Domingo, 9 de março de 2014 – 14 h 10 [GMT + 1]
NÚMERO 383
Eu não teria perdido um Seminário por nada neste mundo— Philippe Sollers
Nós venceremos porque não temos outra escolha — AgnÈs Aflalo
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A céu aberto: a transmissão de uma experiência
de abertura do olhar
por Anne Chaumont
A sala do cinema Le Parc, em Liège, estava lotada para a estréia do filme À ciel ouvert – A céu aberto, de Mariana Otero. Realçada pela presença dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, que o produziram, a projeção foi prolongada por um feliz debate com a cineasta, ao lado de Bernard Seynhaeve, diretor do Courtil e Sophie Simon, interventora.
Este documentário realizado no Courtil decididamente nos oferece uma « experiência lenta e entusiasmante de uma abertura do olhar ». (1)
Longe de qualquer voyeurismo, uma deambulação pudica feita de idas e vindas entre o cotidiano da vida de um grupo de crianças e as reuniões clínicas entre os interventores nos faz viver com muita inteligência o encontro com o enigma de algumas crianças, aquelas mesmas que escolheram se servir da câmera presa ao corpo da cineasta. Emprestando uma presença de qualidade notável, e assim mesclando-se à presença de outros interventores, a que coloca o espectador em posição de olhar e ouvir diferenciadamente. É a sucessão de seqüências, revelando as pequenas surpresas do cotidiano, as invenções produzidas nas oficinas originais e também deixando falar os corpos e os silêncios, e interrompendo-se para que não se saiba a continuação, que progressivamente faz brotar a lógica do que aparece no início opaco: « uma façanha que faz desse filme uma poesia », como nos marcou Bernard Seynhaeve.
Por esta razão, pareceu-me particularmente esclarecedor o trajeto filmado de Alyson: moça jovem com o corpo esmigalhado como os quebra-cabeças cuja montagem a acalma, ela vai ganhar vida sob o olhar da câmera. É esse olhar que vai marcar sua prática de raspagem do solo do jardim : por meio dela, a jovem tenta vencer a aproximação de insetos fervilhantes e nojentos que concernem ao real que a persegue. Em seguida, ela os mostra à câmera, pegando algo do enquadre da imagem. Ela poderá, depois, colocar aí todo o seu corpo: ela tomará a iniciativa de uma cena tocante em que ela usa a câmera para verificar, procurando as bordas, se ela está no enquadre (« e ali, você me vê… e acolá, e ali, e ali? » entrecortados de «eu vejo você!»). Assim o olhar-câmera lhe permitirá recolher seu corpo e correr sem cair: tudo como nesta magnífica cena final, durante a qual ela se vira para ver o olhar que a olha enquanto ela corre com alegria: Alyson tornou-se atriz!
Toda a força artística do filme está em revelar e juntar, por meio de seu estilo, a essência do que está em jogo no sujeito filmado: o sans synopsis prévia junta-se ao sans programme de uma certa prática orientada pela psicanálise. Como o que caracteriza a escrita deste filme, « no Courtil as histórias são contadas no sentido inverso », segundo à bela fórmula proposta por Mariana Otero; uma «sintonia» entre o que uma instituição como o Courtil defende e a ética do olhar de sua realizadora, como o sublinhou Patricia Bosquin-Caroz na troca que se seguiu.
Naquela noite, em Liège, aconteceram encontros muito fortes no cine Parc. Eles se enriquecerão ainda mais pela leitura do pequeno livro brilhante, companheiro do filme.
1 Otero M. et Brémont M., À ciel ouvert, entretiens. Le Courtil, l’invention au quotidien, Paris, Buddy Movies, 2013, p.9.
… e a série de artigos consagrados ao filme publicados no LQ :
ñ LQ 340 : « Mariana Otero, « une intervenante à caméra » au Courtil », entretien réalisé par Antoine De Baecque.
ñ LQ 342 : « Un film rare sur le sentiment de la vie », par Bruno de Halleux ; « L’univers du possible », par Delia Steinmann ; « Le Courtil en trois questions ».
ñ LQ 351 : « Ouverture à propos de À ciel ouvert de Mariana Otero », par Jean-Pierre Rouillon.
ñ LQ 360 : « À ciel ouvert au festival « Traces de vie » » par Claudine Valette-Damase et « Mariana Otero à Nonette », par Simone Rabanel.
ñ LQ 362 : « A propos de À ciel ouvert », par Jean-Pierre et Luc Dardenne.
ñ LQ 365 : « L’invisible est devenu visible… », par Delia Steinmann.
ñ LQ 369 : « Ciels, nues, trouées », par Nathalie Georges-Lambrichs
Encontre a entrevista com Mariana Otero, Bernard Seynhaeve,
Belilos e Marlene, dirigida por Thomas Boujut: aqui
por Isabelle Rialet-Meneux
Mais uma vez, Joyce Carol Oates nos deslumbra. Ela compartilha com Philip Roth a honra de representar o que há de melhor na literatura americana contemporânea – ambos herdeiros dignos dos grandes Faulkner, Hemingway, Fante, Carver. Reconhecida universitária e autora prolífica de mais de cem obras, incluindo os inesquecíveis Blonde – Loira (2000) e As quedas – Les chutes (2005), finalista do Prêmio Pen Faulkner, do Prêmio Pulitzer e do National Book Award, dentre outras distinções, ela, que finalmente perdeu por pouco, duas vezes, o Prêmio Nobel de Literatura, regressa este ano com um poderoso romance Mudwoman (Mulher de lama) (1), que ela extirpa de um longo período de luto após a morte de seu marido, Raymond Smith, em 2008.
Esta última obra surgiu-lhe através de uma imagem obsessiva num sonho: « Uma mulher refulgente, satisfeita, sentada à mesa, mas só, com lama sobre seu rosto » (2). Desta visão estranha, nasce a ficção: « Eu me disse que esta mulher se lembraria de seu passado, um passado que a remeteria à lama, à alguma coisa de primitivo » (3). Não é esta personagem um duplo do escritor, uma mulher que, como ela, perfurou o «teto de vidro »? Mudwoman bem se trata de um encontro com o real e da alienação assim como do apego de um sujeito a este real que o alicerça. J. C. Oates escreve: « Porque nós prezamos mais que tudo estes lugares aos quais fomos conduzidos para morrer, mas nos quais não estamos mortos » (4).
A história: abandonada com a idade de três anos por uma mãe fanática e demente no meio da lama do pântano de Adirondack, a pequena Jedina milagrosamente é salva e depois adotada por um casal de Quakers, membros da Sociedade Religiosa dos Amigos, determinado a ver « a vitória da luz sobre a confusão e a discórdia ». O segredo sobre sua história é então selado e, rebatizada Meredith Ruth Neukirchen, 40 anos mais tarde, ela se tornará a primeira mulher presidente de uma universidade renomada. Mulher do dever, esgotada por uma pesada carga de trabalho, fiel ao caráter rígido que é a marca de sua educação a ser preenchida dignamente, devastada por uma história de amor sem futuro e preocupada com a crescente crise em seu país, na véspera do conflito com o Iraque, MR vacila e perde a cabeça. O traumatismo original rechaçado brota a favor de um discurso que ela deve pronunciar sobre os lugares de sua infância.
Ela, então, empreende uma viagem meio onírica, meio real pelas terras que a viram nascer. O passado está de volta e nós assistimos à imprevisível colisão do sujeito com o real de suas origens e os acontecimentos de corpo que nele são a marca: pavor diante da nova afasia, corpo que se esconde, imagens de pesadelos que a assombram, luta contra a tendência sonambúlica nascida do choque desse abandono.
Que nova mulher pode renascer de uma lama como essa?
Nenhuma outra mulher mas J. C. Oates sabe escrever a loucura, o momento onde tudo balança na vida de uma mulher (Les Chutes, 2005), a devastação materna (Petite sœur, mon amour, 2009), a paranoia rastejante ou estridente que assombra a América e onde os destroços devastados se perdem cada vez mais.
É preciso lê-la para apoderar-se, mais uma vez, de como o artista sempre nos precede na leitura da desordem do mundo.
1 Oates J. C., Mudwoman, traduction de Claude Seban, Éditions Philippe Rey, Paris, 2013.
3 Ibid
4 Oates J. C., Mudwoman, op. cit., quatrième de couverture.
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Os Escritos de Jacques Lacan
no « pardieiro » de Francis Bacon?
por Gustavo Freda
7, Reece Mews – O ateliê de Francis Bacon é o título de um livro de fotografias de Perry Ogden prefaciado por John Edwards e publicado pela editora Thames & Hudson em 2001.
7, Reece Mews, em South Kensington, Londres, é o endereço da casa-ateliê onde Francis Bacon viveu e trabalhou de 1961 a 1992. Em 1998, John Edwards, seu herdeiro, doou o ateliê e seu conteúdo à Galeria Municipal de Arte Moderna Hugh Lane de Dublin, e Perry Ogden foi convidado a fazer as últimas fotografias deste espaço privado antes de sua desmontagem. De todas as fotos feitas (umas sessenta), apenas três são consagradas a outros lugares que não o ateliê e à uma sala que servia de cozinha-banheiro. Vê-se aí os livros que Bacon possuía na casa dele. Se deixamos de lado os livros de arte, os dicionários, os dicionários de línguas, os volumes de cozinha (Bacon era um excelente cozinheiro), os guias Michelin e as enciclopédias, a biblioteca universal de Bacon se reduzia à uma centena de textos. Que autores se descobre? Heidegger, Joyce, Amigos, Proust e Genet, em francês, (Bacon o lia), Wittgenstein, o Freud, de Peter Gay, o Moisés, de Freud, Bowels, Nietzsche, Wilde, Pound, Shakespeare, um volume da Plêiade cujo autor não podemos reconhecer, Yeats e alguns outros.
Se apurarmos a vista, descobrimos em uma destas fotos, à direita, numa pilha de livros parcialmente escondida, a lombada de um livro branco onde se lê: Écrits – A selection, Escritos – uma seleção, com a base de um ventilador mascarando o nome do autor. Pode-se fazer a hipótese de que se trata de uma das edições das seleção dos Escritos, em inglês. Seja Escritos – uma seleção, W. W. Norton&Company, ou Escritos – uma seleção, London-Tavistok, ambos traduzidos por Alan Sheridan. Pode se tratar de uma outra versão ou de um outro livro. Apostemos que se trata dos Escritos em inglês e fiquemos com esta bela surpresa! Os Escritos de Lacan no pardieiro de Bacon, sobre uma cômoda de madeira preciosa, perto de Montaigne e do duque de Saint-Simon, no meio dos maços de libras esterlinas que tinham acabado de perder o valor – escondidas há dezenas de anos para que seu amigo não as encontrasse, – no meio de vinhos franceses e de champanhes vintage ...
family-watchdog.us e sua antimatéria
por Jean-Noël Donnart
O National Sex Offender Registry, acompanhado do site family-watchdog.us (cão de guarda da família), é um serviço implementado pelo Departamento de Justiça americana para que toda pessoa possa localizar, graças à Internet, os delinquentes sexuais condenados. Russel Banks, em seu romance, Lointain souvenir de la peau, recentemente traduzido, representa com brio a outra face desta «geolocalização» pelo Outro do sujeito, assim alfinetado pelo gozo do Um: aquele da rejeição do real sem lei que escapa à imagem, mas a acompanha intimamente.
Russell Banks nos expõe, então, uma América contemporânea no combate com uma certa política do gozo e do sintoma através da história do encontro entre um jovem « delinquente sexual » de 21 anos, chamado « the Kid » (a criança), viciado em pornografia na Internet e de um professor de universidade obeso. No início do romance, « The Kid » entra numa biblioteca – lugar que ele quase nunca frequentava até então -, mas que lhe é interditado daí por diante porque ele não pode se aproximar mais que 800 metros de locais susceptíveis de serem frequentados por crianças. Ele pede à bibliotecária para consultar o famoso familywatchdog.us e dá seu endereço: sua imagem aparece na tela. « É você … não é?, ela lhe diz. The Kid deve, então, se mandar… O que ele vai fazer com esta geo-localização de seu ser pelo Outro?
No final de sua carreira, the Kid vai se lembrar do surgimento desse real « onde ele chegou a se perceber sob a imagem achatada de um homem sobre uma tela de computador (1) » e se perguntará « pela primeira vez, se há um meio para ele de dar uma terceira dimensão à esta imagem bidimensional e, assim, tornar-se plenamente vivo »… Em sua escrita notável, Russell Banks descreve o caminho: « Isto deve ser feito mentalmente, partir do interior para o exterior: isto não pode ser um papel que se atua para as câmeras e para a Internet (…). Não, é necessário que isto comece no mais profundo de si, no buraco negro da antimatéria que se situa no centro exato de quem se é. Mexa neste lugar docemente apenas um pouquinho, ele dirá ainda, e o resto acontecerá: (…) E do fogo, da terra e da água emergirão da carne, os ossos e o sangue que sua pele envolverá».
Dessa maneira, o gênio de Russell Banks torna apreensível que é pela aproximação deste ponto êxtimo no sujeito – « o buraco negro da antimatéria, que se situa no centro exato de quem se é » – que uma chance é dada ao sujeito de perceber a verdade de seu sintoma, seguindo outras coordenadas além da «geolocalização» do Outro e seu cortejo de segregação e identificação mortífera. Seja uma outra resposta à toxicidade dos sintomas atuais: levando em conta a presença de um real, contra esse enovelamento imperfeito da imagem, da ciência e do medo quanto ao que do gozo escapa ao discurso.
1 Banks R., Lointain souvenir de la peau, Actes sud, Babel, 2012, page 526
LIDO NO DIA DE HOJE
por Jam
7 de março
Debilidade do saber
Jean-Claude Milner: « Além disso, por força de denunciar a desigualdade entre saber e ignorância, vê-se cada vez mais a dominação do ignorante sobre aquele que sabe. » Entrevista na Causer mensal.
Poder do complexo familiar
Marcel Gauchet: « Na verdade, somos forçados a descobrir que, no final, as famílias são mais fortes do que a escola. » Entrevista na Marianne semanal.
Napolio
Lionel Jospin sobre Napoleão: «Quanto ao seu legado, há algumas instituições grandes, mas também uma certa nostalgia francesa pela grandeza artificial, associada paradoxalmente a uma falta de confiança que, às vezes, conduz nossos compatriotas a ansiar por um poder forte.» Entrevista no semanário Le Nouvel Observateur (acima, o Imperador Napoleão I, por Ingres, 1806).
8 de março
Alameda da morte
Tolstoi: « Só agora é que os relatos dos primeiros tempos do cerco, embora não houvesse nem fortificações nem tropas em Sebastopol, nem meios físicos de resistência, tínhamos, no entanto, a plena certeza de que a cidade jamais se renderia, desta época na qual este herói, Kornilov, digno da Grécia antiga, dizia ao passar em frente das tropas: « Nós vamos morrer, meus filhos, mas jamais entregaremos Sebastopol », onde os nossos soldados, longe de ser frasistas, respondiam: «Nós morreremos! Hooray!» « É somente agora que essas histórias deixaram de ser belas lendas aos vossos olhos para se tornar uma realidade, fatos. « Excerto de Histórias de Sebastopol, 1855.
Alameda do amor
Marivaux: « Oh! Sim: sem dúvida alguma. É preciso acabar com ela enquanto está atordoada. » Dubois, manobrista, para Dorante, pretedente a seduzir Araminte. Em Les Fausses confidences, 1737, no Théâtre de l’Odéon, hoje, em uma encenação de Luc Bondy.
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Tradução: Cláudia Aldigueri Rodriguez
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