Não há sossego: uma leitura
Filipe Pereirinha[1]
José Martinho é um caso raro, senão mesmo, de um certo ponto de vista, único. Falo não apenas do seu interesse por Pessoa, como, mais ainda, da ousadia que sempre teve de pensá-lo com Lacan.
É raro porque, sendo compreensível que a maior parte dos leitores, e mesmo dos críticos literários, seja, embora infelizmente, estranhos a Lacan, já é menos compreensível para mim que os próprios lacanianos quase passem ao largo de Pessoa, salvo uma ou outra meritória exceção, como se ele não importasse ou, muito simplesmente, não soubessem o que fazer com aquilo, ao contrário do que aconteceu com outros nomes grandes da literatura universal, por exemplo Joyce, a quem Lacan dedicou quase integralmente um seminário.
Tenho-me perguntado, às vezes, se não há aqui uma espécie de angústia da influência, como diria Harold Bloom: uma vez que Lacan não falou de Pessoa e outros, que poderiam ter falado, praticamente também não o fizeram, ao contrário de Joyce, como disse, sobre o qual se escreveu tudo e mais alguma coisa, onde se apoiar, então, a fim de empreender o risco de ler Pessoa com Lacan?
E, contudo, não faltaria em Pessoa matéria prima e em Lacan os instrumentos adequados para tal. Mesmo sabendo que não se trata, jamais, de aplicar uma grelha qualquer de leitura prévia, exterior ou, pior ainda, interpretativa da obra, como se esta fosse um reflexo de um qualquer distúrbio mental, mas antes de mostrar como, de algum modo e à sua maneira, Pessoa confina com Lacan, visando com sua escrita algo para o qual este último aponta ao longo de todo o seu ensino e, em particular, no que convencionalmente se chama hoje de último e ultimíssimo, graças nomeadamente à orientação lacaniana efetuada por Jacques-Alain Miller ao longos dos últimos anos. É isso que José Martinho tem vindo igualmente a fazer à sua maneira, tanto em seminários – o último justamente dedicado a Fernando Pessoa e ao desassossego – como em diversas intervenções e escritos, incluindo uma revista homónima cujo título é já indicativo daquilo de que se trata: desassossegos.
Poderia destacar aqui, pelo menos, três momentos do percurso efetuado por José Martinho em torno de Pessoa: o primeiro num pequeno livro intitulado O que é um pai? (1990), onde Pessoa, a par de outros nomes, constitui já uma resposta singular para a questão enunciada no título: a paternidade.[2] Mais tarde (2001), no que poderíamos chamar o segundo momento, José Martinho vai dar todo o realce ao sinthoma – escrito assim mesmo, com esta grafia proposta pelo último Lacan – de ou dos Pessoa.[3] Este é já, digamos, o ponto de partida para o terceiro momento, o presente (2020), onde se retoma, desde o resumo inicial, a questão mobilizadora: como ler Pessoa e, em particular, esse livro descosido e fragmentário que inspira o título do ensaio de José Martinho: não há sossego.[4] E a resposta é simples: para não escorregar no que está na cabeça – seja do leitor ou do próprio autor deste livro singular – é preciso, o mais possível, ater-se ao que foi ou ficou escrito ao pé da letra. Mas claro, sobre o que ficou escrito já muita coisa se disse e muita leitura divergente se fez. Interessa, por isso, saber qual é a proposta inédita e original que nos traz este ensaio, inclusive em relação ao que já tinha sido adiantado em livros e incursões anteriores por parte do autor. Ou seja: o que há de novo aqui?
Eu diria, resumindo, que há muita coisa nova – incluindo até a novidade, não despicienda, de alguns dos mais prestigiados leitores, editores e responsáveis da obra de Pessoa, à cabeça dos quais está Jerónimo Pizarro, juntamente com Paulo de Medeiros e Onésimo Teotónio Pereira, terem, finalmente, reconhecido o interesse e a pertinência de uma leitura lacaniana – e outras menos novas, mas, ainda assim, retomadas de forma nova e à luz do que foi mais recentemente investigado, pensado e enunciado por José Martinho. Porém, desde logo, há uma ideia geral: Pessoa, cada vez mais lido, ao contrário de Joyce que, tal como pretendia, aliás, dá hoje sobretudo trabalho aos universitários, está porventura para o século XXI como Joyce esteve para o século XX. Ou seja: Joyce fala do fim da literatura – é, por assim dizer, um requiem ou um golpe de misericórdia em relação à mesma, levando literalmente a letra (letter) para o lixo (litter) – enquanto Pessoa anuncia um novo mundo que já estamos a viver e que exige, nomeadamente da parte do psicanalista, uma atitude, uma postura e, sobretudo, uma resposta. José Martinho – para quem Pessoa tem em grande medida o mesmo papel que Joyce tinha para Lacan – vai buscar o termo inspirador e decisivo ao lugar onde ele é mais patente, o título desse livro singular que não é livro, a não ser por um fantasma a posteriori – desassossego – o qual não deve ser confundido ou, pelo menos, reduzido, a termos similares, seja inquietude, angústia, ou mesmo intranquilidade, mas que constitui antes um nó complexo que importa deslindar; livro esse que é objeto de uma acutilante e exaustiva – por vezes densa e concentrada – travessia, retomando em particular vários termos e expressões que o povoam, caracterizam, cosem e descosem, onde os sonhos e respetivos fragmentos têm um papel considerável e nos introduzem propriamente nisso que Pessoa chama – e José Martinho destaca – o entreser.
Em resumo, trata-se de introduzir o desassossego na psicanálise contemporânea, o que deve ser lido – e escutado – em toda a sua amplitude, polissemia e ressonância: não apenas como a chamada de atenção para um termo relativamente corrente da língua portuguesa, mas toda uma ideia e uma ética sobre o que é um psicanalista e qual a natureza ou o estilo da psicanálise que José Martinho advoga e pratica hoje em dia. É, pois, a forma como ele lê atualmente Pessoa e, não menos importante, como o próprio Pessoa se leu – por meio dos seus escritos e invenções múltiplas e singulares – e nos ajuda igualmente a ler-nos a nós próprios e ao nosso desassossego contemporâneo, isto é, às manifestações do real incurável com que temos hoje de nos haver.
O ensaio é constituído por diversas partes. Em cada uma delas se trata de explanar e bem dizer – sempre com a ajuda da letra e do texto pessoanos, como convém – não só o que desassossegava Pessoa, mas o que desassossega ou pode desassossegar, isto é, tirar simultaneamente do sossego e do ponto cego – socego – tanto o sujeito como o leitor e, por maioria de razão, o psicanalista contemporâneo, visto que José Martinho é um psicanalista com uma clara orientação na psicanálise e é enquanto tal – como esclarece desde o princípio – que se trata de ler Pessoa. Contudo, se eu tivesse, entre todas, que destacar uma parte – não porque as outras não mereçam igualmente uma leitura atenta e sejam menos importantes e esclarecedoras, mas porque me parece ser nesta que confinam ou de onde partem os diversos fios que dão consistência às demais, como, de resto, o nome já o indica de forma sonante – seria: o novelo e os nós. Na verdade, seja um nó na garganta, no estômago, na alma ou um nó górdio – o que é um excelente nome para o sintoma que atrapalha ou desassossega a vida do ser que fala e é falado – é sempre algo envolvendo fios que se atam ou desatam, tecem ou costuram, enfim, que por vezes exigem sofrer um corte para que outra coisa – por exemplo a escrita, na sua diferençaabsoluta – possa advir, como foi o caso em Pessoa. Ou seja, trata-se de fazer um outro uso dos mesmos fios, como é bem percetível na palavra desassossego, que já não é tanto a marca de um impasse, mas sobretudo o nome de uma marca, se é possível dizê-lo assim: a marca ou as marcas contingentes, mas indeléveis – hoje muito vendáveis, aliás – que Pessoa imprimiu de forma singular na literatura, depois de o terem marcado no corpo e na alma. Ou, como diz José Martinho, pensando declaradamente do Livro do desassossego, este foi o ato falhado mais bem-sucedido de Fernando Pessoa, até porque não cessou de ser editado, reeditado, lido e traduzido em diversas línguas e, enfim, elevado à categoria de obra-prima universal.
O que é espantoso, no fim de contas, é como esse emaranhado de figuras de cordel que serviu para atar a solidão do poeta, na sua diferença absoluta, com o cristal da língua, nos continue hoje a tocar, como se entre nós, leitores desta obra, e a solidão de uma escrita, houvesse, não obstante, encontro. É, aliás, o que sobra para aquele que chega ao fim de uma análise ou de uma leitura: a contingência dos encontros sobre um fundo de impossível. E para o analista, em particular, o que Fernando Pessoa pode ensinar, para além de édipo e da função paterna, é como, graças a uma certa prática da letra, os fios de cordel se podem, não obstante, atar, ou, pelo menos, forjar um certo arranjo ou emaranhado de fios que segure o sujeito de cair, simplesmente, na boca do inferno.
Enfim, acordar para a constatação de que não há sossego, talvez nos permita encarar de forma menos pessimista, depressiva ou angustiante – por mais paradoxal que pareça – a pandemia que nos tem baralhado nos últimos tempos as expectativas e veio, à sua maneira, desassossegar-nos. Se lermos bem Pessoa e, em particular, este ensaio de José Martinho, talvez cheguemos à conclusão de que o tão falado regresso à normalidade é apenas a ilusão (ou a cegueira) de um sossego que não há, pois não só o incurável nos define essencialmente, como não existem homens nem mulheres sem sintoma, ou seja, o que cada um tem de mais real. Resta saber o que fazemos – ou inventamos – com isso. Quer dizer: em que medida, tal como Pessoa nos mostrou, à sua maneira, por meio do exercício e prática da letra, conseguimos também nós – palavra equívoca, mas bem apropriada neste caso – transformar a doença – típica dos últimos tempos – num privilégio raro. Um passo mais, por conseguinte, para ser pessoano, inclusive na psicanálise. Eis, a meu ver, e na minha leitura, o que este ensaio propõe.
[1] Psicanalista. Doutor em Filosofia. Autor de vários artigos e livros, como Psicanálise e Arredores (Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2005) e Passagens: da Literatura à Psicanálise via Direito (Rio de Janeiro: Empório do Direito, 2016). Email: [email protected]
[2] MARTINHO, José (1990). “O criador de tudo” in O que é um pai?. Lisboa: Assírio & Alvim, p.93-100.
[3] MARTINHO, José (2001). Pessoa e a Psicanálise. Coimbra: Almedina.
[4] MARTINHO, José (18: 0. /Fall 2020), Não há sossego in Pessoa Plural — A Journal of Fernando Pessoa Studies. Brown University. Digital Repository and Librairie https://repository.library.brown.edu/studio/item/bdr:1153878/PDF/?fbclid=IwAR21zxc39oC7VviVkScVXyTl5KR_YylLWiJtfSyp2JGKRtKMVVYbTxW7jvQ