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«A dupla maternagem»
Entrevista com Grichka Bogdanoff, por Philippe Bouret
Philippe Bouret : Grichka Bogdanoff, você aceitou vir falar de sua mãe, da parte que ela tinha nisso que você chamou seu « destino ». Mas antes disso, gostaria que você me dissesse alguma coisa de seus encontros com Jacques Lacan.
Grichka Bogdanoff : O encontro com Lacan foi duplo. É um encontro que se efetuou de início de modo magistral, em um curso que ele dava na Sorbonne, depois em seus seminários aos quais assisti. Estávamos ao lado de Philippe Sollers, Roland Barthes, enfim, toda a grande escalada das ciências humanas da época. Estávamos inscritos na École des Hautes Études em Ciências Sociais, em tese de Doutorado, paralelamente aos nossos estudos científicos. Nós estávamos fascinados por Lacan. Lembro-me da frase que começou um seminário que se chamava O Sinthoma, sobre Joyce. Era absolutamente extraordinário, lembro-me porque isso me marcou definitivamente. Ele diz : « Com esse seminário, estou tão embaraçado quanto uma carpa seria uma maça. Não é maravilhoso ? Isso é o Lacan magistral. Eu também encontrei o Lacan íntimo. Nós estivemos em sua casa, Igor e eu mesmo, muitas vezes, rue Lille no 5, rue de Lille exatamente. Nós dois fomos recebidos. Tratava-se de falar com ele de uma questão que girava em torno do imaginário.
Nós queríamos saber coisas e reuni-las para um livro que preparávamos e que publicamos em seguida pelas Éditions Lafond1. Esse episódio se passa em meados dos anos 1970. Estávamos Igor e eu, praticamente todas as semanas com Lacan, durante muito tempo, várias semanas, em seu consultório. Lembro-me de uma frase, um dia, onde ele havia nos pedido para re-escrever nossas coordenadas. Em seguida ele lançou em uma palavra, como ele sabia fazer, porque ele tinha um espírito fulgurante. Ele nos disse : « É curioso que você deva colocar dois para escrever seu nome ». É genial, é simplesmente genial ! Formidável ! Vamos falar sobre isso de maneira precisa se quiser…
Ph. B : Passemos então a seu interesse pelas ciências exatas e as ciências humanas. Essa orientação de sua vida não é sem laço com sua mãe.
G. B : Em realidade, nossa mãe, que nós chamamos frequentemente entre nós a imago materna e gratificante – segundo um discurso que é emprestado da psicanálise – foi o ponto de partida de muitas revelações e mesmo de revoluções. Revelações, porque nosso pensamento é estruturado em torno do que chamamos justamente o imaginário. Quando seguimos um pouco a corrente analítica, vemos finalmente que o psiquismo é balanceado entre duas grandes instâncias que são o simbólico de um lado, o pai, a palavra do pai, a linguagem, depois de outro, o objeto parcial do desejo, o surgimento do imaginário. E em nós, é o imaginário. Einstein alias dizia : em ciências, o que conta é o imaginário e não os conhecimentos. A partir daí, vemos a que ponto é importante para nós a mãe. A mãe é o ponto de partida e ao mesmo tempo de convergência do que ressalta finalmente desse surgimento do imaginário e da colocação em perspectiva ativa desse imaginário.
Quando se começou a interrogar, há muito tempo, quando tínhamos dois, três anos, sobre o mistério da origem, Mamãe era muito presente. Fomos confrontados ao espetáculo desse castelo no qual vivíamos e havíamos nascido. Nós tínhamos em seguida colocado a questão: de onde vem esse castelo ? E depois disso : de onde vem nosso país, de onde vem a terra, de onde vem as estrelas e de onde vem o universo? Rapidamente estávamos na direção dessas questões aí, nessa idade, antes mesmo de estruturar a leitura e a escrita. Com efeito estava presente muito cedo, antes da emergência do escrito e penso que encontramos aí uma codificação que precede aquela da linguagem. A linguagem, é a ordem do pai e esse simbólico aí era precedido pelo imaginário. O imaginario, dá o élan às questões que, caso contrário não surgiriam jamais, pois seja são restritas. Quando tentávamos dividir esses questionamentos com nossos contemporâneos que tinham três ou quatro anos, eles estavam absolutamente indiferentes às nossas questões, as vezes até hostis. Então, nós nos demos conta que éramos os únicos a nos interrogar sobre o mundo e sobre o universo.
Há um segundo fenômeno, que provavelmente se agrega ao primeiro e talvez até mesmo o desencadeie, é o fato que nós somos dois, o fato de ser contemporâneos um do outro, gêmeos. Esse tesouro finalmente do gemelar é um tesouro do conhecimento, é um tesouro de questionamentos, um tesouro das questões que nós nos perguntávamos um ao outro. Nós tivemos também conversações nas quais nossa mãe estava associada assim como sua própria mãe a ela, nossa avó. Havia uma dupla maternagem. Nossa avó teve um papel absolutamente fundador. De início, ela vem de um lugar, do ponto de vista da historia e da geografia, que é assim mesmo muito exótico. Ela pertenceu à corte de François Joseph, ela veio de uma família muito antiga da nobreza principesca da Áustria. Havia então esse formigamento de lendas que fazia nossa família esclarecida no tempo segundo uma genealogia. Mesma coisa do lado do Papai.
Por uma razão mecanicamente explicável, nós éramos mais do lado da mãe já que Papai chegou em nossa vida quando nós tínhamos 8 anos, depois de ter feito viagens no mundo inteiro. Na realidade, estávamos inteiramente emergidos nessa dupla instância maternal e feminina. E essa imersão foi um princípio de liberação do imaginário. Assim, hoje, nós temos provavelmente franqueado etapas e fronteiras que outros jamais não ousaram ou puderam simplesmente franquear. Essa espécie de jorro a céu aberto do imaginário foi para nós determinante.
Ph. B : Você faz então o laço entre o jorro do imaginário e a imersão nisso que você nomeia a dupla maternagem ?
G. B : É absolutamente claro. Se vivesse uma instância dual, uma dualidade paternizante, nós teríamos provavelmente tido um laço menos imediato, menos direto a esse imaginário, a essa audácia e também por trás dele essa felicidade de pensar. Nós descobrimos muito rápido que colocar questões era uma verdadeira felicidade. O desejo de saber, desejo de pesquisador e ao mesmo tempo a felicidade de colocar questões sem até agora desfrutar de resposta às vezes inacessível.
Ph. B : Em que e como sua mãe favoreceu essa felicidade de saber e essa boa-hora com o conhecimento ?
G. B : Nós encontramos tudo isso nela, um posicionamento muito generoso em relação às nossas questões. Generosa duplamente : trazendo respostas quando elas lhe eram acessíveis e ao mesmo tempo prolongando nossas questões voltando-se para sua própria mãe. Essa dupla articulação foi muito interessante, pois desse ponto de vista nós fomos duplamente enriquecidos, ao mesmo tempo por respostas diretas da Mamãe e por um eco e um fenômeno de vai e vem entre ela e sua própria mãe, do qual fomos testemunhas. Essas questões provocavam cenas de pensamento, cenas familiares.
Ph. B : O que você entende como cenas de pensamento e cenas familiares ?
G. B : Era uma espécie de théoriase, uma dimensão prima entre teatro e teologia. Esse colocação abismal das questões levou a uma encenação. A noite, depois do jantar, uma vez a grande mesa de carvalho desocupada e limpa, nossa avó e nossa mãe se colocavam nas duas extremidades e nós compartilhávamos de uma e da outra. Nós éramos por conseguinte quatro. Nesse momento, se colocava em cena questões, incluindo a famosa questão da origem. Nós perguntávamos para saber. Nessa época, nós tínhamos menos de três anos, dois anos e três quartos exatamente, era em junho, antes de nosso aniversário. Nós perguntamos de onde vem o universo? Essa cena era perfeitamente estruturada, lembro-me com exatidão. Nossa mãe nos explicou que o universo não era eterno. Então ela se virou para a própria mãe que lhe disse: «O universo nasce de uma poeira». E lembro-me dessa frase que permaneceu. Todo meu destino vem daí. E tudo se desenvolve nesse dia, esse belo dia de junho, à entrada do verão que anunciava uma imensa trajetória para nós.
Essa grande questão provoca em eco essas duas pequenas respostas trazidas por duas pessoas que representaram evidentemente para nós um papel incrível na representação. Tudo parte daí, dessa cena memorável que gerou nosso destino e dessa dupla maternagem da qual falei.
Notas:
1-. Igor et Grichka Bogdanoff, L’Effet science-fiction. » À la recherche d’une définition », Lafond, 1979.
Angkor: o reinado da pedra, por Damien Botté
«Sobre o que você vai trabalhar em cartel?» Chegou minha vez em que respondi: «Angkor!», no Encore, livro 20 do Seminário de Lacan. Enquanto analisante, não poderia passar ao lado dessa formação do inconsciente que assinalava a expressão de um desejo, um furo no saber diante do qual escolhi não ceder. Meu desejo de ir para o Camboja toma uma força decidida, afim de descobrir a imensa arqueologia de Angkor perto da vila de Siem Reap.
Do « sem mundo » ao significante
Nessa selva khmère, no início do VIIIe século, Yaśovarman, creditado ao título de « criador d’Angkor » e filho do rei Indravarman Ier, toma como empreitada a construção do primeiro templo-montanha em pedras, em arenito mais precisamente. Jacques-Alain Miller nota em Heidegger que « a pedra é sem mundo »(1), o que clareia o fato de que a pedra não pertence ao mundo do vivente. Ele recorda também que Lacan assinala « que é suficiente que a pedra seja erigida, erguida, para que ela possa tornar-se símbolo do phallus. Isso quer dizer que o significante sabe aproveitar das pedras e transformar à sua imagem, quero dizer em significantes »(2). Nesse momento preciso do fim desta edificação, a pedra que era « sem mundo » torna-se engajada no significante, desde que o conjunto dessas pedras porta um nome, o Phnom Bakheng, e marca « um território, um limite, aquele por exemplo de um espaço defendido, sacralizado »(3).
Assim « a pedra é sem mundo, sem mundo que seja o seu, mas o mundo do homem não é sem as pedras da qual ele faz um grande uso para seus projetos »(4). Em suma, a pedra é sem mundo até o dia em que ela encontra o caminho do significante, a ordem simbólica. Os ligams, que ornam todos os templos e lugares consagrados à Shiva, são também um signo marcante. O império Khmer conheceu seu apogeu no século XII antes de cair no esquecimento em torno do XVI. Os esplendores do lugar foram devastados e pilhados pela invasão siamese em torno dos anos 1430, que levou esses tesouros khmers à Ayuttaya, que foi por sua vez devastado pelos Birmans um século mais tarde. A cidade khmère está agora adormecida na selva e foi engolida em alguns séculos pela vegetação, como o presentifica ainda hoje a ganga vegetal do templo Ta Prohm, onde se entrelaça enormes raízes e de paredes que dão uma idéia do que era esse lugar antes de sua redescoberta. Só há Angkor Vat que resta em pé, pois é restaurado permanentemente. Ele continua a ser ainda hoje o mais grande edifício religioso do mundo.
As civilizações são mortais
Nós podemos aqui transpor o que diz J.-A.Miller a propósito das ruinas do Coliseu àquelas do sítio arqueológico de Angkor: «As ruínas encarnam às vezes a elevação e as grandezas das civilizações e a sua decadência, sua mortalidade. […] São fenômenos de pedras, e mesmo precisamente a pedra retornando à pedra, tornada inanimada depois de ter sido inserida em um modo de gozo […]. Essa pedra foi ao menos metaforicamente animada pelo espírito de uma civilização […]. É a cultura edificada sobre a natureza e finalmente arruinada»(5). Pierre Loti, quem assinala o nascimento de Angkor na literatura ocidental, ofereceu essa mesma constatação em um texto magnífico publicado em L’Illustration em 1911 e 1912: «Aqui onde foram palácios, aqui onde viveram os reis prodigiosamente fastuoso, de quem não sabemos nada, que passaram ao esquecimento sem deixar mesmo um nome gravado sobre uma pedra ou em uma memória. São construções humanas, esses altos rochedos que, agora, fazem corpo com a floresta e que as milhares de raízes envelopam, abraçam como polvos. Pois há uma teimosia de destruição mesmo nas plantas»(6).
Os impérios se criam, dominam de modo hegemônico depois desaparecem. À escalada da História, é um fato, tornou-se uma regra. Mesmo no nosso mundo pós-moderno, nós notamos bem que a Velha Europa e os Estados Unidos, em dívidas e desindustrializados, são muito pouco no nível econômico em relação aos crescimentos, em baixa mas sempre insolentes, de certos países asiáticos, lembrando a frase de Valéry: «Nós outras, civilizações, nós sabemos que somos mortais». As recentes e imensas construções arquitetônicas asiáticas, não mais em pedras, mas em aço e vidro, fazem no excesso para vestir e abraçar por sua vez o discurso capitalista. Elas no entanto permanecem aquém dos esforços consentidos para a edificação de cidades como aquela de Angkor: imensidão do sítio com suas dezenas de templos, de baixo relevos sem fim, esculpidos com uma precisão inacreditável, gigantescos fossos artificiais cravados pelas mãos do homem, quilômetros de muralhas, de portas finamente talhadas de vinte metros de altura como aquela da Victoire, de pontes decoradas por estátuas de Apsara e de Nâga, de centenas de enormes rostos de Brahmâ…
Segundo certas inscrições em sânscrito, a construção de Angkor Vat necessita trinta e sete anos de trabalho e a requisição de milhares de talhadores de pedras, escultores e de elefantes para transportar os blocos de arenito. Pierre Loti ousa a comparação: «E esse templo é sem dúvida, como aquele do Bayon destruído na floresta próxima, a mais pesada montanha de pedras que os homens tinham ousado construir, depois das pirâmides de Memphis»(7).
O Outro não existe, mas é «um lugar para ser».
O que impulsiona homens e mulheres a criar e a construir lugares assim grandiosos, tão magníficos do ponto de vista arquitetônico? O curso de J.-A. Miller «O ser e o Um» pode, parece-me, trazer respostas a essa questão: «O Outro não existe não quer dizer que o Outro não é. O Outro, o grande Outro, é […], enquanto tal, ele não é de todo subtraído do ser. […] O grande Outro, é um lugar de ser, o lugar ontológico onde se inscreve o discurso, o lugar que visa tudo dizer»(8). Essa distinção feita por J.-A. Miller entre o ser, que está do lado do semblante, do sentido, do equívoco, permite compreender que o homem, depois do início da civilização fez do Outro um lugar de ser na falta de poder fazê-lo existir. As diferentes cosmogonias egípcias fizeram nascer um lugar onde se inscreve um discurso, um lugar onde o Outro é, um lugar onde os faraós o honravam erigindo pirâmides gigantescas. A cosmogonia khmère, saída do hinduísmo depois do budismo, incita os reis construtores a representar o monte Meru através de seus templos-montanhas, e então a fazer ser o lugar que visa tudo dizer, a casa dos deuses da mitologia hindu. Em suma, o Outro não existe, mas podemos inventá-lo, fabricá-lo, quer dizer que podemos fazê-lo ser em um lugar, enquanto que «o Outro é somente um semblante»(9), apresenta um «estatuto de engano»(10), uma « estrutura de ficção »(11), e é isso que fizeram os homens e as mulheres depois do início da civilização. Não é questão aqui, incluindo em nossa era contemporânea, de generalizar a inspiração dos artistas para essa concepção do Outro, mas nós não podemos ignorar que um grande número de sítios arqueológicos foram edificados em honra desse lugar de ser que é o outro que não existe. A estátua de Zeus em Olímpia, o templo de Artémis em Éphèse e o colosso de Rhodes, todos os três desaparecidos hoje, fazem parte das sete maravilhas do mundo antigo e rendem homenagem a esse Outro para o fazê-lo ser. A Sagrada Família de Barcelona é um exemplo moderno, mesmo contemporâneo.
Pierre Loti o diz de sua maneira: «Tantos lugares de adoração exaltado que encontrei sobre minha rota e que respondem cada um a uma forma particular de angústia humana, tanto os pagodes, as mesquitas, as catedrais, onde a oração se eleva do fundo das almas as mais diversas! Tudo isso me fez entrever somente essa semi-prova tão fria da existência de um Deus que indicamos no curso de filosofia da minha juventude»(12).
Notas:
1 Miller J.-A., « Biologie lacanienne et événement de corps », n°44, La Cause freudienne, 2000, p. 23 : citação de Heidegger, Les concepts fondamentaux de la métaphysique (1930).
2 Ibid., p. 24.
3 Ibid.
4 Ibid.
5 Ibid., p. 27-28.
6 Loti P., Angkor, Paris, Magellan & Cie, 2013, p. 51.
7 Ibid., p. 71.
8 Miller J.-A., « L’orientation lacanienne. L’Être et l’Un », ensino pronunciado no quadro do departamento de psicanálise na universidade Paris VIII, leçon du 16 mars 2011, inédito.
9 Miller J.-A. & É. Laurent, « L’orientation lacanienne. L’Autre qui n’existe pas et ses comités d’éthique », ensino pronunciado n quadro do departamento de psicanálise na universidade Paris VIII 10 Paris VIII, leçon du 20 novembre 1996, inédit.
10 Ibid., leçon du 11 décembre 1996.
11 Ibid., leçon du 18 décembre 1996.