EDITORIAL
por José Martinho
Embarcámos no digital.
Com novos sete pecados, diz o Facebook, mais a sua redenção: satisfarão a vossa preguiça com a Netflix, a gula com PedidosYa, a inveja com o Instagram, a ira com o Twitter, a avareza com a Amazon, a luxúria com o Tinder e a soberba com o Linkedin!
Mas as satisfações que tudo isso pode trazer não fecham a questão de saber como educar, governar e psicanalisar no século XXI.
Em 1937, Freud tinha avisado os professores, políticos e psicanalistas que as suas profissões eram impossíveis, porque deixam na realidade restos que não podem controlar. É isso que sabem ainda hoje aqueles que permanecem abertos ao real que não obedece a leis, nem vai em cantigas.
Portanto é este indomável real que a ciência e a tecnologia têm procurado dominar. Esforço inglório, diga-se, que não consegue travar o mal-estar na civilização.
Freud concebia os instrumentos da “tecnologia forjada pela ciência” como órgãos auxiliares que superam a limitação dos nossos órgãos sensíveis e motores, ao mesmo tempo que acrescentam à natureza humana poderes divinos e diabólicos.
Depois do braço ter ficado armado com o arado e a espada, e a cabeça com o livro, onde cabe já um Cosmo, o telescópio e o microscópio vieram prolongar a vista, enquanto o telefone surgiu como uma extensão da voz. Por sua vez, o automóvel, o comboio, o transatlântico, o avião e a nave espacial aumentaram a velocidade de locomoção e encurtaram os tempos e os espaços.
É ainda nesta série de “próteses” que virão incluir-se as prodigiosas máquinas – computadores quânticos, telemóveis inteligentes, etc. – da civilização implantada pela revolução digital.
A maioria dos novos objectos que a tecnociência e o capital colocam agora no mercado são gadgets, mas que oferecem satisfações substitutivas que não convém de modo algum ignorar.
Para aceder ao sistema destes objectos é normalmente necessária uma palavra-passe. Mas continuam a ser os impasses encontrados no sistema que melhor mostram o que lhe resiste.
É com esta precária bussola que o educador, o governante e o psicanalista terão de abordar o real desbossulado com o qual se confrontam hoje. É também a isso que se dedica o número 03 da Desassossegos.