O som da água unifica as imagens, a imagem do corpo e
O poder de penetração das imagens mostra-se, hoje, crescente em uma realidade que admitimos cada vez mais como uma realidade virtual, separada do real impossível de ser representado. É uma realidade virtual promovida, sem dúvida, por antigas e novas mídias, da televisão à internet, por meio de uma fetichização da imagem exterior do corpo, a qual podemos bem dizer que se elevou como um novo objeto no zênite do universo social. É uma realidade virtual promovida também pela multiplicação das imagens do interior do corpo, cada vez mais ampliadas com as novas tecnologias de ressonância magnética e de neuroimagem. A unidade da imagem exterior do corpo fragmenta-se, assim, a partir do interior, quando se dobra como uma luva mostrando seu avesso de corpo despedaçado. A endoscopia do corpo, que em outra época fazia parte somente do delírio ou do sonho, é hoje uma realidade ao alcance do olhar que pode se situar em qualquer parte do organismo, apagando os limites entre seu interior e seu exterior.
II
Nós, analistas, escutamos um amplo leque de testemunhos dessa reversibilidade da imagem vinculada ao despedaçamento e à multiplicação da unidade imaginária do corpo. A primeira imagem do feto observada com perplexidade pela mulher que o carrega em seu interior; a angústia do adolescente que encontra a imagem de seu corpo difundida pelas redes sociais depois de uma primeira experiência de sexo virtual; a compulsão sintomática de outro, fazendo-a circular por essas mesmas redes; a jovem anoréxica que deve voltar todos os dias ao mesmo espelho da academia para nele buscar a única medida possível de sua compulsão em comer o nada do objeto oral que a corrói… A imagem revela, assim, seu múltiplo poder de captação do gozo do corpo, tanto no sofrimento do sintoma, quanto no prazer do fantasma.
A captura que a imagem produz na ordem da natureza foi muito bem estudada por Roger Caillois para distingui-la do poder que se desdobra no ser humano. Seu livro “Medusa y Cia” é uma referência lacaniana do maior interesse para esse tema. Nele, podemos ler: “No homem, a imaginação substitui o instinto; a ficção, a conduta; o terror projetado por uma obscura fantasia, o desencadeamento automático, fatal, de um reflexo implacável”(2).
A imagem condensa, assim, o imaginário da forma e a ficção da verdade veiculada pela linguagem, em uma só entidade que Lacan nomeou, no início de seu ensino, com um termo da tradição freudiana: a imago, formadora tanto das identificações como dos objetos de satisfação para a pulsão que, dessa maneira, se desfaz de sua referência ao instinto natural. Nada há de natural na relação do ser falante com a imagem na qual se reflete a opacidade de seu gozo.
III
Trata-se, em cada caso, da relação da imagem corporal – i(a) – com os significantes do Ideal do Eu – I(A) –, termos que Lacan distinguiu muito cedo em seu ensino para abrir caminho à significação do narcisismo na obra freudiana. Essa distinção pode encontrar-se já, embora não formulada desta maneira, em seu famoso texto sobre o “Estádio do Espelho”, com o qual Lacan fez sua entrada na psicanálise. De fato, o poder da imagem reside em sua “eficácia simbólica”(3), na relação com os significantes que conformam, no corpo, a unidade imaginária que chamamos Eu. Daí, deduzimos uma equivalência que determina o poder da imagem: “O imaginário” – como assinalava Jacques-Alain Miller na apresentação do tema do vindouro
X Congresso da AMP – “é o corpo”(4). E o corpo, à diferença do organismo, está capturado nas redes da linguagem.
Tal como sugere a citação do poeta que apresentamos na epígrafe, é o som da língua, das ressonâncias semânticas que o significante introduz no corpo, que dá a unidade permanente da imagem especular, unidade sempre virtual. Esta unidade, fundada a partir da imagem exterior do corpo, é, desde então, corpo da imagem, imagem corporificada a partir da qual será percebida cada imagem. “Se é verdade que a percepção ofusca a estrutura”, então, toda imagem leva o sujeito a “esquecer, numa imagem intuitiva, a análise que a sustenta”(5). A intuição da imagem eclipsa, assim, a estrutura simbólica que lhe dá sua unidade, seu poder e sua significação.
No próprio seio desta unidade – i(a) – encontra-se, sem dúvida, o objeto (a) que descompleta cada um dos efeitos da imagem. Descompleta sua unidade no ponto cego que o olhar introduz no quadro da percepção, olhar a partir de então separado do corpo. Descompleta também seu poder de sugestão ao revelar a causa do desejo que o sustenta sob as insígnias do Ideal do Eu. Descompleta, finalmente, sua significação ao fazer aparecer o semsentido de toda imagem (i) separada do objeto que recobre (a). A história da arte é um bom campo de investigação das diferentes formas pelas quais o objeto se separa de sua imagem, tornando parcial sua unidade. A fascinação produzida pelo tríptico “O jardim das delícias”(6), de Hyeronimus Bosch, evocada por Lacan em diversas ocasiões, representa o ápice desse semsentido na variedade de objetos separados da unidade imaginária do corpo.
IV
O estreito vínculo dessa operação de reversibilidade da experiência de gozo do corpo conheceu um episódio recente no Musée d’Orsay, episódio mais paradigmático do que escandaloso, com a performance de uma jovem artista expondo ao visitante a intimidade de seu sexo diante do famoso quadro de Gustave Courbet, A origem do mundo. Segundo suas próprias palavras, a obra batizada de Espelho da origem “não reflete o sexo, mas o olho do sexo, o buraco negro” para “mostrar o que não se vê no quadro original”(7). Mostrar o que não se vê, mostrar o próprio olhar como o objeto que só aparece como ponto cego da representação, é hoje a operação que se revela no mais íntimo, e, ao mesmo tempo, no mais exterior do império das imagens.
V
O vasto oceano do registro imaginário, com toda a consistência que adquire para o ser falante em sua realidade virtual, mostra-se, então, delimitado unicamente pelo horizonte, não menos virtual, que é o registro simbólico da linguagem: “o horizonte desabitado do ser”(8), como Lacan gostou de chamá-lo.
Uma imagem isolada desse horizonte, isolada da rede simbólica que a vincula ao próprio corpo, não tem de fato nenhum poder de significação. Este poder de significação foi formalizado por Lacan em seu primeiro ensino com o símbolo e a significação do falo, significante do desejo do Outro, significante também que enlaça a significação em uma cadeia significante.
A partir deste ponto, o poder da imagem é sempre correlativo à construção nele de um espaço simbólico que irradia seu poder de significação. O espaço do sujeito da fobia – claustrofobia ou agorafobia, espaço fixado em um objeto impossível de ser evitado ou disseminado em sua multiplicação ao infinito – muitas vezes nos ensina que deve esse espaço ao sinal enviado pelo desejo do Outro ao sujeito. Por outro lado, o espaço inabitável da criança autista também nos ensina a função e o poder de uma imagem desligada por completo da unidade de seu corpo, unidade que não pode simbolizar-se como ausente para o Outro.
O império das imagens revela-se, então, como aquele outro “império dos semblantes” que Lacan encontrou nos anos de 1970 em um Japão que antecipava sua ampliação em escala global.(9)
Nosso VII ENAPOL será, sem dúvida, a melhor ocasião para se estudar tanto as leis que o regem, quanto o real sem lei no qual se funda.
2-. Roger Caillois, “Medusa & Cia. Pintura, camuflaje, disfraz y fascinación en la naturaleza y el hombre”. Ed. Seix Barral, Barcelona, 1962.
3-. Jacques Lacan, Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 98. Lacan retoma aqui o termo de Claude Lévi- Strauss.
5-. Jacques-Alain Miller, retomando a referência de Lacan, na nota introdutória do “Quadro comentado das representações gráficas”. In:Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 918.
6-. Bosch, Hyeronimus, “O jardim das delícias terrenas”, 1503-1504, óleo sobre carvalho, 2,20 m x 3,90 m, Museu do Prado, Madri [N.T.].
8-. Jacques Lacan, Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 1998, p. 648.
9-. Jacques Lacan, “Lituraterra”. In: Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2003, p. 24.
*ENAPOL VII – Boletim Flash nº0.