Domingo à noite, zapeando, passei por uma entrevista de Marilia Grabriela a um médico psiquiatra e neurocientista, o Dr. Rodrigo Bressan. Cheguei bem no momento em que o psiquiatra explicava à entrevistadora que a relação entre uma alteração biológica ou neurobiológica e sua expressão, isto é, a doença que ela anunciaria, não é unívoca. Outros fatores do contexto social interferem, não sendo possível prever uma doença, mas apenas constatar a alteração e prever certa probabilidade de declaração da doença. Fui fisgado. Pois se trata da base mesmo que orienta nossos trabalhos na Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano, formulada claramente por Jorge Forbes: “há um gap entre o genótipo e o fenótipo”, e se a psicanálise tem eficiência é exatamente nesse espaço, porque a biologia não é nosso destino.
Continuei escutando, cativado, o psiquiatra explicando à entrevistadora que a “depressão bi-polar” não é simplesmente variação do humor, como ela entendia e como a imprensa muitas vezes o vulgariza. A proposta de tratamento combinando atendimento terapêutico e medicamentoso, para abordar os transtornos severos me pareceu, sem sombra de dúvida, uma medida esclarecida.
Não raramente encaminhamos paciente ao psiquiatra para permitir sair de um estado onde a intervenção psicanalítica seria sem possibilidade de eficiência, ou não poderia tirar o paciente de sofrimento em prazos razoáveis. Acostumado com declarações por vezes beirando a inconsequência de alguns neurocientistas, estava eu, frente à simpatia e à competência, aliada a uma expressão clara e viva, aderindo totalmente à conversa, interessado e intrigado pela proximidade das premissas da reflexão do entrevistado.
Então ele começou a explicitar o projeto que desenvolvia no quadro de uma equipe mais ampla: tratava-se de encontrar nos pacientes, diagnosticados com determinados transtornos psiquiátricos, marcadores neurobiológicos que caracterizariam a presença do transtorno. A partir dessa identificação seria possível então fazer a prevenção dessa doença em populações onde o transtorno não seria ainda declarado. Simplificando, poderia assim, em criança ou adolescentes em idade escolar, detectar chance de desenvolver ou não o transtorno identificado por um marcador. Um projeto de saúde pública. As medidas profiláticas seriam acompanhadas por uma sensibilização do público visando à informação, que o Dr. Bressan comparou à educação sexual no ensino médio.
Entendo que essas medidas possam ecoar como solução de bom senso e ilustração dos progressos que as ciências biológicas possam trazer à sociedade. Mas não posso deixar de pensar o quanto essas soluções “de bom senso”, retomam o sonho de uma sociedade sadia, que traduz bem a expressão de “saúde pública”, e que já foi o sonho do projeto higienista. É verdade, a psicanálise entrou no Brasil pelo canal dos higienistas do século passado, que nela viram a possibilidade de normalizar os indivíduos. Sei também que a medicina está cada vez mais sujeita a exigências de produção e de rentabilidade por parte das sociedades liberais que passaria por uma racionalização de suas práticas. E, se há uma área que por definição é resistente aos planejamentos e às perspectivas positivistas universalizantes, é aquela que toca a subjetividade.
A comparação com a educação sexual me parece esclarecedora: a informação responde, com atraso, à evolução das mentalidades. Que os “transtornos mentais” não sejam mais estigmatizados, só podemos aplaudir. Mas, que eu saiba, nenhuma educação sexual jamais solucionou os problemas da relação entre homens e mulheres.
Voltemos à entrevista: a entrevistadora estava absolutamente encantada, convencida dos bons frutos que tão bons projetos poderiam trazer à sociedade e aos pacientes. Eu, simplesmente perplexo, particularmente pela dificuldade que entrevia, apesar de partilhar bases relativamente próximas, pensava como seria possível dialogar com um projeto tão importante, pelos meios materiais e humanos que mobiliza.
Como a psicanálise poderia conversar com um projeto de visada universalizante? Nessa base, as terapias comportamentalistas que visam a uma normatização, a uma adequação do “comportamento” parecem o parceiro natural desse empreendimento da “saúde mental”.
Assim, estaria a psicanálise condenada a permanecer longe de uma parceria com as ciências biológicas, ou mesmo com a “ciência”? Não acreditamos, muito ao contrário, como o afirma Jorge Forbes, no seu artigo “A ciência pede análise”, que a ciência seja responsável “pelas tentativas atuais de contabilizar o humano e pelos absurdos ciframentos existenciais”. Mas enquanto seus projetos tentarão atender a políticas vinculadas a uma solução “para tudo e para todos”, a psicanálise, que oferece a cada um encontrar sua solução sem garantia, não encontrará espaço de diálogo.
O que me fez notar ainda mais claramente a situação excepcional de que usufruímos na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano graças ao engajamento perseverante de Jorge Forbes e a generosidade intelectual de Mayana Zatz, onde psicanálise e genética colaboram em respeito mútuo.
Alain Mouzat é professor da Universidade de São Paulo, doutor em linguística, e psicanalista membro do Instituto da Psicanálise Lacaniana
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