavras que mais ou menos solenemente emitem conforme seja o que fala um pai a seu filho, um homem a seu advogado, uma enfermeira no rol de testemunhas do processo, uma avó a seu neto, um filho que se tornou pai de seu próprio pai, parecendo sempre enunciados e jamais endereçados, tornando extremamente tênue a linha de divisão entre as crianças e seus pais, e aureolando desde então as crianças de um acréscimo de misericórdia necessária, para fortificar neles uma vontade de se tornar aquilo do qual ninguém pode saber nada?
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Virgem
por Anne-Lise Heimburger
Persiste e assina
Imaginem um quarto de hotel – por exemplo em uma cidadezinha de Forêt-Noire – no centro do qual reina uma cama king size rodeada de um lado a outro por uma fileira de armários azul esmeralda. Em cima da cabeceira da cama, um papel de parede com motivo floral evoca o clichê de mau gosto de uma arcádia tipo Heidi. Imagine ainda, em segundo – plano, um banheiro com piso rosa choque, em primeiro plano, dois vasos grandes de flores decorativas. O que você espera disso? O pior! Um vaudeville ruim, uma comédia musical ultra kitsch, um espetáculo folclórico baviero, aaaaahh a menos que… mas sim claro !!! Deve se tratar de uma peça de Elfriede Jelinek? De Franz Xaver Kroetz? De Rainer Werner Fassbinder? Enquanto a aflição do espectador neófito aumenta, o adepto das criações assinadas por Christoph Marthaler, ele, fica à vontade porque ele viu outras dessas : « Até aqui tudo bem”, se diz, « eu reconheço o estilo ». Ou exatamente, como a cada pancada, C. Marthaler desvia sem se dar ao trabalho de mudar de estilo! E mesmo tudo o contrário, ele persiste em seu ser singular e assina! E o adepto de se reconhecer vencido, conquistado, para sempre fiel ao mestre da obra de Zurique, a quemele deve, mais uma vez, ter sido preso sem ter previsto isto, de ter cogitado e curtindo ao mesmo tempo, de ter rido e chorado disto que o ser humano é decididamente uma criatura capaz tanto do pior como do melhor.
Ein Sprachlabor 1
De imediato, as regras de boa conduta em vigor nas salas de espetáculos são abolidas: um anúncio-portátil é difundido, autorizando campainhas de telefone, tosse, pigarros, barulhos de sucção ou de papeis de bombom … Conforme fosse declinada em alemão, francês, inglês, neerlandês, italiano, ou japonês, a partir de palavras, no entanto, absolutamente equivalentes, o anúncio toma uma outra expressão… É que cada língua tem seu temperamento, seus sabores, sua melodia, sua história. Eis-nos aqui de entrada na brincadeira, introduzidos noSprachlabor que são todos os espetáculos de Marthaler, e do qual King Size oferece uma versão mais musical que nunca. Porque se o hautboïste[6] de formação, primeiro compositor para o teatro, ama fazer seus intérpretes cantar, aqui eles quase não fazem mais que isso. Para dar a entender todo o poder polissêmico da língua francesacomo na canção Méli-mélodie de Boby Lapointe, fazer sentir a intraduzível Sehnsucht aleman através dos Liederde Schumann, saborear os cantos dos canhões em Schwitzerdütsch, ou swingar como só a língua americana permite swingar ao rítimo de I’ll be there de Jacksons 5, Marthaler encontrou e extraiu de seus respectivos balneários artísticos dois cantores, um pianista e uma atriz: a mezo-soprano norueguesa Tora Augestad e o cantor-pop suisso-alemão Michael von der Heide, candidato à Eurovison 2010; Bendix Dethleffsen, Kapellmeister allemão ; finalmente a atriz Nikola Weisse, mais velha dos quatro. O que os distingue antes de tudo não é a idade , o gênero, o estilo, o físico, ao registro ou o grão da voz, e sim a língua. E ter a mesma língua materna não muda nada ao assunto, Marthaler o sabe. Ele demonstra que entoar todos em coro o mesmo refrão não impede que cada um entenda, por trás do que se diz, o que o que ele canta.
Não há relação sexual : tudo um programa!
Se se procura transformar a famosa afirmação de Lacan en playlist, o programa do recital King Size serve perfeitamente. No centro da cena-quarto de hotel, o altar do desejo: o famoso leito king size, sobre o qual os slogans publicitários predizem mil e uma noites kamasoutrequianas. Só que em King Size, aqueles que dormem alí não fusionam. Pelo contrario, eles dormem, e sonham, esperam, têm esperança, fantasiam ou se arrependem, o todo cantante. Bem instalada em seu lado da cama, a cabeça enfiada no travesseiro, sonolenta, a mulher deixa escapar alguma coisa como uma fantasma inconfessável: aqui ela que entoa sem o saber a muito sugestiva cançãoOuvre de Suzy Solidor, em um tempo mais lento e langoroso que aquele da célebre rapariga, cantora dos amoreshomossexuais nos loucos anos (anos 20). A primeira estrofe começa assim « Abra os olhos, desperte », a segunda « Abra a janela a teus seios » e assim por diante até à « Abra tudo o que puder abrir »! Ele está preocupado com uma carta de amor que acabaram de lhe remeter e cujo conteúdo (Méli-mélodie) o desconcerta- « Sim, meu doce gatinho a mini, sim, a mini é a mania », etc. Ele reencontra suas marcas com Michel Polnareff e convida o público a se juntar a ele « Tudo, tudo (au au ?!!!)[7] por minha amada, minha amada ». Notem que sua coreografia não faz inveja aos Full Monty. Todavia, é bem de acordo que eles juram uma fidelidade sem limite vocalizando comoloucos sobre I’ll be there, salvo que no impulso, suas mãos se roçam e o encanto se quebra. Tetanizado ou arrefecido por este roçar de corpos , cada um volta para seu canto, virgem.
« Eu me sinto de cabeça para baixo e o contrário »
Atrás aqueles dois que cantam com quem melhor-melhor acompanhados por um pianista impetuoso, uma mulher mais velha tenta alcançar um armário com a ajuda de um banco. Em vão. Anteriormente, já a havíamos visto penar para desmontar a estante (suporte das partituras musicais), a tal ponto de entalar ali o pequeno dedo. Os lenços manchados de sangue, saídos em número de sua bolsa, atestam a frequência dos machucados. Então, o que? Se o amor não impede que se bata sem cessar no real do outro, é bem mais engraçado do que se bater sozinho? Marthaler o sabe. « Dizer que há estantes, que jamais viram alguma nota de música », lamenta esta mulher de uma certa idade. Ela, não o ouvirá cantar, acabou. Ela confessa se sentir « de cabeça para baixo e o contrário » , e acrescenta » Na época… Agora… Eu tenho sido sempre o que sou, mas, eu não sou mais o que eu era. » este sentido nato da incoerência, Marthaler o coloca a serviço de formulações e de imagens significantes. Assim, enquanto a necessaire[8] desta dama tem como utilidade, para ela, de guarda-comida, de onde ela pegaora espaguetes ora salada, serve menos para rir do que para chorar. Ponto crucial o frigobar, colocado a tal altura que se mostra inacessível: sonho ou pesadelo alcoólico? E o armário polifônico, e o regador surrealista, saído diretamente do 6° canto de Maldoror, fortuito como o encontro “de um guarda-chuva e de uma máquina de costura sobre uma mesa de anatomia”..? Bicorno, com um bico para verter e de um spray, se veria ali bem uma metáfora sexual, existencial, artística: ao diabo as instruções de uso, viva a invenção!
Inesquecível como um sonho interpretado
Nos sonhos, estes espetáculos de nosso inconsciente, as coisas chegam como elas veem, sem ter que se preocuparcom as opiniões das outras pessoas, regras acadêmicas e outra lógica narrativa, bom gosto ou duração standard – globalmente o inconsciente se apressa, mesmo se o tempo parece ter parado. As criações de Marthaler têm algo dosonho: « Eu acho que meu teatro é altmodisch : esta é uma palavra extraordinária em alemão que quer dizer « démodé », mas, sem conotação negativa – fora de época talvez », pode-se ler no programa de Nanterre-Amandiers. Eis aqui, sem dúvida, um índice da formidável fama deste artista que o mundo inteiro quer : não será porque ele não procura a qualquer preço se submeter à moda que Marthaler o fica (dentro da moda) invariavelmente? Quando ele entra em repetição ele não sabe mais do que seus acólitos onde eles vão colocar os pés: isto dependerá de cada um, de suas existências, do mundo como ele gira, da cidade e do país onde eles se encontram para criar, da língua, of course (naturalmente)! Resultado, as criações explodem, brincam, incomodam, fracassam e permitem experimentar os prazeres misturados do canto, do teatro e da dança, sem que estas artes sejam estragadas pelo espírito de seriedade que às vezes as vigia, tomadas separadamente: quando o teatro se quer « théâââtre », quando a diva gargareja seu vibrato, do « r » de Amor e dos presunçosos volantes de sua roupa, quando o dançarino se admira na execução perfeita de um movimento arriscado… De repente tudo é tautológico, preso na armadilha do pé da letra, e o que é representado sob nossos olhos é logo lançado ao esquecimento. Quanto ao teatro híbrido e iluminado de Christoph Marthaler, não se esquece mais do que um sonho interpretado.
[1] Laboratório de la langue. Referência ao espetáculo Meine faire Dame. Ein Sprachlabor de C. Marthaler, apresentado na última estação à Odéon-Ateliers Berthier
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Tradução: Lucy de Castro
[1] M’enfin = Por fim, de mim (jogo de palavras).
[2] História em Quadrinhos
[3] « label«gique» = « A Bélgica » (jogo de palavras).
[4] Editora La Pléiade – Casa editorial francesa fundada em 1931 (web, 2014)
[5] “couteau sanglant” = “Faca ensaguentada”.
[6] N.T. – musico de um instrumento a vento do nome de “hautbois”.
[7] N.T. = un toutou é o mesmo que “au au” – (cachorro na linguagem infantil).