Praticamente nenhum significante-mestre em nossa época resistiu à comoção daquilo que o “desconstrucionismo”, acreditando-se agente, foi apenas um sintoma a mais. “Homem” e “Mulher” não tiveram uma sorte diferente, nem “Pai” ou “Mãe”, ou “Família”. Muito menos na disposição daquilo que se chama de política, “proletário”, “liberdade” ou “luta”. Há alguns anos, no curso de Jacques-Alain Miller, “A orientação lacaniana”, o próprio Miller e Éric Laurent descreveram a lógica dessa comoção e, assim, falaram da época do “Outro que não existe e seus comitês de ética”[2]. Não faz muito tempo, Graciela Brodsky (2002) nos recordava que um desses comitês – neste caso, um comitê ético-desportivo, para chamá-lo de alguma maneira – teve que se ocupar naquele momento de decidir sobre o sexo de uma mulher que, por sua vez, já havia decidido que o era.
Como Miller e Laurent nos mostraram, esta lógica de desmontagem do mundo até agora conhecido é uma lógica que não está isenta de paradoxos. Por um lado, alguns significantes ideais, aqueles que em outro tempo estiveram dotados de uma função reguladora, se encontram fragilizados; mas, por outro lado, isso não supõe uma simples desaparição das identificações por eles suportadas, senão antes sua multiplicação sob uma forma fragmentada e frágil o que, para complicar ainda mais, conduz à busca, a fim de sustentá-las, de algum núcleo de gozo sem o qual sua própria substância estaria ameaçada. Isto é o que deu lugar a todo um discurso sobre as identidades e os “estilos de vida”, que em um dado momento teve o destaque da descoberta e da reivindicação, para passar na atualidade a fazer parte daquilo que constitui nosso cotidiano sem que ninguém se dê conta… salvo, talvez, os especialistas das multinacionais encarregados de estudar formas de nos vender mais eficazmente determinados produtos “cool”[3]. No que mais se tem ganhado, não cabe dúvida, é no afeto de tédio a medida que ele está ligado à presença do mesmo, embora disfarçado de múltiplo, e com a falta do Outro, me remeto neste sentido à referência de Jacques-Alain Miller sobre os afetos (1986).
Foi neste contexto que, ao longo dos anos de 1980 e 90, se desenvolveu um amplo movimento (no mínimo se escreveu bastante sobre isso) em que a questão das identidades constituía um verdadeiro furor, e se encontrava no coração de toda uma série de reivindicações relacionadas com algum tipo de reconhecimento, respeito e restituição. Desestabilizada a tensão estrutural entre o significante ideal e o resto de gozo que por um lado causa o discurso e por outro lado é o seu produto, se promove sua equivalência forçada, que é precisamente o que funciona como uma “identidade”: isto é, um significante-mestre (por mais alternativo que pretenda ser) chumbado a uma modalidade especificada de gozo. Dizemos especificada, e não específica, para que ninguém se iluda: esta relação entre um significante-mestre e uma modalidade de gozo não é aquela, particular, que se deduz do percurso de uma análise e que vale somente para um sujeito em sua única e irreplicável aventura. Na política das identidades, se trata, em última análise, da constituição de grupos que, inevitavelmente, fazem desaparecer a dita particularidade, submetendo-a a um novo ideal, mesmo que este evite se apresentar como tal e reclame sua naturalização[4]. No entanto, sabemos que poucas coisas são menos perigosas do que um ideal que não se reconheça como tal, ainda mais quando é um ideal que inclui um empuxe a gozar.
Ao longo destes anos, que já são bastantes se dermos uma olhada para trás, acabou sendo produzida uma estranha coincidência, talvez poderíamos dizer um estranho casal (se falássemos inglês, poderíamos dizer an odd couple) entre a já velha noção de gênero e uma noção aparentemente oposta a ela, a de uma série de sexos ou formas de gozar relacionadas com uma multiplicidade de determinações genéticas, como Graciela Brodsky destacou na intervenção que mencionei. Passamos, portanto, insensivelmente, da ideia de gênero como construção social (sinônimo dos “sexos tradicionais”) a uma diversidade sexuada baseada em uma realidade genética que supostamente não admite discussão, senão somente exame, teste e prova.
É certo que referir-se a uma realidade genética para justificar a realidade sexuada pode aliviar alguns parlêtresde uma conversação para a qual não se sintam preparados, e talvez, certamente, não estejam mesmo. Mas, é muita ingenuidade denunciar os semblantes como tal em nome de um real molecular! Haveria de esperar os avanços da ciência genética para dizer o que a Commedia dell’Arte já havia dito há muito tempo, mas com uma modalidade de enunciação muito mais adequada, a do Witz? Por acaso há algo melhor que o chiste, em sua relação com o inconsciente, para dizer a cômica verdade do gender e as penúrias do sex?
Em suma, uma coisa é o semblante, outra é a mentira. Assim, dizer que o semblante é mentira é, por sua vez, mentira. A complexidade da natureza dos semblantes: tal é uma contribuição fundamental de Lacan, com aplicação muito clara ao campo da cultura, que Jacques-Alain Miller pôs em destaque em seu curso “A orientação lacaniana” publicado em 2002 com o título De la naturaleza de los semblantes. Voltando, então, ao Witz e a comédia, verificamos que são formas de tratar os semblantes, com particular ênfase os que se referem ao amor e ao sexo.
Todavia é possível dizer, entre outras coisas, que nosso mundo perdeu seu sentido de humor ou, pior ainda, a alegria de um bem dizer, e que existem muitos que preferem aspirar encontrar a cifra de seu destino sexuado na letra delirante de seu genoma. Deste modo, lamentavelmente, mas também ironicamente, como diria um anglo-saxão, os mesmos que se queixaram amargamente da psicanálise como suposta perpetuadora da chamada ordem “falogocêntrica” (horrível palavra, é preciso dizer) estão dispostos agora a tomar com uma alegria bem idiota sua carteira de identidade genética no balcão da polícia científica, ou da ciência policial, documento que lhes daria todos os direitos que, segundo dizem, se derivariam do pertencimento a uma espécie de raça sexual.
Como se passou de uma opinião a outra? Como se passou da alegria infantil de fazer cair os semblantes sexuais de sempre à estupidez de identificar-se com uma raça sexual mais moderna? O que ocorre é que não há uma verdadeira oposição entre o que num primeiro momento se centrou na denúncia da facticidade (autoritariamente imposta) do gênero e a “feliz redescoberta” do real do sexo biológico que, segundo dizem, desmente a autenticidade dos antigos sexos “falogocêntricos”. Que os que reivindicam posições aparentemente inconciliáveis sejam muitas vezes os mesmos, nos demonstra que não existe uma verdadeira incompatibilidade entre elas, senão que se trata de dois aspectos do mesmo, embora, isso sim, modulados pela sobreposição do tempo e pelos acontecimentos científicos que entretanto foram produzidos e que, como não podia deixar de ocorrer, tiveram seus efeitos de sentido, deixando sua marca no delírio universal sobre a relação entre os sexos. Nem por isso é necessário colocar de lado como fator causal o cansaço, o esgotamento das possibilidades de um discurso, sobretudo quando já se produziu tudo o que se poderia produzir como realidade social, o que mesmo não sendo muito, não quer dizer que seja nada.
Já em “O Outro que não existe e seus comitês de ética”, Miller e Laurent expuseram que a orientação a respeito dos significantes ideais deveria ser pensada em paralelo com uma falta de orientação com respeito ao real, um estado, se nos permitem a expressão, “en peine de réel”[5]. Eles se referiam à necessidade da categoria psicanalítica do real como orientadora e aos efeitos de sua ausência. Mas está claro que o real não evapora assim de repente, pelo menos sua falta se faz sentir de alguma forma e produz uma procura, por mais extraviada que seja. Com isso, se num momento determinado da história o efeito da ciência e o discurso capitalista, conjugados, apoiam o ataque contra os semblantes, no tempo seguinte será restabelecida uma nova versão do real, seja qual for, para cobrir o vazio suposto pelo vertiginoso horizonte onde “tudo é semblante”. Nós, como psicanalistas, não aceitamos este falso real que se autoproclama como tal. Dizemos que é um falso real, não porque discutamos a validade científica de determinadas descobertas, senão na medida em que sua interpretação e seu uso vão mais além do domínio delimitado de onde as ditas descobertas se produzem.
Não é nossa intenção debater com os investigadores do genoma. Contudo, não podemos permanecer mudos diante de formas contemporâneas de eugenia. Alguns que se horrorizam frente à apologia hitleriana da “raça ariana” e seu projeto de produzi-la, não retrocederam diante da promoção de tantas raças de gozo como estilos de vida que se possa imaginar: raças de surdo-mudos, de homossexuais, de lésbicas… A referência concreta aos surdo-mudos se deve aos casos que tiveram lugar em debates recentes na imprensa.
Por outro lado, já é possível observar outra mudança de tom, o centro de gravidade do debate se desloca. Uma vez que o discurso sobre as identidades sexuais tende a se considerar quitado pelos avanços da ciência, passando da ênfase posta no “gender” à ênfase colocada no “sexo genético”, ganha maior força outro debate que, até certo ponto, é consequência do primeiro. Por ter sido demonstrada a facticidade dos gêneros sexuais tradicionais e a realidade dos sexos científicos, o que agora está em questão é a facticidade do parentesco, algo lógico, dado o vínculo estrutural entre ambos os domínios do discurso[6]. A paixão desconstrutivista, ou o ataque aos semblantes, para utilizar uma expressão de Jacques-Alain Miller em uma de suas conferências sobre “O Parceiro-sintoma” (1998), toma agora este caminho. Podemos comprová-lo observando o curso ao longo do tempo de algumas publicações significativas: em 1993, Judith Butler publicava seu livro “Bodies that Matter”, sobre uma interessante discussão sobre a noção de real entendido por ela como representante representativo da psicanálise lacaniana (Zizek)[7], para defender a ideia de “performatividade”[8] da produção dos sexos mais além das óbvias debilidades da versão desconstrutivista do gênero; mas esta mesma autora publica no ano 2000 “Antigone’s Claim”, para extender sua mesma ideia de performatividade ao domínio do parentesco. Podemos considerar que este deslocamento é em si significativo. Permita-me citar um parágrafo deste livro:
“Consider that in the situation of blended families, a child says “mother” and might expect more than one individual to respond to the call. Or that, in the case of adoption, a child might say “father” and might mean both the absent phantasma she never knew as well as the one who assumes that place in the living memory. The child might do it at once, or sequentially, or in ways that are not always clearly disarticulated from one another. Or when a young girl comes to be fond of her stepbrother, what dilemma of kinship is she in? For a woman who is a single mother and has her child without a man, is the father still there, a spectral “position” or “place” that remains unfilled, or is there no such place or “position”?… And where are two men or two women who parent, are we to assume that a primary division of gendered roles organises their psychic places within the scene, so that the empirieal contingency of two same-gendered parents is nevertheless straightened out by the presocial psychic place of the Mother and Father… that ever psyche must accept regardless of the social form that kinship takes?”[9]
A psicanálise não pode permanecer muda diante destas perguntas, embora algumas delas possam parecer-nos de fácil resposta, quase óbvias. Entretanto, nada deveria nos parecer óbvio se queremos intervir na conversação que na atualidade está em jogo. Por isso, as leio aqui hoje, para que levemos a sério o trabalho de responder a elas.
Assim, vemos que existe uma estreita relação entre o tema do “gênero” e o tema do parentesco. A psicanálise lacaniana nos permite ver que o nexo entre ambas as temáticas não é outro senão o da inexistência da relação sexual, que desemboca em formas indefinidas de suplências (sempre sintomáticas, supostamente) da dita inexistência da relação. No fim das contas, o parentesco tem sido por séculos, dentre outras coisas, uma forma de regular e de estabilizar, mediante a produção de certas ficções (no sentido benthamiano promovido por Lacan[10]), os efeitos da inexistência da relação sexual e suas consequências desestabilizadoras e angustiantes no laço social.
Não é de se estranhar que a desconstrução dos sexos como “genders” leve à desconstrução do parentesco como ficção. Tudo se solucionaria, como ironiza Lacan[11], se a relação sexual pudesse ser ancorada no único plano em que há uma existência “efetiva”, isto é, entre o espermatozoide e o óvulo. A partir desse núcleo, se poderia deduzir então, por um lado, dois sexos; por outro lado, o sistema de parentesco.
Nesse ponto, para que se tenha uma maior perspectiva sobre o tema que nos ocupa, convém remetê-lo à história. Nos custa – até este ponto estamos imersos em seu horizonte – darmo-nos conta do peso da contribuição do cristianismo à produção de uma ficção naturalista, a de família biológica, completamente estranha ao pensamento antigo. De fato, a antiguidade tratava o parentesco muito mais como uma ficção necessária do que como uma coincidência entre a natureza e Deus.
Com isso, a primeira desconstrução, avant la lettre, foi a da família romana, por obra e graça do gênio do cristianismo, e isso em nome de um parentesco delirante que faz a todos os cristãos irmãos entre si e filhos, cada um deles, de um único e verdadeiro pai que está nos céus. O cristianismo também denunciou o parentesco romano como um semblante: em alguma epístola podemos ler a chamada a odiar o pai e a mãe, como falsos, porque o verdadeiro pai está nos céus e os verdadeiros irmãos são irmãos na fé.
Uma vez mais, desconstruir uma ficção necessita (ou custa) um delírio. A ciência, por sua parte, já serviu mais de uma vez a esta tarefa. Em todo caso, como nos ensina Lacan, os semblantes, não por serem semblantes, são menos importantes. Podemos resumi-lo com o célebre aforismo lacaniano: “Pour pouvoir s’en passer il faut savoir s’en servir”[12].
Por outra parte, no que se refere à modernidade, não cabe dúvida de que a psicanálise representa um passo fundamental na crítica dos semblantes do sexo e do parentesco, ao mesmo tempo mostrando qual é sua estrutura e, até certo ponto, denunciando sua facticidade. Isto, que se pode ser visto já em Freud, é óbvio em Lacan. Resulta tristemente cômico que alguém quisera ver na doutrina lacaniana uma defesa intransigente de papai e de mamãe, quando duvido que alguém antes dele tenha vinculado tão estreitamente a posição paterna à impostura. Mas isso não é o mesmo que denunciar furiosamente a impostura sem considerar seu caráter estrutural – e sem saber também que diante desta problemática somente poderá haver uma solução sintomática.
Em todo caso, a psicanálise nem fica satisfeita com a demonstração da facticidade do sexo ou do parentesco, nem necessita tão rapidamente cobrir essa brecha com um suposto real tomado emprestado do discurso da ciência, nem precisa criar mais mitos (com Totem e tabu, o mito freudiano, tal como Lacan o lê, podemos fechar nossa conta). Por isso, não precisamos nem da noção de gender nem da definição de raças sexuais, nem de novos modelos para o parentesco (Antígona contra Édipo, como no caso do livro de Judith Butler mencionado antes).
Certamente, os semblantes são um assunto complexo e delicado, e sua relação com o real outro tanto. Mas a psicanálise não deixou de ocupar-se disso.
Ao contrário do que está implícito na noção de gender, desde Freud o sexo é um significante que nomeia uma divisão. Essa divisão encontra diversas modalidades de articulação que, por sua vez, coloca em jogo os três registros, real, imaginário e simbólico, de diferentes formas. Dizer gender, paradoxalmente, significaria afirmar que existe uma identidade sexual (não importando se é verdadeira ou falsa). Denunciar uma identidade como falsa supõe que haveria alguma outra mais verdadeira. E o que vemos na clínica, nosso laboratório, é outra coisa muito diferente: a presença constante de uma não-identidade tratando-se de algo que ė, por sua vez, muito real, e que adota formas sintomáticas em todos os níveis, sendo portanto impossível de suturar.
Se tratássemos de descrever os resultados de nossa observação no domínio clínico que nos é próprio, na verdade não poderíamos agrupá-los sob o título de uma clínica da identidade sexual. Seria mais conveniente agrupá-los sob o título de uma clínica da não-identidade. Darei uma rápida amostra dos planos diversos nos quais se situa esta não-identidade, para demonstrar como tudo isso requer por parte de Lacan, a introdução do termo sexuação:
Em primeiro lugar, o sujeito do inconsciente como tal não tem sexo, como também não tem sexo nenhum significante que represente um sujeito para um outro significante (para sustentar a “igualdade” não necessitamos se quer recorrer ao termo “pessoa”).
Em segundo lugar, tudo indica que a situação do sujeito a respeito da realidade sexual é um processo dotado de uma temporalidade complexa, estreitamente relacionada com o tempo lógico, que só imaginariamente dá a impressão de coincidência com o desenvolvimento. Trata-se de um processo de escolha, ou melhor dito, de adoção, para usar um termo ao que Lacan recorre: “a adoção por parte do sujeito do tipo ideal de seu sexo”. Aliás, este termo aponta felizmente para o entrecruzamento entre sexo e parentesco.
Por outra parte, se constata que esta “adoção do tipo ideal do seu sexo” se produz de uma forma que implica necessariamente a referência ao Outro sexo, mas também ao sexo do outro.
Numa outra ordem das coisas, a medida que avançamos com a descrição detalhada do papel que joga o Outro sexo, advertimos que a posição do sujeito homem e do sujeito mulher com relação a esta função não é simétrica, uma vez que grande parte do que para ela está jogo no processo de sexuação consiste em “fazer-se outra” ela mesma para o parceiro e, de passagem, para si.
Além disso, a referência do “tipo ideal de seu sexo” implica, obviamente, que as identificações estão em jogo, mas se o sujeito do inconsciente não tem sexo, o caráter sexuado das identificações que o constitue seria problemático. Em todo caso, se comprova que, embora a sexuação coloque em jogo necessariamente as identificações, há algo na sexuação que não se pode reduzir à identificação, nem pode ser reduzido por ela. Assim, a sexuação não só “resiste” à identidade, senão também à identificação. Podemos entender isto um pouco melhor colocando em jogo a categoria do real do gozo que resiste, por estrutura, a ficar subsumido sob qualquer identificação, seja esta imaginária ou simbólica.
Finalmente, o fato de que o sujeito nunca está concernido unicamente pela escolha de “seu sexo”, senão também, no mínimo, pelo sexo do outro, é demonstrado pelo esforço que ele coloca na escolha de seu parceiro sexual e, correlativamente, pelas dificuldade de se fazer credível para si mesmo a sua opção sexuada sem o apoio (usemos esta palavra com toda sua ambiguidade) de algum parceiro. Para dizê-lo simplesmente: se realmente houvesse algo assim como uma identidade sexual, estaríamos tão preocupados com o parceiro? Não se percebe, no acento agudo que tem a questão do parceiro na vida do sujeito, a insuficiência de qualquer elaboração do problema do sexo em termos, já não somente de identidade, mas inclusive de identificação? Se alguém fosse de verdade um homem, para que necessitaria de uma mulher? Se fosse de verdade uma mulher, por quê se fixaria tanto nas outras em busca da Outra?
Tal é a razão que fez Lacan nos proporcionar a melhor solução que até agora conhecemos do problema, quando em seu seminário Encore, nos dá a tábua da sexuação, centrada nas alternativas que se oferecem ao sujeito falante em sua relação com a função fálica. Note-se que o significante que está em jogo na dita função é um significante especial, significante do gozo, o qual já implica uma referência ao real que supõe que a função não pode ser resolvida em termos de identificação. Melhor dizendo, a identificação com a posição homem se produz através de um traço negativo: o que todos os homens têm em comum é sua diferença a respeito da função impossível – e como tal inscrita como exceção, como limite – que encarnaria o pai de Totem e tabu, aquele que seria ao mesmo tempo o “verdadeiro pai” (alguém que nunca foi filho) e o “verdadeiro homem”. Neste ponto, vemos como, em algum lugar do universo do discurso, a questão da sexuação e do parentesco têm que convergir de alguma forma. Por outra parte, a localização de um ser falante desse lado da tábua não o exime de estar concernido por uma outra opção, excêntrica em relação ao falo, a posição feminina, que na maioria das vezes ele explora através do parceiro sexuado, mas que também constitui um horizonte de sua própria experiência (horizonte que percorre quer seja em sua relação com o gozo em sua vida erótica, em seus sintomas, em sua loucura ou em sua atividade artística).
Este outro lado da tábua, presidido pela fórmula da inexistência de um significante da mulher, resume as conhecidas vicissitudes clínicas da histeria em busca da feminilidade, mas também o caráter “sem limite” do amor feminino e, finalmente, toda uma experiência da psicose que demonstra que é a invenção de algo no lugar desse significante que não existe o que, algumas vezes, na falta da função fálica, funciona como nó estabilizador do significante com o real. Também está inscrito na tábua, mediante flechas que cruzam de um campo a outro, o fato de que – como já foi indicado – a função sintomática do parceiro demonstra que não existe solução plena em termos de identificação.
Quero terminar expondo que em tudo o que foi dito sobre o gender, seja situando esta categoria como única, que seja contrapondo-a a algo mais real que seria o sexo, assim como na oposição desta perspectiva ao que nos interessa na psicanálise, há algo que me faz pensar naquela expressão inglesa, título de uma comédia de Shakespeare: “Much Ado about Nothing”, que foi traduzida para o espanhol recorrendo-se à expressão popular “Mucho ruído y pocas nueces”[13].
Deixe-me jogar um momento com o bom e o mau desta tradução. A tradução espanhola é, por um lado, ruim e, por outro lado, boa. É ruim porque não permite ver a profundidade da ironia shakespeariana, em uma obra onde tudo o que está em jogo é a grande mascarada da relação entre os sexos, com seu grande cortejo de sedução, ou seja, nada. A genial versão cinematográfica de Kenneth Branagh destacou a hiperbólica agitação incessante dos corpos sobre o fundo desse contundente significante do título: “Nothing”. E é disso que se trata: de um grande esforço em torno do nada, esse nada sendo ao mesmo tempo tão tênue e tão sólido que chamamos de castração em nosso idioma psicanalítico. Dizemos tênue e sólido porque não há nenhum nada que não convoque uma resposta do real, do que resulta o sintoma.
Ao que nos diz respeito: a descrição fiel e respeitosa de todo esse “much ado about nothing” na vida de um sujeito em particular, um por um, é o que dá lugar a uma clínica, clínica que sempre põe em jogo a sexuação como uma decisão sobre o fundo de um impossível. Na lógica que nos concerne, o impossível reclama uma conclusão não dedutiva, e sempre a obtém por mais complexa que seja a temporalidade na que se produz.
A tradução espanhola é boa, por sua vez, para descrever a impressão que nos produzem todos os rios de tinta[14] que foram derramados para demonstrar que os semblantes são semblantes, que a verdade, se houver, estaria em outra parte: isso é, sem dúvida, “muito barulho para poucas nozes”.
Do que agora se trata é de impedir que, depois de fazer tanto barulho, saiam silenciosamente para buscar suas “nozes” no suposto real da genética. Por nossa parte, não temos “nozes” para oferecer, senão ossos. Me refiro à expressão de Jacques-Alain Miller, “o osso de uma análise”. Um osso duro de roer, mas ao mesmo tempo é o único ao que alguém pode de verdade agarrar-se em sua vida de mulher ou de homem.
Tradução: Nelson Matheus Silva (Cartelizante EBP-Seção Pernambuco)