Séries brasileiras, a crônica de Angelina Harari
Várias metáforas foram evocadas a respeito das manifestações que ocorreram em São Paulo (SP) em junho de 2013. O título desta crônica é uma delas; ele retoma os termos do hino nacional brasileiro onde aquele, que é um gigante pela própria natureza, está «eternamente deitado num berço esplêndido» . A questão, então, é a seguinte: o gigante despertou? Seriam essas manifestações o sinal de uma transformação social no Brasil?
Lembremo-nos que esta onde de protestos nasceu em seguida a uma tentativa de aumento das tarifas dos transporte público em SP. Depois ela se estendeu a outras cidades, principalmente àquelas que receberam os jogos da Copa da Confederações – preparatórios para a Copa do mundo que aconteceria um ano depois. É, um pouco, como os eventos organizados pelas Escolas da AMP que, com dois anos de antecedência, prepararam o congresso Um real para o século XXI e que acabou de reuni-las em Paris.
Identificar o real em jogo pode ajudar a extrair disso uma leitura lacaniana. Por que a sociedade respondeu a este apelo, mais ou menos espontâneo, sem líder, divulgado pelas redes sociais e que abalou o governo, os políticos, os intelectuais, a mídia e nós, os psicanalistas cidadãos – já que, como Jacques-Alain Miller o sublinha, o psicanalista cidadão é antes de tudo um cidadão?1
Lembremo-nos, igualmente, que estes manifestantes protestaram contra o excesso e o abuso aos quais conduz esta grande paixão do homem cordial brasileiro. Por que? Porque a dita paixão engendra despesas astronômicas e alimenta a corrupção num país banhado pelas desigualdades sociais – ainda que estas tenham sido limitadas pelos programas sociais implantados sob a presidência de Lula e mantidos desde então pela atual presidência.
Essas manifestações criaram um cenário favorável à ampliação do movimento dos Black Blocs2. É difícil, no entanto, distinguir estes últimos das ações de provocadores infiltrados para fomentar incidentes que justificaram a repressão policial. Em dezembro de 2013, um decreto do ministro da justiça regulamentou as «operações garantindo a lei e a ordem». Isso não deixa de evocar o golpe de Estado de 31 de março de 1964 (ou seja, há cinquenta anos), enquanto que os setores conservadores da sociedade temiam a desordem, ou seja, o real do acaso, contingente3.
Os rolezinhos vieram completar esta série de fenômenos. Rolezinho é o derivado de rolê que significa um pequeno tour, um passeio, na língua falada. Este neologismo designa um flash mob reunindo centenas de pessoas em parques e lugares públicos. Em São Paulo, esses rolezinhos aconteceram nessa Meca do consumo que são os shopping centers, os centros comerciais. Aí também, o chamamento foi transmitido pelas redes sociais. Sempre com jovens dando o impulso, esse movimento aconteceu vários meses após as primeiras manifestações. Ele demonstra que uma parcela da sociedade, as classes C e D, ao ultrapassar o estágio da sobrevivência, têm a partir daí acesso ao mercado de consumo, o que pode provocar choques «com as antigas classes que se beneficiavam do conforto característico do imobilismo social em vigor»4. É necessário, mais uma vez, ver aqui um sinal do possível despertar do gigante?
A nova onda conservadora não é menos inquietante. Em sua leitura lacaniana do fenômeno de junho de 2013, nosso colega da Escola Brasileira, Antonio Teixeira, psicanalista cidadão, introduz ao mesmo tempo uma aproximação e uma distinção com a psicologia das massas freudiana: há uma diferença, sublinha ele, entre multidão e fenômeno de massa. Retomando a metáfora midiática da primavera árabe, ele destaca que a primavera tropical seria acima de tudo o poder de reunir a multidão sem produzir, no entanto, um fenômeno do massa – no sentido em que ele não é acompanhado de uma processo de conscientização. De fato, esse movimento é desprovido de líder, característica precípua da formação de grupo ou de massa5.
Então, que conclusões tirar da primavera tropical? Trata-se de um processo de transformação social? Ou de fato, de um imobilismo social no qual o gigante se manteria deitado eternamente em seu berço esplêndido? Ou melhor ainda, simplesmente uma desobediência civil transitória? Esta agitação se efetua na instigação do governo ou, na verdade, contra ele? Seria ela destinada a acirrar fatos que justifiquem a repressão? Muitas hipóteses interessantes num país de injustiça social como o nosso. Para explicar os motivos de seu protesto e as razões de sua participação nas manifestações de junho de 2013, uma moça deu esta resposta paradigmática: «Eu não encontrei nenhuma razão para não estar ali»6 Este era, também, o caso de 200 000 outras pessoas que iniciaram a série Manifestação, Black Bloc e rolezinho?
1. Cf. Miller J.-A., entrevista para a revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise.
2. «Os Black Blocs são estruturas informais e descentralizadas, sem pertencimento formal nem hierarquia» ; este termo designa mais particularmente um agrupamento efêmero e anônimo de indivíduos no curso de uma manifestação (fonte : Wikipedia).
3. Cf. Miller J.-A., «Um real para o século XXI», Scilicet. Um real para o século XXI, ECF- Col. rue Huysmans, Paris, 2013.
4. Rezende L. P., « Os ‘rolezinhos’ e a transformação do capital social brasileiro » in Carta Capital , SP, 27/03/2014.
5. Teixeira A., « Junho de 2013 à luz dos acontecimentos »,
19/03/2014.
6. Prata A., « A Passeata », Folha de SP, 19/06/2013.
GOT está de volta! por Dominique Carpentier
A exposição, na
Cidade do Cinema, dedicada, até o dia 30 de junho, à
Guerra nas Estrelas deixa felizes os internautas e outros
viciados em séries, que se entusiasmam também com a estreia da quarta temporada de
Game of Thrones,
GOT para os íntimos.
GOT é notícia na imprensa,
buzz na internet e contabiliza milhares de fãs no mundo.
Le Magazine littéraire deste mês de abril se abre, assim, sobre uma pesquisa de Sandra Laugier1, filósofa e pesquisadora do CNRS
[1], que nos convida a ler o que faz o sucesso de uma tal saga. Nesses tempos confusos onde o Presidente se encontra em dificuldades após as eleições ; onde a ascensão da extrema direita e a violência do discurso atiçam os múltiplos ódios, é exposta a perda da credibilidade política. Saída a análise da situação, repúdio aos intelectuais, contemos com os «resultados». Os ideais, fracassos, não têm mais visibilidade. No momento em que o
Outro não existe, duas sagas – com quarenta anos de intervalo, ou quase – se respondem encenando cada uma a guerra onde a ação domina. Os
aficionados e o
grande público se entusiasmam. Por que este entusiasmo?
Stars Wars, a força com você! A saga Stars Wars, a luta sem trégua entre um planeta e outro, uma tribo e outra, encenava, a partir de 1977, um mundo intergalático em risco de ser aniquilado pelo mal. A palavra de ordem era: «Que a força esteja com você!» Não a sabedoria ou o amor, mas a força. O programa estava em marcha. A guerra encontrava ainda alguns ideais para se justificar, um pai transformado em vilão morria sob os golpes de seu filho e, se tentássemos encontrar aí algum fiapo de complexo de Édipo e da castração, apenas vislumbrada, nós «compreenderíamos». Tratava-se de confiar nos comportamentos uns dos outros, havia os mocinhos e os bandidos, uma moral portanto. Havia ainda um (pouquinho) de pai, um paizinho e um final suavizado: as coisas voltavam à ordem, o bem vencia. Estão anunciando um nono episódio para 2015, Deus sabe o que nos aguarda!
Game of Thrones, a sobrevida. Na série, Game of Thrones ou O Trono de Ferro, ninguém se preocupa com genealogia e transmissão, tudo se desenrola no presente, numa sábia montagem da vida de diferentes personagens. Ainda que eles sejam mais ou menos ligados a uma família, a uma tribo, cada um se mostra bem sozinho em seu combate, cujo objetivo, por um tempo, nos escapa. Desde a primeira temporada, Ned, o patriarca do clã dos Stark, modelo ideal, em quem se havia colocado a esperança de que sua determinação pelo bem salvaria do pior, morre. O pai está morto. Como cada um vai se orientar? Quais serão as consequências disso?
À época do pai, nos apoiávamos num futuro que se anunciava sob os auspícios de uma promessa, sem dúvida entravado por dificuldades, mas encarnado num desejo enovelado à lei. Em GOT, trata-se de, doravante, sequestrar o trono para reinar (é, portanto, o princípio de uma guerra permanente) e todos os protagonistas podem, legitimamente, ter essa pretensão, mas isso não faz mais sentido. Não estamos, nem mesmo, certos de poder identificar quem é o vilão nem qual é a ameaça: a maldade, o ódio, o inimigo, o real? Como situar nisso? Nesse mundo onde o inverno pode durar dez anos (o tempo é, perfeitamente, louco), as coisas se obscurecem pouco a pouco. Encenar este real do ódio e realizar a façanha de agradar a uma multidão de espectadores que pedem mais, não é, certamente, novo enquanto tal, mas a amplitude do entusiasmo faz questão. A ameaça não é mais fantasma como em Star Wars, mas o centro de toda a coisa é uma ameaça sem objeto.
Uma fascinação pelo pior substitui o pai. Tudo é permitido! O incesto de irmãos, cujo fruto, o horrível Joffrey Barathéon, se candidata ao trono, «passa sem problemas» – se podemos assim dizer. Um outro vilão, enfim castigado, se torna apaixonante ao longo das temporadas – é o cúmulo. A perversão, a loucura, o erotismo, a deficiência – o anão bem mais simpático que muitos outros, ele? Ele está apaixonado! – a magia (Ah, a eclosão de ovos de dragão!) e a luta contra as «almas voadoras» no inverno infernal: não há aí nenhum tempo morto, cada plano encerra uma surpresa, uma invenção, um encantamento, e dane-se se não compreendemos tudo, o principal é que isso goza! Cada um terá o prazer de se identificar com um ou outro personagem, na contingência da ação. Nos é prometido o pior e nós amamos isso!
Garotas também. Nesse mundo de homens e de criaturas, existem garotas também, que parecem se sair um pouco melhor que os garotos. Elas podem se tornar rainhas ou acalmar os demônios e para algumas, fornecer um pouco de humanidade a este mundo de brutos, em sua capacidade de amar, ou ao menos um pouco, seus filhos, humanos ou não. Tudo se compra ou se vende, mulher, criança, pátria, sentimentos… Não se pode confiar em ninguém. Tudo se passa na capacidade de agir. «Aja e não tenha medo, o medo é mais cortante que a espada de seu inimigo», indica o mestre de armas à pequena Arya, privada de sua família e que não se sai nada mal disfarçada de menino.
O que agrada. Então, o que agrada, é um futuro sombrio, sem lei, onde cada
um deve em primeiro lugar salvar sua pele, ou melhor, aliás, não se salva nada além da própria pele, e depois não, isso fracassa também. O gozo está no comando, a pulsão a serviço da
sobre-vivência
[2]. As tentativas de se fazer laço social se cristalizam num binômio, a defesa ou o ataque. E uma vez ganha a batalha, é necessário voltar a ela, encontrar novas alianças
entre si, novas estratégias para, mais e mais, recomeçar. «No começo do século XXI, nada de novo nesta dita civilização, a não ser a ascensão e o endurecimento de discursos segregacionistas que prosperam com o embarque do homem na ditadura da norma.»2 A norma, o normal da condição do vivente nesta saga é «Se vire sozinho!» você é um «solitário». Esta série estaria tentando articular o
sem lei que caracteriza o gozo (de matar o outro, de sacrificá-lo, de aniquilá-lo e,
então, gozar disso) com a ideia de uma necessária comunidade a ser (re)criada, mas na segregação? Não há mistura entre as tribos, a união não faz mais a força. Esta, na falta de pelo menos um para encarná-la e em quem se apoiar, condena sem cessar à repetição gaguejante do mesmo, aumentada, como a realidade, do desregramento do real –
Tem mais temporadas!
Das Ding na tela. A intolerável crueldade na relação do sujeito ao das Ding. Esta zona de gozo sem limite que faz surgir uma insondável agressividade, desde o momento em que não há mais o lastro da lei para se proteger disso»3, é, me parece, o que se desvela neste jogo de tronos, jogo de papéis. Apesar das reviravoltas e outras intrigas, que poderiam fazer crer que as coisas poderiam se arranjar, só se encontra, in fine, o eterno recomeço do mesmo.
A magia é convocada por encontrar, infalivelmente, no «sobrenatural» uma resposta ao impasse, com o objetivo de que «isso não se acabe», para continuar a ação, para continuar a gozar, sem fim. De fato, o sentido mesmo da história se dissolve na repetição e se permite, ainda, ser prolongada, já que cada um pode reescrevê-la. O autor, R. R. Martin, publicou seis volumes a partir de 1996 e conta com numerosos fãs, preocupados por ver sua leitura se tornar imagem. Nessa pesquisa por infinitude, se explora mais e mais o que poderia dar reviravoltas, daí a pertinência em apelar ao sobrenatural. A moral se apaga em favor de uma promessa inquietante : «o bem não será o vencedor». Você ainda não viu nada, vamos gozar antes de morrer ! Não confie em mais nada, tudo pode ser uma ilusão, não há garantias de nada, exceto o pior. É um programa mortificante.
A sede de novidade. Então, sim, a encenação inquietante que se revela aí nos conduz a levar em conta que o Outro, que não existe, se infiltrou de fato no «entretenimento de massa». Pouco importa que a verossimilhança esteja daí frequentemente ausente, a gente se reconhece aí, a gente
curte e a gente fala disso, é assunto de uma conversa que faz laço…
Todo mundo delira, é verdade, mas juntos é ainda melhor! Esta paixão pelo espetáculo do gozo, indício de sujeitos desnorteados, poderia nos inquietar se não tivéssemos recorrido à análise do fenômeno. Primeiramente, ele nos seduz, nos interroga, nos interessa e, para concluir, ele ilustra a sede do novo, de sempre mais surpresas e angústias. Seria isso a tradução de nosso mundo contemporâneo que cria para si novas regras para tentar dar sentido àquilo que não tem?
A pulsão de morte, operando no gozo, isola cada um, se faz visível na ficção, o que encanta à distância no prazer de não estar aí, ainda. Mas é, ainda assim, tedioso este entusiasmo – que se transforma em preocupação quando a repetição se faz muito visível – tem-se muitos mortos ! O que esperar disso ? Sobretudo, apreendamos esse real no século XXI no que ele promete de invenções inéditas e, enquanto tal, aguardando ser acolhidas. A via em direção ao sinthoma e a um novo amor, susceptível de fazer mediação entre os Uns-sozinhos, como propõe Jacques-Alain Miller, é talvez a própria bússola que tomamos em nossas mãos: não mais a crença no pai, que leva ao pior, mas, de fato, o levar em conta um real sem lei. É necessário continuar nosso combate para que exista, fora da norma, a possibilidade de um outro destino. Pode acontecer do laço social se reinventar na transferência, é este verdadeiro amor que pode fazer barreira ao gozo em excesso e nos levar, como o indicava J.-A. Miller no congresso da l’AMP, no último 18 de abril, a apostar no falasser.
1-. Laugier S., « Game of Thrones, le couronnement d’une série », Le Magazine Littéraire, abril 2014
3 ibid.
Tradução: Eveline Rêgo
Comunicação: Maria Cristina Maia Fernandez