Sexta–feira, 7 de março de 2014 – 21 h 07 [GMT + 1]
NÚMERO 382
Eu não perderia um Seminário por nada nesse mundo— Philippe Sollers
Venceremos porque não temos outra escolha— Agnès Aflalo
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Allons z’enfants (2)
A crônica de Daniel Roy
Axel adora os vídeo games. Gosta muito de jogar um jogo que «não é para sua idade», GTA 51. Neste jogo, ele pode roubar muitos carros, até dez, sem ser pego pela polícia. Axel se espanta com isso: na verdade, basta um. Pode-se fazer muitas outras coisas no GTA, mas ele não se autoriza, salvo, algumas vezes, passar o sinal vermelho, mas é « perigoso para os pedestres ». Assim, quando tem engarrafamento, ele é obrigado a passar pelos passeios e aí, « os pedestres saltam sobre o capô, upa!».
Mas de onde vem, então, o grande sorriso de satisfação que acompanha a queda desta sequência? Será, aqui, um gozo pela transgressão, transgressão dos limites que ele mesmo fixou para si ? Realização de suas pulsões sádicas recalcadas ?
Retomemos o tempo precedente: Axel acaba de me contar como seu irmão mais velho lhe roubou uma soma importante para comprar um jogo de vídeo game. Como ele tomou a coisa ? Sem a menor raiva, sem crise, com apenas uma frase: «Você vai me reembolsar». Bem esperto Axel…
Passemos ao tempo seguinte: Axel se volta para um outro vídeo game, este «para sua idade», mas repleto de aranhas, zumbis, esqueletos e outras criaturas suscetíveis, «se você olhá-las nos olhos, desaparecem e aparecem atrás de você para te atacar».
Concluamos (provisoriamente): vídeo ou não, um jogo é um jogo, ele permite a Axel uma amarração preciosa, em torno da palavra «voler» (voler significa roubar e voar), entre o dano que ele sofre e que prefere ignorar, a vontade de vingança da qual ele se defende, e o ponto de angústia que surge do vazio do olhar. Aqui, colocado a serviço de um espaço de defesa, o jogo não é, no fundo, menos um Witz, jogo de palavras, pares ou ímpares, jogando e ganhando em todos os golpes. Pois eles já estão alojados no próprio coração dos vídeo games, os mais insanos a nossos olhos (adultos?), como no coração de outras ficções, os vídeo games exercem aí seus mesmos poderes – faustos e nefastos – fornecem à criança os mesmos recursos, de sentido e de gozo. Boa jogada, Axel, você começa a voar (com suas próprias asas!)
1 Grand Theft Auto 5. A tradução seria « Vol qualifié de voiture » (Roubo (Voo) qualificado de carro). Não é certo que Axel esteja informado da signicação do título deste jogo. Em 31 de dezembro de 2013, tinha sido vendido 32,5 milhões de exemplares deste jogo, realizando o maior sucesso comercial para um video game.
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her
Baltimore, 5 h da manhã, a crônica de Pierre-Gilles Guéguen
O filme de Spike Jonze, her, faz, nesse momento em Nova York, tamanho sucesso que a revista Time Out, que sugere os espetáculos e as estreias, observava que seu número somente interessava àqueles que não estão ou não estão mais indo vê-« La » no cinema.
Por que tamanho sucesso (merecido) desse filme ? Os cinéfilos encontrarão todas as razões que querem do ponto de vista da estética, da poética, da representação dos atores (cf. a crítica do New York Times (1)) e terão razão. Mas a verdadeira ficção do filme é que um homem se apaixona por um programa de computador, quer dizer, por uma mulher que não existe, reduzida a um objeto a: a voz. E o New York Times tem razão em intitular: «Sem corpo, certamente, mas, Oh, que voz!».
Her, é necessário redizer aqui, não é She. Her designa o complemento do objeto. Muito masculino, dirão vocês, muito lacaniano também: o homem busca, inicialmente, na mulher, o objeto que lhe falta, e ele o fetichiza. Aqui, a voz. Que aqueles psicanalistas que praticam a análise por telefone comecem a se inquietar…
Evidentemente, isso se deteriora quando o senhor, um pouco cansado do bom acordo em escutar, demanda que seu fetiche se corporifique. A partir daí, tudo vai de través. O apaixonado órfão descobre que a voz não é a mulher, e que há um não-sei-quê para além do objeto que se impõe para que «isso funcione» entre um homem e uma mulher.
«Eu te amo,
Mas, porque inexplicavelmente
Eu amo em ti alguma coisa
mais que você –
o objeto a,
Eu te mutilo» (2)
Em suma, o amor só se mantém se ele fizer uma ponte acima do vazio da não relação entre os sexos e, por aí, sustentar o desejo. O verdadeiro amor, como o verdadeiro objeto, impõe essa dimensão do vazio que Lacan tentava nos fazer escutar, ao falar do objeto a como vacúolo, de sua « cor de vazio », ou ainda de « substância episódica », tantas maneiras de fazer, para alcançar a pulsão, finalmente, que não é sem objeto, mas também não tem objeto, no sentido de um objeto pulsional único: oral, anal, escópico, invocante, etc. Donde, as páginas tão essenciais do Seminário 11, sobre a mancha no olhar e a crítica radical a Sartre e também a Merleau-Ponty.
A voz deliciosa e tão «sexy» da parceira de Joaquim Phoenix, atraente geek um pouco bobo, tenta nos fazer crer o contrário. Em todo caso, ele acredita nela, antes de se dar conta de que ele acredita nisso, o que é feliz, no final das contas. Neste momento, seu fantasma começa a ceder. Ele se torna não-tolo (non-dupe) de seu próprio fantasma: crer que uma mulher é um «objeto» na sua mão. O que vinha através de seu fantasma, para tapar a nostalgia em que se encontrava de sua ex-mulher, de quem ele estava divorciado, consegue finalmente se corporificar em uma parceira que, ela também, se mostra faltante: sua vizinha acaba de romper com seu companheiro. Os dois fracassados do amor se encontram, um e outro faltantes, para novas peripécias amorosas menos fictícias, fazendo a aposta nesse deslocamento do gozo solitário em direção ao parceiro sintoma.
Um novo amor.
1 Manohola Dargis, «Disembodied, but, Oh, what a voice », NY Times, 18/12/2013
2 Lacan J., Le Séminaire XI, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1973, p. 237, frase liminar do capítulo XX « En toi plus que toi »
Estreia de her em 19 de março
Ler também, sobre her, o diálogo de Laura Petrosino e Leonora Troianovski no site do congresso da AMP
Do tédio do unien, ao vivo de um inaudito
A propósito de Homoanalysants de Hervé Castanet
por
Yves-Claude Stavy
Homoanalysants (1), um estudo sobre a homossexualidade ? O título e o sub-título da obra já levantam a perspectiva: o segundo indica um plural (des homosexuels…), e precisa a experiência interrogada (… en analyse); forjado para a ocasião por Jacques-Alain Miller, o primeiro e feliz título de Homoanalysants, – uma só palavra, plural, sem artigo -, faz ‘imediatamente’ ressoar o que está em jogo, para com o amor da classe tão cara ao clínico.
Desde a primeira página de seu livro, Hervé Castanet anuncia seu projeto, político: «Como o psicanalista opera em cada tratamento ?» Ponto, aqui, palavra de ordem. Mas colocada à prova: «como… em cada…».
Lucas, «recebido por três sessões, que tornaram impossível sua entrada no tratamento [e] não foi, portanto, um homoanalisante»; Jean Genet, «que em duas narrativas, testemunhou com rigor e precisão o efeito de um encontro»: seis casos, expostos, sucessivamente. Seis casos, saídos de uma prática de analista, a de Hervé Castanet. «Para cada um, precisa o autor, nós desdobramos as fixações de gozo que sustentam seus desejos (…) Mas (…) ficava a precisar como cada um, com este gozo que exige seu direito, “bricola” uma invenção de vida (…) Cada um desses analisantes (tendo) podido, modestamente, construir seu sinthoma no tratamento ».
Há a leitura de um caso, operada pelo parceiro-analista. E há a leitura de um caso, operada pelo próprio analisante: desembocando – ou não desembocando – numa conduta de vida inédita, resultado do inaudito terá (ou não) encontrado na sua própria experiência de uma psicanálise. Inaudito e inédito, não se confundem. A fim de não arriscar ‘post-apagar’ a obra de H. Castanet, centremo-nos no um, singular: aquele de Max, primeiro exposto.
H. Castanet aborda o caso distinguindo dois tempos na condução da experiência : aquele do tédio de um homem, casado durante treze anos, depois divorciado há vários anos e que se tornou homossexual; depois o que produziu o encontro com um dizer preciso, escutado por Max, na sua vida pessoal, quando de um debate amoroso com um novo amante. « Uma interpretação », escreve H. Castanet, em sua obra: “Você é ativo, você vai me penetrar”. Max se afoba e põe um fim imediato na relação (…). Ele não quer ser ativo, e se recusa a ser a interpretado dessa maneira. Ele quer manter a postura fixa do gozo – ele espera -, e garantir a imagem passiva que ele tem sob o olhar do pai (…) De agora em diante, o tratamento de Max tomará outra via. O que ele entrega está pronto a se tornar sintoma ».
O tempo 1 era gozo, mental. O tempo 2 é gozo, implicando o vivo de um corpo. «O efeito da frase do companheiro, quando do enlace sexual, é apenas uma fala com seu efeito semântico, ela afeta prioritariamente o corpo e incomoda o gozo fálico no qual Max estava como peixe dentro d´água.», escreve H. Castanet. O tempo 1 era tédio. O tempo 2 é inaudito, – incomodando a busca do ‘mesmo’ que presidia o tempo 1, recoberto por um por que («por que sua vida se reduziu a um celibato querido e decidido», escreve H. Castanet). Sob a ponte, a ‘bela-ponte’ da linguagem (S1–S2), corria a sobra do gesto do homem que se aproxima em silêncio. Mais do que ‘gozo Um’, qualifiquemos de unien, esta «identificação do Outro ao Um»… donde somente se goza mental-mente; – ‘unien’, rimando com ‘ennui’ (tédio), precisa Lacan em suaTelevisão.
O tempo 1 era aspiração ao eterno, no qual Max se esquecia. O tempo 2 é encontro. Este, todavia, ressalta a sorte, – a ‘boa-sorte’ -, se outroparceiro, – o parceiro analista -, ‘alcançando no voo’ o dizer contingente do amante (transmitido, em sessão, pelo analisante), não tivesse escolhido operar com o corte – no sentido contrário às delícias que oferecem as variedades do sentido -, apostando que aqui, já, há sinthoma e gozo Um… de excluir o sentido ?
O refinamento de um sintoma não libera nenhuma nova versão do Pai, mas ressalta uma marca, sem ser, fora do sujeito: não rima, mas réson (ressoa/razão), cessando de não ranger com o enigma de um corpo que se tem, que não se é em nenhum grau – e, portanto, o encontro, ‘tudo o que há de mais hetero, torna cada um, mais do que nunca, Outro de si mesmo : convocando a um savoir y faire parecido com nenhum outro, a renovar sem cessar, único capaz de atenuar o discurso de um desconhecimento a que ele responde.
Esse pedaço de língua, traumático, sem dúvida, sempre já encontrado – a que terá respondido a fuga ‘perpétua’ de Max -, alcançou, no entanto, hoje,… a destinação ? H. Castanet não afirma isto. «De agora em diante, o tratamento de Max tomará outra via», escreve ele, somente.
O inédito de escutar o sentido gozado que os S1 terão produzido sob o abrigo da civilização linguageira, não se confunde com o inaudito do Um, sem Outro, isolado, no sentido contrário da segurança que o discurso oferece: existência fora do sentido, de uma marca singular, sem ‘porquê’, – que reitera a versão real de um sintoma, apesar de sua interpretação mais rigorosa, permitida pela hipótese inconsciente.
«De agora em diante, o tratamento Max tomará outra via»: demos toda sua importância ao futuro imediato, utilizado aqui por H. Castanet. É uma indicação preciosa concernente ao devir da experiência conduzida com Max. É também um testemunho crucial sobre a conduta, ética e política, do parceiro-analista. Sua modalidade de futuro implica um ‘imediatamente’, afina com a afirmação surpreendente de Lacan, em suaTerceira Conferência de Roma, – citada tão frequentemente em nosso campo: «O sentido do sintoma depende do futuro do real». Sempre considerei este dizer de Lacan, por mais irônico que pareça, como endereçado a cada um, um por um. ‘Sentido’ não é, de jeito nenhum, aqui, ‘meaning’ (que a religião explora), mas exigência de orientação quanto a uma leitura de um sintoma. Trata-se, para cada analista, de dar conta, como pode, de onde ele intervém, – na sua prática, na sua vida pessoal: em que, (e em que medida), esse de onde, assim convocado, se refere (ou não), ao resultado, inaudito, de sua própria experiência de analisante. Exigência de orientação, logo: não ‘em direção’ ao real, mas a partir do Um, real, numa descontinuidade ao hábito linguageiro, que oferece a história de um passado.
«Se a psicanálise for bem sucedida, ela se tornará um sintoma esquecido; é preciso que ela fracasse, para prosseguir», acrescenta, então, Lacan em sua A terceira. ‘Fracassar’ não é, sobretudo, aqui, ‘falhar’, é ‘tocar o fundo’.
O livro de Hervé Castanet, Homoanalysants, não visa nenhuma realização (réussite/‘re- issue’ = ‘en sortir’), ele testemunha o ‘savoir y faire’, modesto e singular, resultante da experiência, pessoal, de uma psicanálise.
1 Castanet H., Homoanalysants, Des homosexuels en analyse, Paris, Navarin & Le Champ freudien, 2013.
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e também, escutar :
5 MINUTOS NA RÁDIO
Yves-Claude Stavy
Realizada por Anaëlle Lebovits-Quenehen
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LIDO HOJE
por Jam
5 de março
Lacaníssimo !
O papa : « La globalizzazione a cui pensa la Chiesa assomiglia non a una sfera, nella quale ogni punto è equidistante dal centro e in cui quindi si perde la peculiarità dei popoli, ma a un poliedro, con le sue diverse facce, per cui ogni popolo conserva la propria cultura, lingua, religione, identità. » Entrevista no Il Corriere de la Sera.
O Espelho dos Machos
David Brooks, editor : « Putin seems to have modeled himself after action heroes in the same way that members of the real mafia changed their behavior to model themselves after characters in “The Godfather“. » No New York Times (acima, Putin fotografado na Sibéria, 2009).
6 de março
Marire
Christine Angot : « A jovem casada. – Ela nunca diz « meu marido », ela não consegue ; ela diz o nome ; ela elude ; ela faz perifrases, « a pessoa com quem eu vivo », ou outra coisa. Ela é, no entanto, casada, ela porta o sobrenome do jovem, mas nada da palavra « meu marido » e à ideia de dizê–lo a faz rir, como se ela representasse uma comédia. » Extrato de La petite foule (nas livrarias em 12 de março).
The Scarlet Letter
Jean-Luc Mélenchon: «Doravante, preciso andar quase cotidianamente sob o ultraje ». Em seu blog.
Prazer das ruínas
«“Ruin Lust”, an exhibition at Tate Britain from 4 March, offers a guide to the mournful, thrilling, comic and perverse uses of ruins in art from the 17th century to the present day». Publicité sur The London Review Bookshop.
Germen vs Soma
« A 28-year-old widow has won her high court fight to preserve her late husband’s sperm to allow her to, if she chooses in the future, have his child. » Artigo do Guardian.
Lacan Cotidiano
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Tradução: Ana Paula Sartori Lorenzi