Éric Laurent
Originalmente em Hebdo-blog número 142
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Tomo esse termo, fim da história, no sentido em que, na perspectiva de Hegel lido por Kojève, o fim da história equivale à realização do Estado universal e homogêneo fundado sobre o reconhecimento por todos da irredutibilidade e livre individualidade de cada um. Quaisquer que sejam as imperfeições do estado de realização desse fim, ela existirá na medida em que “já deu lugar ao projeto da forma política última da História, o Estado universal e homogêneo, em que os homens não são nem Mestres nem escravos uns dos outros, mas todos ao mesmo tempo mestres e servos de todos, pois todos são livres e partes pertencentes de um sistema do Direito incontornável e mundial”(1).
Afastamos as discussões que sustentam o caráter verdadeiramente hegeliano dessas teses. Seguramente, há matéria para discussões. “Nem a tese do Estado mundial “universal e homogêneo” nem, por consequência, aquela do “fim da história” – no sentido em que Kojève entendia – são teses hegelianas. Certamente, alguma coisa está bem terminada e os tempos em que a arte e a religião construíam o sentido e a comunidade ficaram pra trás tanto e se equacionaram com a chegada da “prosa” do Conceito de universalidade do Estado (2). Deixo aqui de lado a questão de saber se esse fim é Real ou apenas uma hipótese discursiva. “O Estado universal e homogêneo jamais será real. Dito de outro modo, o Fim da História entendido como institucionalização completa do reconhecimento universal e homogêneo da irredutível individualidade de cada um é impossível. […] se o Homem é Nada que se nadifica no Ser, ou Liberdade entendida como Desejo do desejo, ele o será para sempre” (3).
Para articular em Kojève a possibilidade discursiva e a inexistência real do fim da história, Laurent Bibard, que isola assim essa oposição, pôde recorrer ao segundo teorema da incompletude de Kurt Gödel. “Aqui, a coerência e a completude discursivas implicam de uma só vez a incompletude e a incoerência políticas. Reciprocamente, supondo que a coerência e a completude políticas sejam reais (como Estado universal e homogêneo), a incoerência e a incompletude discursivas o seriam igualmente (como Silêncio ou impossibilidade tout court do Discurso)
Propomos aqui abordar um aspecto da incompletude discursiva que concerne ao modo de viver a civilização pós-histórica do saber absoluto, sua subjetividade.
A subjetividade do fim da história
Ao final de sua Introdução à leitura de Hegel, Kojève introduz em uma simples nota de rodapé a contradição maior que faz surgir a obra: o surgimento do saber absoluto leva ao fim do homem. Como então viver, para o homem do fim da história? “O desaparecimento do Homem ao fim da História não é, portanto, uma catástrofe cósmica: o Mundo natural permanece o que ele é em toda eternidade. E não é também uma catástrofe biológica: o Homem permanece na vida como animal que é em acordo com a natureza ou o Ser dado (l’Être donné). O que desaparece é o Homem propriamente dito, isto é, a Ação negadora do dado. […] Isso que quer dizer praticamente – o desaparecimento das guerras e das revoluções sangrentas. E ainda o desaparecimento da Filosofia; pois o homem, não mudando mais essencialmente ele mesmo, não mais tem razão de mudar os princípios (verdadeiros) que estão na base de seu conhecimento do mundo e de si. Mas todo o resto pode se manter indefinidamente: a arte, o amor, o jogo, etc. […] Em suma, tudo o que faz o Homem feliz (destacado por mim)” (5). O que é, então, essa felicidade pós-histórica? Não participa ela da descrição do “último dos homens” segundo Nietzsche? É a questão aberta pela apresentação “impressionante” dos heróis de Queneau no célebre artigo publicado por Kojève na revista Critique (6). O soldado Brû não é um Sábio: “ele não vive em plena metafísica porque ele não pensa geralmente em nada (ou, se pensa em alguma coisa, essa coisa é apenas a batalha de Iena) e consagra suas vastas distrações à identificação do nada de sua certeza subjetiva com a aniquilação do Ser-em-si temporal, concretizado. […] como um relógio, que lhe permite de contar até três, e mesmo no alto de sua sabedoria até quatro” (7). Lacan retomou essa análise e acrescenta sobre o personagem do Dimanche de la vie:
“A chegada do preguiçoso e do malandro, mostrando com total preguiça o conhecimento que serve para satisfazer o animal […] o repouso de uma espécie de sétimo dia colossal neste domingo de vida em que o animal humano pode colocar seu focinho na grama, a grande máquina ficando doravante regulada no seu modo mais preciso possível por esse nada materializado que é a concepção de conhecimento.” (8)
Entretanto, no modo de viver o saber absoluto, a posição de Lacan e a de Kojève são o reverso uma da outra. Kojève parece admitir, ao lado da animalidade comum, a figura do sábio, integrando nele as figuras do saber puro como verdade última e absoluta da consciência na civilização da ciência. Ele realiza em si uma “perfeita satisfação acompanhada de uma plenitude da consciência de si”. (9) Essa ausência de toda divisão “quer seja no sujeito, no saber, ou na satisfação” (10) está em oposição às concepções de Lacan e é contrária à experiência psicanalítica, seu desenrolar dialético e seu fim. Deste modo, a despeito dessa oposição, e em uma certa inversão dialética, o lugar da figura do psicanalista na civilização deve muito ao do sábio. O psicanalista segundo Lacan é, por excelência, um não-sábio de todo,(pas-sage du tout). Ele se mantém dividido, seu gozo lhe permanece separado, ele não sabe o que diz e se depara com o impossível de escrever a relação sexual.
O fim da análise segundo Lacan, e o dandismo de Kojève
Desde o início de sua obra, Lacan pensou a psicanálise em termos dialéticos. Ele introduz na psicanálise a função do desejo que havia sido isolada por seu mestre Kojève, sob a forma do desejo de fazer reconhecer seu desejo. “A mediação pela qual passa essa dialética abre sobre – ou emerge em – uma síntese que é essa, hegeliana da particularidade e do universal, de tal modo que Lacan pode definir o fim da análise como universalização pelo homem de sua particularidade. Essa universalização comporta que ele reconheça o que em sua particularidade é mentira em que apenas o universal dá a verdade (…) a particularidade tem seu nome freudiano, o narcisismo. Assim, lendo Freud com Hegel, Lacan é levado a conceber o fim da análise como uma travessia do narcisismo, já que essa relação fundamental à imagem de si espelha o universal (…) Deste modo, o fim da análise é em suma: como posso ser compatível com os outros? E, por aí, com a ordem do mundo? Sem renunciar a minha particularidade, mas, ainda assim, transformando-a, modelando-a.” .(11)
Essa transformação, essa modelagem é o que Kojève vai chamar o dandismo, como a única forma de vida possível depois da realização da igualdade formal dos sujeitos fundando o Estado pós-revolucionário, o que Tocqueville denunciou como o igualitarismo das condições, fundamento da homogeneização do Estado universal. Kojève introduz esse tema em uma crítica dos romances de Françoise Sagan, em 1956, apresentado por ele como uma nova figura do dandismo democrático. Ele desenvolve-o em sua nota final à segunda edição de Introdução à leitura de Hegel, e enfim em uma entrevista com Gilles Lapouge realizada pouco tempo antes de sua morte, em 1968: “Três homens compreenderam esse fim da história: Hegel, Sade e Brummell […]. Brummell soube que, depois de Napoleão, nós não poderíamos mais ser soldados […] o esnobismo é a negatividade gratuita. No mundo da história, a história se encarrega de produzir ela mesma a negatividade que é essencial ao humano. Se a história não fala mais, então nós mesmos fabricamos sua negatividade. O esnobismo vai longe, nós morremos por esnobismo”. (12) Essa proximidade do esnobismo e da morte, Lacan retoma-a, ainda que de outro modo, em sua concepção do que poderíamos chamar a sublimação da particularidade, que se diz, em termos hegelianos, ultrapassamento. “O ultrapassamento da particularidade narcísica passa pelo que poderíamos chamar de morte do sujeito depois do qual, nós esperamos que ela seja evidenciada pela Aufhebung hegeliana e que ela se supere na universalidade: a particularidade pereceu para que surgisse o acesso à particularidade”. (13)
Mais tarde, Kojève estendeu essa possibilidade do esnobismo a toda sociedade japonesa. A civilização japonesa “pós-histórica” se engajou em vias diametralmente opostas à “via americana”. Sem dúvida, não houve, para o Japão, Religião, Moral, nem Política no sentido “europeu” ou “histórico” dessas palavras. Mas o Esnobismo no estado puro criou lá as disciplinas negadoras do dado “natural” ou “animal” […] todos os japoneses sem exceção estão atualmente no estado de viver em função de valores totalmente ‘formalizados’, isto é, completamente vazios de todo conteúdo ‘humano’ no sentido ‘histórico’14”15. Essa possibilidade é uma abertura para o suicídio democrático japonês que se distingue da ética samurai. Sabemos como Roland Barthes dará sua própria tradução do encontro com o vazio japonês, o que nós podemos chamar, em termos lacanianos, a Coisa japonesa, em “Império dos signos”.
O Império Latino e o dandismo da pulsão.
Em sua nota de 1962, Kojève volta sobre o que percebeu do processo de completa uniformização dos modos de vida no mundo pós-histórico. Ele retoma o modo de vida engendrado pelo Estado universal e homogêneo como um retorno à animalidade. “Eu fui levado a concluir que o ‘American way of life’ era o tipo de vida própria do período pós-histórico, a presença atual dos Estados Unidos no mundo prefigurando o futuro ‘eterno presente’ da humanidade inteira. Deste modo, o retorno do Homem à animalidade surgiria não mais como uma possibilidade ainda a vir, mas como um certeza já presente”. (16) Antes da descoberta do esnobismo japonês, uma outra corrente de pensamento se apresentava a Kojève. É esse o interesse do texto de 1945 sobre o Império Latino, que, além de suas implicações para a efetividade da política francesa e suas veleidades de fazer existir o “Mediterrâneo”, conservava a ideia de que a uniformização dos modos de vida não poderia se fazer sem resto; em suma, que restaria um modo de vida diferenciado resistente aos procedimentos do Estado universal homogêneo. Entre esse Estado universal efetivo longínquo e o fim das nações, Kojève sustenta que a ‘Época é dos Impérios”, e o que ele chama deste modo são as “unidades políticas transnacionais, mas que são formadas por Nações aparentadas (…) O ‘parentesco’ das Nações é sobretudo e antes de tudo um parentesco de linguagem, de civilização, de ‘mentalidade’ geral”. (17) Certo, ele inclui que “esse parentesco espiritual se traduz entre outros pela identidade da religião”(18), mas, não poderíamos igualmente sublinhar que se trata menos de mentalidade ou de espiritualidade que de um modo de viver, de ser feliz de uma certa maneira? “Essa mentalidade é caracterizada no que ela tem de específica por essa arte dos lazeres que está na fonte da arte em geral por aptidão a criar essa “doçura de viver” (douceur de vivre) que não tem nada a ver com o conforto material, por esse doce não fazer nada (dolce far niente) mesmo, que degenera em simples preguiça apenas se não vier seguido de um trabalho produtivo e fecundo (…) e que permite assim transformar o simples bem estar burguês na doçura aristocrática de viver, e de elevar frequentemente até a alegria, os prazeres que em um outro ambiente seriam (e são na maior parte dos casos) os prazeres vulgares”. (19) Ele descreve assim o que se deve nomear o “esnobismo latino”. Ao modo de vida latino se opõe aquele do Império Eslavo-soviético, bem como o modo de vida do bloco Anglo-Saxão – ao qual se juntará muito rapidamente a Alemanha, pensa Kojève. “Pois a inspiração protestante do Estado prusso-alemão o aproxima dos Estados anglo-saxões modernos, nascidos também da Reforma e opostos aos estados eslavos de tradição ortodoxa”20. Que se trate muito mais de uma ênfase no modo de vida do que na religião nós podemos atestar através do lugar que Kolève dá ao Islã. “É no mundo latino-africano unificado que poderá ser resolvido um dia o problema muçulmano (…) Pois, desde as Cruzadas, o Islã árabe e o Catolicismo latino estão unidos em uma oposição sintética em muitos pontos de vista (…) Ninguém diz que, no seio de um verdadeiro Império, essa síntese de opostos não possa ser liberada de suas contradições internas, que são verdadeiramente irredutíveis somente quando se trata de interesses puramente nacionais”. (21) Em suma, o esnobismo como modo de viver na negatividade pura já é anunciado por esses modos de alegria (joie) irredutíveis que anuncia o Império Latino.
As leituras americanas de Kojève, transmitidas via Leo Strauss, formaram escolas opostas: a de Allan Bloom/Fukuyama e a de Huntington. Ao fim da história do primeiro respondia o choque dos modos de vida do segundo, uma vez que nenhum Império poderá resolvê-las. “Nesse mundo novo, a fonte fundamental e primeira do conflito não será nem ideológica, nem econômica. As grandes divisões no seio da humanidade e a fonte principal de conflito são culturais. Os Estados-Nação permanecerão os atores mais potentes na cena internacional, mas os conflitos centrais da política global irão opor as nações e os grupos relevantes de civilizações diferentes. O choque das civilizações dominará a política em escala planetária” .(22)
O que a psicanálise pode levar a esse debate é pôr em dúvida a consistência do termo Civilização. Diremos com Kojève que há muito mais esnobismos diversos, formas de viver a pulsão com dandismo. O esnobismo Kojèviano, e sua negatividade, é um dos nomes da possibilidade de viver no seio do Mal-estar nas civilizações. Nessa perspectiva, o futuro é menos o do choque que o de um encontro, em uma civilização da ciência, entre os diferentes esnobismos que ultrapassam a oposição multi-culti e o recolhimento em uma comunidade identitária nacional.